Cérbero (Parte 1)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Era o primeiro dia de volta às aulas.

Foi muito bom ver as amigas de novo.
Cumprimentei Lú e Diva com alegria, feliz também por ver Lili - mas ela eu via a semana toda.
Trocamos comentários sobre as férias, o que fizemos e onde fomos.

Eu estava feliz. Tinham sido ótimas férias.
Não viajara, mas tinha ido a festas de aniversário, casamento, praia, campo e rio. Fora ao parque e à boate com as amigas. Meus pais, em fase de paz, nos levaram, eu e meus irmãos, ao Corcovado. Foi muito legal.

E ainda tinha o estágio. Estágio este que me ocupava os dias da semana, me livrando dos trabalhos domésticos, e adicionando algo ao meu aprendizado.
Agora teria que ir ao estágio à tarde, mas estava tudo bem pois não tinha mais compromissos depois da aula.

No intervalo do lanche dei uma passadinha na sala do Diretório Acadêmico que ficava no mesmo campus.
Era uma salinha de tamanho médio, mais comprida que larga, e ficava sobre a entrada daquela bendita rampa de acesso aos elevadores. Era conjugada com outra sala que fora cedida a uma microempresa de xerox. Os donos da microempresa nos pagavam em forma de quotas de xerox que era bastante utilizada.

Ao chegar lá, o mocinho que trabalhava nas máquinas, já sabendo quem eu era, avisou que Marconi havia confirmado a reunião da noite - naquele tempo não havia celular...

Retornando à cantina encontrei as amigas e comentei que teria que voltar à faculdade à tarde, como já desconfiava que o faria desde a semana anterior.

-- Nossa... - comentou Diva enquanto lanchávamos - mal você volta às aulas e já tem reunião? - e completou referindo-se a Marconi - Esse cara está nos seus calcanhares, hein!?

Foi só uma fração de segundo, imperceptível para minhas amigas, mas eu me arrepiei quando a frase dela quicou no meu cérebro fazendo-me rememorar o sonho daquela noite.

Eu corria por ruas estreitas - ou um corredor largo - limitadas por paredes altas cobertas por heras.

As quadras faziam ângulos de 90 graus com outras quadras. Era noite e somente a lua cheia iluminava o caminho. A mesma lua dava às folhas um aspecto prateado que contrastava com as penumbras. Eu corria descalça, com medo de olhar para trás. Usava um vestido de cor clara, diáfano - eu vi as saias - similar a uma toga. Os braços nus. Me sentia vulnerável. De som, só ouvia meus passos batendo no chão de terra e minha respiração indo e vindo muito rápido.

Estava aflita. Avançava a cada esquina esperançosa.
Olhava para um lado e para o outro buscando a saída, mas tudo era igual. Todas as esquinas iguais, verdes. Um labirinto!

Eu entrava nas ruas sem noção de para onde ir, atravessando zonas claras e escuras. Respirava e corria. Sabia que algo estava no meu encalço... nos meus calcanhares... Não havia tempo para decidir. Eu só podia correr.

Naquele momento eu não me lembrava da minha força... não agia. Só reagia. Semi-consciente.
Me sentindo desamparada e só, ainda tive cabeça para lembrar que na mitologia grega, era o Minotauro quem perseguia e devorava aqueles que entravam em seu labirinto. Aturdida com o pensamento, eu corria ainda mais rápido, imaginando que aquele monstro poderia me alcançar.

De repente parei estupefata numa rua sem saída. As heras indo alto demais para eu tentar pular. Não! - gemi. Tateei o muro procurando desesperadamente por uma passagem. Agarrei-me às trepadeiras. Foi quando ouvi passos vindo do corredor pelo qual passara. Horrorizei-me. As paredes altas faziam sombra à lua justo naquela esquina. Um breu total! Virei assustada pressionando meu corpo contra as heras e esperei que o Minotauro aparecesse no beco em que estava.

Seria o fim.

Quando vi o corpo se mover nas sombras fiz menção de gritar, mas como, para minha surpresa, não era nada do que eu esperava, me contive.

Ele se aproximou caminhando calmamente aparecendo sob a luz da lua que iluminava o ponto onde eu estava.

