Cigana

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Era uma galeria.

A sala comprida era iluminada por candelabros de cristais. As paredes em terracota eram adornadas por colunas jônicas que formavam arcos espaçados. No centro de cada arco, a altura dos olhos, havia quadros emoldurados ao estilo Luís XV. Um lugar sóbrio, mas bonito.

Minha consciência veio tranquila. Sonhava.
Eu estava só, o ar úmido e parado. O silêncio era quase tátil mas não me sentia ameaçada. Percebi-me caminhando quando vim da inconsciência.

Bem... já que estava ali poderia apreciar as obras - pensei. Sempre gostei destas coisas eruditas, apesar de não me considerar uma. Bibliotecas, museus, exposições e coisas deste tipo sempre estiveram na categoria de "diversão" pra mim.

Mas qual seria a utilidade de visitar uma galeria em sonho? - pensei eu - Sonhos sem-pé-nem-cabeça me são normais... Nem ponho estes sonhos na conta de sonho lúcido, projeção, nem nada parecido, mesmo que eu esteja semi-consciente (eu sempre sei que estou sonhando). Aquele sonho parecia não ter enredo algum, mas estava estranhamente vívido. Eu caminhava feito uma alma penada silenciosa num salão cheio de quadros.

Hummm... os quadros...

Olhei o que estava mais próximo de mim. Parecia borrado... um jardim de Monet?
Avancei mais um pouco... o segundo... sei lá... tons de cinza e azul... uma mesa ou estrada... ou corredor em perspectiva?

Estava difícil.... Os quadros iam mudando de padrões no momento em que eu os encarava. Lembravam arte pontilhista... depois cubista... Embaçados... Embaralhados...
Dava dor-de-cabeça tentar focá-los.

Era estranho.
Quando olhava para eles um pouco mais de longe, conseguia identificar alguma coisa: um quadro com uma dama de chapéu... Um de carruagem... E aquele outro? Que era aquilo?... Roedores num prato?... Todos seguiam o mesmo padrão indefinido... Mutante.

Encarava-os de cenho franzido. Droga! Me doíam os olhos... Mas por que será que estou aqui? Continuei andando.

Passei por uma moldura. Meu reflexo lampejou... Um vulto negro e grande...
Ah!!! Putz! Que susto! - exclamei. Era um espelho. Espremi os olhos e os arregalei em seguida - Aaah! Agnostha!

Meu reflexo espelhava Agnostha. Estava Agnostha. Seu corpo cintilava à luz dos candelabros. Olhei automaticamente para minhas mãos.... Humanas. - Ãh!?
Olhei meu corpo... humano?... vestindo um camisolão branco. Pés descalços. - Mas... hein!?

Ergui a cabeça para olhar o espelho de novo e o reflexo respondeu... era ela... quer dizer, eu... Grande, e de um grafiti quase negro, os olhos brancos cintilando pérolas, com ar de surpresa.

Ai, puxa vida... isso é tão cliché... - pensei - ...isso de você parecer uma coisa e seu reflexo espelhar outra. Já vi isso em vários filmes... - ri para mim mesma. - Esse sonho tá esquisito mesmo... - àquela altura Agnostha já não me era estranha. Eu estava mais que acostumada com ela. Já fazia uns 5 anos que eu e ela éramos a mesma.

Bem... Pelo menos acho que nada de mal vai me acontecer... - e balancei a cabeça deixando o espelho para trás.

Segui para o fundo da sala. Um último quadro grande estava pendurado.

Este não estava borrado. Ao contrário. Eram um quadro bem nítido.
Uma cena Art nouveau: um cavalheiro de fraque e cartola ao pé de uma escadaria floreada segurando suas luvas e bengala. Olhava para o alto da escada como se fosse subi-la ou aguardasse alguém descê-la.

Era bonito... se bem que num primeiro momento achei que o carinha pintado me lembrava o Mandrake... Sorri.

Continuei olhando...olhando.... E enquanto olhava fui sendo tomada por um sentimento estranho... Uma certa ansiedade começou a borbulhar em meu estômago.... Algo incomodava... Senti-me intranquila.

Cheguei mais perto. Inclinei a cabeça diante do quadro. Olhei mais... Seria um mordomo? Não. Não... Muito arrumadinho... Nada a ver... Um cavalheiro, então?... Não... Não só um cavalheiro... As flores...O olhar... Um enamorado???

Ao pensar naquilo meus joelhos ficaram meio... moles. Meu corpo parecia... sei lá... morno. Minha respiração ficou irregular e os batimentos descompassados.
Me deu ânsia de correr dali como se o cavalheiro do quadro pudesse sair da pintura e me pegar... meus pés não respondiam... encarava-o. Ele era bonito. Bonito?... Vai sair do quadro!... Vai sair!Vai sair!Meu Deus... Vai me agarrar!Eu queria que ele me pegasse?