-- Esta perdida? - perguntou ele educadamente.
-- Lino? - eu estava incrédula a e ao mesmo tempo aliviada. - Sim... Você me ajuda a sair daqui? - implorei desacelerando a respiração.
-- Venha. - gesticulou com a cabeça - Eu te ajudo. - e ofereceu sua mão.

Eu a segurei e voltando ao corredor, começamos a caminhar.
O alívio era enorme, mas eu ainda estava assustada. Ele usava as mesmas roupas de sempre, jeans e camisa de botão escuros, e parecia calmo demais.

-- O que está fazendo aqui? Não tem medo do Minotauro? - perguntei. Eu devia estar sonambula mesmo...
-- Não. O Minotauro não vive aqui. - respondeu tranquilo.
-- Não!? - franzi a testa. Mas eu tinha certeza que algo me perseguia, algo assustador. Eu o sentia - Quem me perseguia então? - perguntei confusa.
-- Cérbero. - disse ele com toda naturalidade. - Ele mora aqui.
Ihrrc! - lembrei do cão monstruoso de três cabeças que guardava as portas de Hades. -- Minha nossa!

Quando tirei meu olhos do rosto dele, vi que já estávamos sob o grande portão do labirinto.
Era um portão duplo de ferro pesado, com lanças também de ferro decorando a parte superior. Com a mão que estava livre, ele pegou a grande argola e puxou uma das pesadas faces que cedeu sem resistência. Era o suficiente para passarmos. Pude ver que do lado de fora era tudo muito comum. Uma rua cheia de casas comuns, iluminadas, seguia alheia à entrada sinistra. Ninguém à vista.

Avancei pelo portal e fiz menção de seguir pela calçada em que pisei, feliz por saber que estava livre, mas senti a trava. Ele não soltara minha mão. Ficou parado sob o portal do labirinto, me olhando. Estranhei aquilo. Me reaproximei.

-- Anda! - urgi - Vamos sair daqui! - disse puxando sua mão para a calçada também.
-- Não. - respondeu soltando-a gentilmente.

Eu olhei pra ele surpresa. Ele deu um passo para trás voltando para as sombras, seu rosto frio, e disse:

-- Eu moro aqui.

E acordei.

-- Hein, Alya? Vai ter que voltar mesmo? - insistiu Lili.
-- Hã?... Ah, sim, sim. Vou. - respondi voltando ao cenário real. - Tenho que ligar para meus pais...

Raramente sonho com gente conhecida. Mesmo pais, amigos e parentes... raramente sonho com eles. Sonhar com conhecidos, da faculdade ou do trabalho, era mais raro ainda.

O que é que aquela figura fazia no meu sonho? Putz.

O segundo tempo acabou muito rápido. Ou era eu que estava muito esbaforida? Nos intervalos de cada aula, eu corri todas as turmas para coletar sugestões e pedidos para encaminhar em nossa reunião da noite, além de me apresentar à turma do primeiro período. Afinal, eu era a representante do D.A. no período da manhã. Ao sair, no caminho, liguei de um orelhão para o trabalho dos meus pais avisando que demoraria. Depois, eu e Lili corremos para não perder o conexão - o ônibus da UFRJ que fazia a linha gratuita entre o campus Praia Vermelha na Urca, e o campus Ilha do Fundão. Ele saía ao meio-dia, e ai de nós se o perdêssemos... teríamos que pegar o convencional - pago - que levava milhares de anos para passar...

Ônibus lotado, ficamos em pé. Estava cansada mas aproveitei para verificar a lista que trouxera. Tentava ver se não tinha me esquecido de passar em alguma turma.

-- Relaxa, Alya! - censurou Lili - Você é sempre tão elétrica! Pô! Até no ônibus!

Eu ri e guardei a papelada como pude. O ônibus balançava a beça. Lili sempre cuidava de mim...

-- Você já tem como voltar? - perguntou-me depois.
-- Já. O Lino vai me mostrar o ponto final desse ônibus aqui lá na Ilha e vamos voltar juntos pra Urca. - respondi passando a mochila a uma boa alma que se oferecera para segurá-la.
-- Sei.

Era a terceira ou quarta vez que Lili respondia dizendo "Sei" e fazendo aquela cara de paisagem toda vez que eu falava no Lino ou no estágio. Aquilo já estava me dando nos nervos, mas deixei essa passar. Na semana anterior fora a vez dela me encontrar na biblioteca e eu apresentei o povo de lá para ela. Ela deu uma boa olhada no Lino. Será que estava interessada nele? Ela era tão bonita...

Chegando no Fundão eu almocei num trailer barato. Lili havia trazido marmita e seguiu para o IGEO.

Estava de ótimo humor quando entrei na biblioteca. Dei "bom dia" a todos e fui para o balcão. A biblioteca estava movimentada com o primeiro dia de aulas também no Fundão. Vários alunos faziam seu cadastro e Nini Brantes pediu que eu esquecesse o inventário e ficasse no balcão para ajudar. Eu concordei.

Vi que havia mais gente naquele espaço estreito. Era o outro estagiário, o Zé. Era um jovem negro, entre 20 e 22 anos, mais ou menos de minha altura e bem magrinho. Depois das apresentações e beijinhos no rosto já estávamos nos entrosando. Ele era estudante da UFF e vivia na minha cidade. Foi fácil simpatizar com ele apesar de que ele parecia também ser um rapaz tímido, mas não caladão como o outro companheiro de balcão. Era fácil falar com o Zé.

Estávamos os três meio atolados com tanta gente na biblioteca. Pessoas entravam e saíam. As fichas de cadastro pareciam multiplicar-se sozinhas. Finalmente tivemos um momento de folga. Começamos a conversar. Lembrei que este seria o primeiro dia de aula do Lino e comentei com o novo amigo.

--Hi, coitado! É calouro, é? Vão pintar ele! É dia de trote! - brincou Zé.

Eu que estava sentada entre os dois, sabia que esse tipo de trote não ocorria na Unirio - ao menos não na minha época - mas quis provocar Lino e botei pilha:

-- Nossa! É mesmo! Vão pintar ele de rosa-choque! - disse enfática e ri debochada - Vai ficar uma "fofa"!!!

O rapaz ficou de todas as cores possíveis, mas vi que estava levando tudo na brincadeira. De onde estava, ele esticou o braço e segurou o meu próximo ao ombro, me sacudiu, querendo parecer feroz:

-- Você está querendo insinuar o quê, hein!? - disse rindo com uma voz pseudo-ameaçadora.
-- Brincadeirinha! Brincadeirinha! - fingi pedir clemência. Caraca! O caladão estava me agarrando! Acho que aquela era a primeira vez que ele me tocava intencionalmente...
-- Cuidado, Alya! Acho que vão pintar ele de verde! Ele parece o Incrível Hulk! - completou o Zé.

E ríamos mais ainda...

Não me deixei intimidar. Provoquei mais, falando em como iam ficar o cabelo e as roupas dele. O Zé fazia coro. Eu era uma palhaça mesmo...

Eu não sei porque fazer aquilo me deu prazer... Acho que eu queria acabar com aquela fachada calma dele. Ver a superfície borbulhar um pouco... Sentia-me motivada com a presença do Zé ali. Sem medo. Sem dúvida, o Zé foi uma ótima adição ao círculo de minhas amizades.

Depois de zoar, controlei os risos e moderei os ânimos tratando de acalmar o rapaz. Disse a ele o que esperar do trote da Unirio: uma festa patrocinada pelos calouros ou uma "pagação de mico" no pátio, como foi meu caso. Todos riram bastante enquanto era minha vez de ficar vermelha ao contar minha cena de amor com aquela estátua do pátio. Foi hilário.

Contar o caso fora uma forma também de não constranger o Lino. Não que me sentisse obrigada... mas não queria que ele pensasse que eu o provocava por algum motivo obtuso ou sei-la-o-quê.

Passamos o dia assim. Rindo e trabalhando. Sempre lembrarei daquelas tardes desse jeito. Nós três rindo e trabalhando. Um trio de amigos. Estudantes. Aprendendo a viver.

Já pelo final da tarde, eu lembrei que teria que voltar para a Urca. Comecei a arrumar minha bolsa. Lino reconheceu o gesto e começou a juntar suas coisas também.