Luz!

Acordei do nada, com aquela imagem na cabeça: o Cavalheiro.
Olhei para um lado...pro outro. Tudo escuro. Quarto normal. Bah!... Quanta besteira!

Levantei e fui tomar meu banho. Minha irmã já tinha ido para a escola e meus pais e irmão, pro trabalho. Estava só em casa pelo menos até o almoço. Aquele dia ficaria mais interessante quando meus pais retornassem. Iríamos sair à tarde.

Estava com 18 anos e recentemente havia feito minha matrícula para o primeiro período da faculdade. Estava vivendo dias de marasmo - aquele período em que você está desempregado, fora do ginásio e esperando as aulas da faculdade começarem.

Havia ansiendade pelo início das aulas.... isso poderia explicar a noite estranha.

Enquanto banhava-me, lembrava de como tinha crescido mental e fisicamente. Acho que tive uma adolescência bem legal. Aquela garota introvertida, que se tornou Agnostha aos 11-12 anos, mudara bastante. Acho que em grande parte devido a ela.

Tornar-me heroína de meus próprios sonhos deu-me segurança na vida real também.
Consegui um certo destaque na escola e no ginásio - chegando a ser popular entre alunos e professores (pois é... que nem aqueles filmes americanos que tem a fulaninha popular). Saía mais. Ia para as festinhas americanas, para as festinhas de rua, festa junina... Fortaleci-me. E mesmo as eventuais brigas de meus pais em casa (isso demorou a passar....) já não assustavam tanto. Eles que se entendessem... eu daria meu apoio aos dois.

Namorei bastante também (meu primeiro beijo foi sobre uma bicicleta!) apesar de não me achar bonita (garotas magricelas de cabelos encaracolados castanhos, cheios como uma juba de leão, não estão nas capas de revistas, né?)

Espere aí... Namorei? Hum, bem... Acho que "ficar" é a palavra mais correta. "Fiquei" bastante... Beijei muuuuito!
Fala sério!... Detestava namorar! Quero dizer... Namorar firme.
Namorar implicava em compromisso. E isso eu não queria. Tava fora!

Olhando por este lado - o lado dos namoros - eu não estava muito "bem na fita" com meus pais.
Eu já estava, como disse, com 18 anos e quase não namorava "oficialmente". E isso, eu sabia, os decepcionava um pouco.

Sabe como é, né? Eu era a Mais Velha; a Estudiosa, a Responsável, jovem... Era a Moça da Casa. E quando você chega nesta fase, pronto!... A família começa a cobrar casamento, pretendentes, compromisso... Os pais querem que seus filhos se encaminhem na vida. Querem mostrar à sociedade que fizeram um bom trabalho na criação dos rebentos.

Meus pais não cobravam abertamente, mas ficavam meio receosos quando me viam sair com Deguinha, minha amiga, e só e sempre com ela. Nenhum rapaz. Sendo mulher e nunca sendo vista acompanhada - eu nunca levava ninguem lá em casa... - os parentes fofoqueiros - eu sabia - começaram a falar... "Será ainda virgem?", "Não é!", "Não fica com ninguém!", "Deve ter problema!", "Será sapatão?", "Só quer estudar!", "Deve ser chata!", "Encalhada"... e por aí seguia. Eu não estava nem aí para os comentários.

Me lembro bem: quando ficava com alguém e o cara falava que queria conhecer meus pais, eu puff!... Saltava fora. Isso aí. Terminava mesmo.
As poucas vezes em que os namoros evoluíram para a fase da apresentação; os poucos que conseguiram ser apresentados aos meus pais (...e isso dá pra contar nos dedos de uma só mão antes de chegar ao 5...) foram namoros que não duraram nem 3 meses. Meus pais reclamavam de que quando eles estavam se apegando a alguém, eu "chutava" o cara.

A verdade é que eu não me apegava a ninguém... Era tudo passatempo...
Acho que quando ganhei confiança em mim mesma, fiquei também mais independente. De certo modo, apesar de apreciar belos rostos e corpos, achava que, no geral, os garotos eram sempre desinteressantes... Além do mais, eu não queria saber de namorado a sério. Era jovem e iria concentrar meus esforços em minha individualidade. Queria estar livre pra curtir minha fase de faculdade, me formar, e depois trabalhar e ir morar sozinha. Sair de casa era meu maior sonho.

Esse era o plano, "Meu Glorioso Plano": ser a garota independente.