-- Vamos? - chamou-me enquanto eu levantava.
-- Vai me levar ao ponto final? - quis certificar.
-- É meu caminho. Não me custa nada... - seus olhos orientais sorriram.

Aquilo me deu um frio no estômago. Ficaria sozinha com ele. Não absolutamente sozinha, claro. Mas sozinha no sentido de que estaria fora do ambiente de trabalho, na rua, com o rapaz. Eu não sabia porque ele me fazia sentir assim...

Saímos da biblioteca caminhando lado a lado. O silêncio era algo natural para ele. Em pouco tempo estávamos andando pelo campus. Os alojamentos ficavam a uma boa distância do IF então paramos no ponto de ônibus para pegar uma conexão interna.

De vez em quando eu fazia um comentário - somente os assuntos seguros: o tempo, a demora do ônibus, o trabalho cansativo do dia... Ele respondia com monossílabos de modo que eu também não falava muito. Grupos de pessoas se movimentavam aqui e ali, mas no ponto onde paramos não havia ninguém. Devia ser quase umas cinco horas, mas com o horário de verão, o céu ainda estava claro. Ainda bem.

Eu estava meio sem jeito de ficar em pé ali com ele. Me balançava nos calcanhares de vez em quando, correndo os olhos pelo perímetro. Aquele mesmo sentimento de medo do primeiro dia crescia dentro de mim. Tinha vontade de correr dele.

Ridícula! Para de palhaçada! É mais fácil você atacar esse cara pacato do que ele a ti! - pensava comigo - E depois ri com a imagem mental de eu pulando no pescoço dele... Ridícula!

Meu sorriso não passou desapercebido quando olhei para o outro lado, mas o ônibus para o alojamento finalmente chegara. Ele se adiantou e na porta do ônibus fez uma mesura para que eu entrasse. Hum... Educado. Sentamos juntos. Tentei não tocá-lo. Mas era difícil. O banco era estreito. Ignorei a situação. Poucos alunos no ônibus. Mantivemos o mesmo padrão de assunto durante a curta viagem. Em 10 minutos estávamos no ponto final do alojamento. Ao descer ele se adiantou novamente e me deu a mão para me ajudar a pisar nos degraus da condução. Muito fofo da parte dele - pensei. Eu não estava acostumada a tanto cavalheirismo. Sempre fiz tudo sozinha...

O campus dos alojamentos era um lugar bastante feio. Chego a dizer, sinistro.
Eram dois prédios de 3 ou 4 andares com cara de anos 70, de cor cinza, um ao lado do outro; um deles destacado, mais próximo à rua. Nesta endentação entre os prédios havia uma área verde com árvores, plantas, mato e dois banquinhos de cimento com um pequeno jardim mal cuidado entre ambos - uma tentativa mal-resolvida de fazer o lugar parecer mais bonito, eu diria.

Algumas pessoas começavam a juntar-se ali na calçada formando uma pequena fila informal. Todos esperando o Urca.

-- Quer se sentar enquanto espera? - ele apontou os banquinhos solitários adiante.

Olhei pra ele. E porque não?
Sem jeito, concordei.

(Continua)

Elevador

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Já estava impaciente. Os cadernos incomodavam.
Porque tinha que ser lá no 35º andar?
Finalmente o elevador chegou. Cheio! Droga!Entrei resignada me alojando de lado sob o ventilador do teto. Espremida.

Três escriturários, dois boys, três secretárias (duas delas da mesma empresa), dois pacientes para uma consulta, um inquilino e uma universitária - eu. Ótimo! Lotado.
Uma das moças me notou. Que foi? Tô pelada? Não... Jeans, t-shirt e keds. Normal. - pensei comigo.

A sensação de puxão: subindo.
Os andares passavam rápido. 22, 24, 26... Elevador é um negócio chato mesmo. Não se tem para onde olhar. Falar o quê, se não se conhece ninguém... Ajeitei os cadernos debaixo do braço.

A luz piscou, e sentimos o primeiro solavanco. Ai! Desconfortável. Murmúrios.
Foi quando sentimos o segundo... mais do que desconfortável. Assustou.

Escutei um barulho longínquo de vários chicotes estalando. Motores rangendo. Perda de tração!? Perigo!.... Escuridão! Puta que pa-AAAAAAHHHH - Gritou todo mundo enquanto caíamos.

Dois segundos e a luz de emergência se acendeu. O primeiro sistema de segurança entrou em ação e as roldanas travaram. A primeira Lei de Newton foi implacável: todos fomos ao chão! BHAM!
A tal moça caiu por cima de mim. Ai! Doeu!
O elevador parou. Nos levantamos todos ao mesmo tempo. Agora era o pânico. Um mar revolto dentro de um cubículo. As mulheres gritavam e os homens esmurravam a porta automática.

-- Socorro!!! Tirem agente daqui!!! Socorro!!! - gritavam todos.

Em silêncio, me espremi contra a parede no canto. Baixei a cabeça e coloquei os cadernos na frente da barriga para não levar um soco não-intencional.

Meu coração palpitava fortemente mas mantive o controle. Imediatamente, como sempre ocorria em casos extremos, minha mente entrou em modo de auto-preservação. Meus sentidos prontamente vasculhando as possibilidades.

Sondei as roldanas. Droga! Não iriam suportar os solavancos agora causados pela movimentação das pessoas dentro do carro. Quanto tempo? Mais 5 segundos!Vaguei até o segundo sistema de segurança. Não! Uma das travas em forma de cunha de um dos lados dos trilhos não suportaria a tração. O carro desaceleraria 30% mas continuaria resoluto até o último sistema de segurança que era o pistão no fundo do fosso....

Oh!... Muitas pernas quebradas, braços... uma coluna inutilizada para sempre e dois pescoços... Meu Deus! Não!!!

3 segundos.

Não vacilei. Olhei pra cima e irrompi através do ventilador de teto jogando cacos para todos os lados! AGNOSTHA!

2 segundos.

Voar é fácil... difícil é ficar parada em pleno ar!

Manter a energia vibrando nos "pontos de apoio" - que hoje eu sei que são os chacras - requer mais concentração do que deixar a energia simplesmente fluir num pulso.
Levei um segundo para estabilizar o voo.

...E o carro desceu. Céus!!!

Um! Dois andares! 3 m/s e acelerando!

Freio a disco! - pensei rápido. Planando onde estava, abracei os cabos com força, pressionando-os contra mim. Virei o rosto.

Iiiiiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!

A lei da dinâmica entrou em ação, e o atrito dos cabos friccionados rudemente pelo meu corpo e acelerando pelas roldanas do vagão que descia provocavam faíscas que clareavam todo o fosso.
Meu corpo espelhado duplicava a luz!

Não pense no peso! Não pense no peso! - gritei mentalmente.

Iiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!O zunido terrível passava pelos meus braços cruzados, peito e pescoço, mãos em garra, ecoando pelo fosso, reverberando pelas paredes.... Era difícil flutuar!
Iiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!
Que peso!!! Parecia que segurava uma geladeira por um cabo - Não! Não! Mais leve! Mais leve! - era o pânico me desconcentrando.

Tive a ideia e enrosquei as pernas também. Meu abraço de torniquete agora parecia um rapel.
Mais faíscas projetavam-se para todos os lados. Eu trepidava!
Iiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!
O carro já tinha avançado dez andares abaixo. As pessoas gritavam desesperadas lá dentro!
Iiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!Mais um andar!

Não!!! Força Agnostha! - gritava internamente. - Força!!! - Aquelas luzes me deixavam nervosa!
Iiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!
Outro andar... e mais outro...

O contrapeso passou rangendo por mim... Oh!... Me contraí mais firmemente em torno dos cabos. Anaconda!

Iiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrr!
Uma mochila pesada. Isso! Só uma mochila pesada!
Iiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrr!
Uma mochila pesada! Só uma mochila pesada!

Iiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrr!
Repetia mentalmente até que...

A desaceleração foi brusca, diminuindo também as faíscas.
Iiiiiiirrrrrc!

Funcionou! - Isso! Isso! - jubilei. - Tração! Equilíbrio enfim!

Mais uma vez a lei da inércia atuou sobre todos fazendo-os cair sobre eles mesmos - A secretária mais gordinha ia ter que procurar um ortopedista... Ai, minha cabeça!