Todos os meus sonhos giravam em torno de ser autossuficiente.
Ter meu apartamento, minhas coisas, meu carro, meu dinheiro. Poder viajar sem ter que me explicar para ninguém ou ter a obrigação de voltar. Conhecer o mundo com minhas próprias economias...

Para isso eu seguiria uma linha reta: estudar, me formar e trabalhar. Nada, nem ninguém, me moveria daquilo. Nada de se encantar com ninguém que não fosse apenas distração. Sem compromissos.

Acho que foi por isso - pra saber o que ia em meu coração - que minha mãe me convidou para visitar uma cigana com ela... com a desculpa de fazer previsões de Ano Novo (minha família sempre teve um pezinho lá na senzala, no terreiro... e na fogueira as bruxas. Minha bisavó era uma cigana espanhola que se casou com um português e veio para o Brasil. Meu avô materno era filho de índios com negros - mameluco. Só meus avós paternos escapam da mistura. Eram italianos. É muita cultura misturada). E eu, exotérica como sempre, concordei em ir.

Passei a manhã dando um jeitinho na casa (não tínhamos empregada...). Eles chegaram por volta das 14h e após me vestir saímos.

Meia hora depois estávamos lá. A casa era simples mas agradável aos olhos. Qualquer um que chegasse ali não concluiria que se tratava da casa de uma espírita cigana. No interior, cores claras. Sofás confortáveis ladeados por abajures em tons pastel.

Ficamos eu e minha mãe ali na sala aguardando nossa "consulta"(meu pai aproveitou para resolver problemas bancários e saltou fora... não queria saber daquelas coisas...). A moça que nos atendeu dissera que sua mãe estava se vestindo e que já nos atenderia.

Eu já estava arrependida. Como é que deixei minha mãe me convencer? Curiosidade é uma merda! Vai que ela fala alguma coisa que eu não gostaria de saber! Vai que ela fala que eu iria morrer? Que eu iria sofrer um acidente? Ficar aleijada?
Fiquei batendo o pé enquanto esperava. Impaciente.

Finalmente, uma senhora sorridente de uns 60 anos chega à sala. Estava vestida a caráter, mas sem exageros. Uma blusa de linho e lesi amarela, uma saia vermelha com fios dourados, um lenço de organza também vermelho sobre a cabeça.

Após as apresentações, ela chamou minha mãe primeiro que a seguiu até a um vestíbulo cuja porta ficava no corredor.

Fiquei lá na sala esperando a consulta acabar. Aposto que a mamy estava perguntando sobre seu casamento... Enquanto isso a moça me trouxe um café. Eu aceitei de bom grado.

O que será que eu gostaria de saber sobre minha vida? - pensava eu - Tudo estava tão parado pra mim...Todo o mundo que eu conhecia estava mais ou menos no mesmo esquema: fazendo cursinho pré-vestibular, concursando ou tentando um emprego...
Desde que passara pra faculdade há dois meses, quase não saía... Também pudera... Fora um período muito exaustivo tendo que estudar aquilo tudo. A exaustão do vestibular foi tanta que tive até uma paralisia num braço. Fui parar no pronto-socorro. - balancei a cabeça - Não queria pensar naquilo... Naquele outro sonho maluco... O sonho em que meu braço "fantasma" não colava em meu braço "real" e nesse desespero acordei sem o tato no bendito membro. Levei uma semana para recuperar-me totalmente. No final, a conclusão era de "estafa". "Estafa"... Sei... Minhas noites é que não eram normais mesmo... - pus a mão no queixo e ri sem querer - Aliás, confesso que se não fossem minhas noites serem animadas de vez em quando, eu provavelmente, teria morrido de tédio naquele período.

Nesse momento lembrei-me do sonho matinal... Bah! Sonho bobo...

Estava rememorando aquilo tudo quando minha mãe reapareceu. Estava sorrindo. Deve ter tido boas notícias....

-- Agora é sua vez, meu bem. - disse a senhora com um sorriso.

Levantei insegura. Lancei um último olhar pra minha mãe que acenou com a cabeça: vai!
Suspirei e acompanhei a senhora até o vestíbulo.

Na salinha, tudo muito simples também. Uma pequena mesa quadrada forrada com uma toalha branca e um caminho em cetim vermelho onde as cartas repousavam. Uma vela acesa em um dos cantos.
A janela tinha cortinas fininhas que deixavam entrar o sol da tarde, clareando o ambiente, mas deixando aquele aspecto meio surreal em tudo.

Sentei na cadeira da consulente e ela tomou sua posição. Fechou os olhos e começou a orar. Acho que era um Pai-Nosso... não... talvez o Credo... ela sussurrava. Fiquei quieta e comportada. Olhei a pilha de cartas. Eram maiores que um baralho comum. A face que via era decorada com arabescos vermelhos e brancos.

As mãos da senhora avançaram sobre a mesa e ela pegou as minhas que repousavam na beira.
Ela me olhou por um breve momento e entendi que devia me concentrar com ela. Através de minhas mãos senti que ela tremeu rapidamente e no segundo seguinte não era a senhora que estava ali comigo, mas sim o espírito da tal Cigana.

-- Então, filha minha. - disse ela - Vamos ver o que as cartas têm a dizer-te.

Olhei para ela e tive a impressão de que aquela senhora parecia mais jovem. Suas sobrancelhas se arqueavam parecendo muito mais negras agora. Ela começou a embaralhar agilmente as grandes cartas. Pediu que eu as cortasse em 3 montes e depois de reajuntá-las as distribuiu em algumas fileiras sobre a mesa. A medida que ela ia virando as carta eu ficava mais inquieta. Incomodada.

Uma estranha sensação de familiaridade assomava-se sobre mim apesar de eu nunca ter visto aquele tipo de tarot antes. As imagens eram ricamente ilustradas. Art nouveau...

Meu Deus! Meus quadros! - um arrepio percorreu minha espinha se espalhando pela nuca e braços quando reconheci.

Eu não sei que cara fazia enquanto a via enfileirar as imagens que consegui me lembrar de ter visto borradas em minha galeria onírica. A carruagem, a dama, os roedores, flores...
Meu olhos arregaldos, certamente.

A última fileira era composta de 3 cartas que ela manteve viradas. Eu já estava assustada.

Com uma técnica que nunca vira antes, ela começou a ler pra mim. Ela tocava as cartas uma a uma com o dedo indicador direito, dizia seu significado e com a mesma mão recolhia a fileira na direção oposta, batendo cada montinho recolhido três vezes sobre a mesa antes de somá-los ao monte precedente. Sua voz saía como uma ladainha, baixa, usando todo o ar, chegando quase ao limite de seu fôlego. Lembrava uma oração.

Ficava difícil acompanhar as revelações e o ritmo frenético com que ela apontava e recolhia as cartas. Suas frases eram pontuadas pelas palavras: "Filha minha".

Ela falou muito.
Das coisas que me lembro, - e que pude entender - a imagem dos roedores (eram ratos) associavam-se à palavra "desgaste"... Desgaste de energia. A carruagem, na posição em que estava, significava "viagens" nacionais e internacionais. A dama na ilustração relacionava-se à "influência", as flores, à "vitória dos esforços de trabalho", e assim foi...

Achei tudo de uma banalidade total. Só me chamou a atenção ela ter visto que eu me recuperava de algum problema nas mãos (na verdade era no braço - a paralisia) e que eu tomasse cuidado com "correntes d' água". Huh... até aí nada. Acho que teria conseguido ler aquele tarot eu mesma...

Foi aí que ela chegou até a última fileira. Virou as últimas três cartas.
Com desenhos floreados e cheios de detalhes, estavam lá a "Estrela", os "Enamorados"... e, ao pé da escadaria, lá estava meu "Cavalheiro"... na verdade, o "Amante". Não havia como ter dúvidas. - Caraca!!! Eu devia estar preparada...! Se tudo me era familiar até ali! - Mas não adiantou, meus olhos estavam mais arregalados e engoli em seco.

Ela pegou justo a carta do "Amante" nas mãos e, fugindo do padrão que seguira até então, mostrou-a pra mim:

-- Filha minha, conhecerá um rapaz. Seu coração espera por ele. Não demorará. Ele também espera por ti. - sua voz parecia uma profecia.

Sentia-me confusa e surpresa. Ela continuou:

-- Ele será importante pra você, filha minha. Fará diferença.... Mas... - mudou o tom sinistramente - Você ainda é muito jovem... E ele também.

Ela tava brincando, né?
Pô... vou lá pra saber de estudo, trabalho, e profissão, e ela me vem com esse papo de namorado?

Aquilo me incomodou, mas, após o susto inicial me controlei e fiz cara de paisagem.
Ela pousou a carta sobre a mesa e me encarou. Acho que ela notou alguma coisa em minha expressão:

--Filha minha... Ninguém é uma fortaleza solitária...

Ela levantou-se. Segurou minhas mãos (estavam frias) e após um rápido tremor vi aquele alterego jovem dar lugar a senhora sorridente.

--E então? Gostou da consulta? - perguntou ela. Era outra pessoa.

Eu me limitei a acenar um "sim" com a cabeça. Estava meio confusa com a sequência - meus quadros eram as cartas... Cavalheiro que era amante... Fortaleza... - Saí de lá meio bamba.

O que meu futuro reservava pra mim?
Não via a hora das aulas começarem...

(Continua)