Iiirrc...shhhhhh!
O elevador finalmente parou. Tudo turvo ao meu redor. Ufa!

Ainda enroscada nos cabos, exercendo uma pressão enorme sobre eles, olhei para baixo.
De lá alguém olhou pelo buraco que eu deixara. Era o rapaz mais moreno. Estava pálido.
Não havia tempo a perder.

O elevador estava quase encaixado ao oitavo andar mas fiquei com medo de tentar erguê-lo, incerta sobre minha força. Seria na base da persuasão então.

Libertei a mão direita dos cabos e me concentrei. A palma da minha mão escura tornou-se prateada. Direcionei-a para o aparato sobre a porta automática do carro do elevador lá embaixo, e lancei uma descarga elétrica.

O fino raio cruzou o espaço, clareando tudo como um relâmpago, e atingiu o motor que controlava o braço mecânico. Este foi acionado imediatamente abrindo as portas internas do elevador. No mesmo instante, redirecionando a mão e rezando para que o sensor da porta externa fosse ótico, lancei uma onda infravermelha. O feixe de luz invisível aos olhos humanos atingiu o grupo de fendas e as portas externas se abriram quase que simultaneamente com a primeira.

Projetei minha voz pelo fosso:
-- Saiam!!! - ordenei para o rapaz que ainda me olhava atônito. Duvido que com aquela confusão, ele pudesse entender o que via...
Apesar do degrau ter dificultado a saída da secretária com o joelho machucado, todos foram breves. Ainda bem... Não aguentaria mais. Relaxei um pouco a pressão nos braços e pernas e o elevador desceu a 60% da velocidade de queda normal.

Iiiiiirrrrrrr.... recomeçou o zunido. Ainda assim, ouve algum dano quando o ouvi chegar ao pistão alguns andares abaixo.

Suspirei aliviada soltando-me dos cabos. Estava mesmo difícil de manter-me flutuando ali. Voar é sempre mais fácil. Dei uma olhadela rápida no meu corpo agnosto. Sem danos. Foram os cabos que faiscaram, não eu.

Murmúrios vinham do vão no andar ainda aberto. Mais gente. Comoção.
Ergui a cabeça e senti que a escotilha de reparos, apesar dela estar a muitos metros acima, no topo do prédio, estava fechada apenas com um cadeado... Um estrago a mais um a menos não vai fazer diferença... É melhor eu sair daqui. - pensei.Foi apenas um pensamento, e já estava em movimento ascendente.

Mais rápido!

Os andares eram borrões agora. Mais rápido!Atravessei a escotilha como se fosse papel-de-seda e ganhei a claridade.

Ahhh! O céu azul!!!

Deixei a velocidade do pensamento dominar meu corpo metálico...
Acordei tranquilamente, com aquela sensação maravilhosa de voo.

Espreguicei. Puxa! Outra noite animada!
Fui escovar os dentes e tomar meu banho.

Esse tipo de sonho não me assustava - nem me assusta, até hoje. É um tipo de sonho de aventura; onde eu incorporo a personagem e, apesar de reagir conforme o sonho dita, eu me lembro que sou Agnostha. Esse é o tipo de sonho que me deixa forte. Cheia de energia. Preparada! Como se eu pudesse encarar qualquer coisa que viesse pela frente!

Vesti-me alegremente para ir para o estágio. Estava feliz por ter realizado um trabalho bem feito naquela noite.

Enquanto tomava meu café, e depois na condução - meus pais não me levavam ao Fundão - eu fiquei rindo do sonho. Que tipo de heroína eu era?

Do tipo "pobre", eu suponho... - sorri. Se fosse o super-homem, ele pegaria os cabos charmosamente, fazendo aquela pose heróica; baixaria o carro suavemente e deixaria todos a salvo no térreo. Depois, todo mundo iria saudá-lo na recepção do prédio, agradecer a ajuda com "vivas" e "bravos"; e ele voaria elegantemente - saindo pela porta ou uma janela aberta - em direção ao céu azul. "Para o alto e avante!" - Ele diria, voando sob uma nuvem de aplausos entusiasmados!

K-k-k! Imagine eu, pendurada feito uma macaca enganchada nos cabos de um elevador! - eu ria da impossibilidade. - Uma macaca!
Algumas pessoas do ônibus me olharam. Tive que controlar o riso.

De qualquer forma - só por desencargo de consciência - evitei elevadores ao longo do dia. Quando cheguei ao CT fui direto para as escadas.

Estava radiante quando entrei na biblioteca. Minha disposição estava no máximo, ainda reflexo da noite animada.
Dei de cara com o rapaz, Lino, e soltei um "Bom dia!" com todos os dentes.
Ele retribuiu sorrindo:

-- Bom dia.

Guardei a bolsa e cantarolando, peguei as fichas para trabalhar.

-- E então, como foi seu fim-de-semana? - perguntei a ele enquanto juntava um bolinho delas.

-- Bom. - sua voz calma. - E o seu? - retrucou

-- Bom também. - respondi alegre - Vi um filme maneiro neste fim-de-semana.

-- Rocky III? - ele perguntou sarcasticamente.

Rocky III era um filme dos anos 80, e só porque eu comentara com ele na semana anterior que eu morava do outro lado da ponte, ele estava querendo fazer piada da minha cidade... Ele que tomasse cuidado pois neste tipo de brincadeira - sarcasmo - eu era boa. Poderia irritá-lo, se quisesse. Mas limitei-me:

-- Ra-rá. - ironizei. - Maria da Graça também não é lá essas coisas, sabia? - era onde ele morava.

Gostei de ele ter brincado comigo. Se passara uma semana desde aquela segunda-feira estranha do primeiro encontro. A amizade forçada pelo ambiente de trabalho estava ficando agradável afinal. Ainda assim, não me permitia ficar absolutamente a sós com ele. Seu Manoel já estava na salinha de encadernação e Nini Brantes em seu escritório. Eu me sentia aliviada por isso.

Ele serrou os lábios para não rir abertamente da minha troça, depois continuou:

-- Que filme você viu?

E então começamos a falar sobre cinema.

É claro que para cada filme que ele comentava, eu comentava outros quatro... Mas ainda assim foi uma conversa agradável. Tínhamos gostos parecidos. Muitos dos filmes de que gostei ele gostara também. A exceção ficava com os filmes de guerra que ele adorava e que não são meus preferidos.

A relação com os filmes o fez lembrar de algo e ele comentou:

-- As vezes tenho sonhos em que sou um Kamikaze.

Ele disse isso com um sorriso triste. Como quem se desculpava. Eu fui pega totalmente de surpresa pela frase dele.

-- Um Kamikaze? - repeti interessada e ao mesmo tempo confusa.

Àquela altura, estávamos sentados um de frente para o outro muito próximos. Caraca, mesmo sentado ele era tão alto...
-- É... Sonho que estou num avião... voando direto para um navio inimigo, atirando nele sem parar. - ele gesticulou como se estivesse segurando num manche - E então eu me choco contra o navio... E morro!

Ele falou isso sorrindo mas notei que aquilo o incomodava.

-- Acordo todo maluco... Assustado... - balançou as mãos e a cabeça.

Ele parecia querer fazer piada daquilo e eu até ri para encorajá-lo, mas fiquei preocupada com ele. Seria ele como eu?

Algumas pessoas podem ter problemas com sonhos deste tipo, sabe? Eles se tornam pesadelos esmagadores se você não encontrar sua força e superar os desafios oníricos.... ou espirituais.

-- Puxa... que estranho, né? - foi tudo o que disse. Caraca... Pensei em falar de Agnostha, mas me calei rapidamente. Iria parecer uma ridícula contando meus sonhos. Ainda não havia intimidade para aquilo. Eu queria intimidade?

Conversamos mais um pouco saindo daquele assunto e fui confrontar minhas fichas. Ao fim das 4 horas eu tinha que ir. Era meio-dia.

-- É. Semana que vem recomeçam as aulas... Vou ter que vir a tarde então. - comentei enquanto recolhia minhas coisas.

-- Então você vai conhecer o Zé. - disse ele. - É o novo estagiário da tarde. É um cara legal.

-- Ah, que bom. - respondi, mas tinha outra preocupação em mente.

Na última reunião, quando conseguimos as passagens para Aracaju, eu e Marconi ficamos sabendo que teríamos que ir a Belo Horizonte antes, em abril, para uma reunião da Comitiva de Estudantes do curso - algo como se fosse uma prévia do encontro propriamente dito. Para isso teríamos que nos reunir as segundas-feiras, e tratar dos detalhes até o evento. Marcamos um encontro com toda a equipe o D.A. em nossa salinha da faculdade às 18h. Mas como voltar à Urca a partir do Fundão naquele horário?

-- Você pode ir no ônibus que sai daqui da Ilha para a Urca. - respondeu Lino quando formulei a pergunta para ele.

-- Sai um ônibus daqui de volta para lá? - aquilo era novidade pra mim. Eu sabia que saia um de lá para cá ao meio-dia, mas ao contrário...

-- Sim. Ele parte do alojamento e segue viagem até a Urca. Ele sai às 17h. - completou ele - Deve dar tempo de fazer seu estágio e voltar para lá, e é grátis.

-- Hum, gostei. - disse animada.

Dei-lhe as costas, puxei minha mochila da gaveta e nela guardava minha agenda.

-- Eu vou pegar esse ônibus todos os dias já que terei o início de minhas aulas também. - ouvi Lino comentar quase num sussurro. Olhei pra ele. - Poderia te mostrar o ponto e te fazer companhia.... Se você quiser... - ele ergueu a cabeça e me olhou nos olhos.

Aquilo espalhou um friozinho desconhecido pelo meu estômago.

-- Hã... Vai ser legal... - murmurei um pouco desconcertada.

Silêncio.
Pisquei um pouco e pendurei a mochila ao ombro.

Despedi-me de todos e saí do estágio. Atravessei o campus e fui encontrar a Lili na Geografia. Voltamos juntas para a parada do ônibus.

Refeita, conversávamos ao caminhar.

-- Você parece animada hoje. - comentou ela sorrindo.

-- É. Acho que estou. - respondi também sorrindo.

Ficamos sob a proteção da parada.

-- Como estão as coisas no estágio? E o Lino? Se sente melhor?

Eu havia comentado com ela, superficialmente, sobre como me senti em relação ao rapaz que trabalhava comigo. Disse a ela que ele era um cara calmo e quieto - até atraente, de certo modo - mas confessei que ele me dava medo. Acho que era porque ele era tão alto, com aqueles olhos orientais... Os japoneses não costumam ser tão altos, né?... A verdade é que eu não sabia explicar direito o que era...

-- Ah, sim. - gesticulei - Foi só uma primeira impressão ruim. - menti - O cara é gente boa. - isso era verdade.

-- Sei. - respondeu ela secamente.

Pegamos nosso ônibus e fomos para casa.
Falamos sobre as coisas aprendidas no dia, nos amigos e na expectativa de volta às aulas. Eu sabia que o segundo período não seria fácil. Eu teria mais matérias para estudar e a atuação no diretório para gerenciar, além do estágio. As coisas poderiam ficar um pouco confusas.

Comentei com Lili sobre as reuniões e sobre a brilhante atuação de Marconi na semana anterior para conseguir as passagens. Depois, falando de assuntos mais amenos, comentei sobre cinema e, sem querer, lembrei-me do Lino.

-- Aquele Lino é esquisitão mesmo... - falei sem mais nem menos.

-- Por que? - perguntou ela.

Eu já estava arrependida de ter feito o comentário. Tinha lembrado do Kamikaze. Mas aquele sonho não era meu. Eu não tinha o direito de contar aos outros. Eu não contava os meus a ninguém... Por que contaria o dele?
Me sentindo uma fofoqueira, dei uma evasiva:

-- Ah, por nada... É aquele jeito dele...

-- Sei. - e fez cara de paisagem.

Eu ergui uma sobrancelha pra ela.

Quando nos separamos em nossa cidade, voltei a me lembrar do que o rapaz dissera sobre seu sonho reincidente. Será que tínhamos mais em comum do que supunha? ... Sei lá...
Segui meu caminho..

A tarde descia sobre a cidade, enquanto minha curiosidade subia.... Como um elevador.

(Continua)