Ryiuniyana (Parte 5)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Alguns dizem que a morte nada mais é do que um despertar para uma outra vida. No meu caso, eu senti literalmente isso.

Enquanto meu corpo morria no sonho, eu sentia as formas familiares da minha cama ganharem consistência sob mim.

Mas eu não queria despertar! Eu queria encontrar Prēmī e me empurrei em direção à inconsciência.

Sabia, no entanto, que era em vão. Eu já estava sentindo meu corpo deitado de decúbito dorsal, real demais. Mais um segundo e estaria totalmente desperta. Foi quando eu ouvi:

-- Gavāhī?

Meu coração disparou ao reconhecer a voz suave, e aquilo só me fez ter mais certeza de que já estava acordada. No mesmo instante, senti a mais leve pressão em meus lábios e junto com ela a sensação de uma presença curvada sobre mim.

A adrenalina se espalhou frenética em minhas veias, mas não abri meus olhos... Deixei-me beijar. Meu Deus! Isso é onírico demais... real demais... Ofeguei. As lágrimas abriram caminho entre minhas pálpebras...

... E a ilusão se dissipou. Como uma brisa...

Abri os olhos. Eu estava só.
Um gemido baixo rompeu meu peito enquanto eu me sentava no colchão abraçando meus joelhos. Não consegui segurar o choro. Era irracional, eu sei, mas não consegui. Sabia que não podia fazer barulho. Era de manhã. Minha mãe iria bater em nossa porta em alguns minutos. Minha irmã dormindo na cama ao lado.

Eu soluçava baixo com a cabeça apoiada nos joelhos. Sentia-me um tanto ridícula chorando por um sonho... só um sonho.
Respirei fundo, tentando me controlar. Passei as costas das mãos nos olhos e ergui a cabeça. Suspirei. Lembrei do beijo de novo... Tão doce... Tornei a chorar.

Mesmo agora, enquanto escrevo estas linhas, não consigo ignorar a dor em meu peito.

Eu sabia que eles haviam partido - Gavāhī e Prēmī. Em algum lugar, eles se encontraram...
Ao menos era assim que eu queria que fosse.

Eu devia esquecer o beijo. Ele era mais uma das minhas "estranhices agnósticas"...

Até hoje não sei exatamente qual fora minha conexão com Gavāhī. Uma antepassada minha? Uma encarnação minha?Hum... Possível, tendo em vista algumas coincidências que ocorreram depois. Mas não provável... De qualquer modo, naquela hora eu não queria pensar em nada. Mal e mal eu conseguia lidar com meus sentimentos confusos, quem dirá pensar em conexões espirituais...

Depois de tentar ser racional meia dúzia de vezes, consegui enfim, controlar aquela sandice.

Quando minha mãe abriu a fresta da porta eu já estava de pé procurando mecanicamente minhas roupas pra sair. Ela sorriu dando "bom dia". Notei que ela viu meus olhos. Deviam estar no mínimo inchados, mas não comentou nada. Ela desceu dizendo que ia pôr o café e que eu acordasse minha irmã.

Naquele fim de semana, por coincidência, eu tinha desmanchado meu namoro com Wendel - um simpático rapaz que conhecera numa festa de quinze anos três meses antes. Imagino que ela deve ter pensado que meus olhos vermelhos e meu ex deviam ter alguma relação...

Mal sabia ela que eu estava feliz da vida por ter desmanchado. Não feliz por ter causado dor em alguém, veja bem. Aquilo não me agradou. Mas feliz por estar livre de novo. Não havia mesmo química em nosso namoro... Nenhuma.

Ele queria uma coisa... Que eu ainda não estava preparada para dar... - se é que me entendem... - Ele estava ficando impaciente, insistente, irritante. E eu também.

Ele frequentava a casa já fazia um mês, quando resolvi acabar com tudo.
Foi chato. Ele ficava me perguntando o "porquê" e eu não tinha um "porquê" para responder pra ele. Eu não queria o que ele queria e pronto! Me constrangia falar sobre o assunto.

Quando ele, resignado, me deu um beijo de despedida e foi embora, eu senti alívio... E um pouco de tristeza também... Nunca mais procuraria
Cigana alguma. Droga!

Quando comecei a namorar com ele no fim da primavera do ano anterior, eu achei que ele poderia ser o tal cara das cartas...
Lêdo engano. Nem de longe.

Naquele dia quente de meados de janeiro, segunda de manhã, minha mãe acorda e me pega de olhos vermelhos no quarto. Ela deve ter associado meu estado a algum sentimento de arrependimento ou culpa... Até fazia sentido... De certa forma eu me sentia culpada sim.

Culpada por frustrar meus pais (de novo); culpada por não me apegar a ninguém; culpada por ser egoísta; não sentir desejo por ninguém; culpada por não saber amar.
Acho que minha noite turbulenta tinha ótimas explicações, afinal.

Saí de casa com cara de enterro (sem piada) naquele dia. Um nó fazia menção de se formar em minha garganta sempre que pensava em Gavāhī e Prēmī. Me incomodava.

Encarar uma reunião na faculdade foi realmente um porre... Só não foi pior pois tínhamos conseguido as passagens para Aracaju.

Eu falo "tínhamos" porque Marconi também estava lá. Ele fora o herói daquele dia - já que naquela mamnhã minha apatia não ia conquistar nem uma passagem de metrô para a a zona Norte, quem dirá quinze de ônibus para Aracaju. Ele fora eloquente e hábil e conseguira o acordo com o reitor. Eu o admirava.

Vi que ele estranhou um pouco minha quietude, mas não comentou nada. Era mesmo um bom amigo...

Saímos da reunião felizes com a vitória - eu não tão efusiva...-, nos despedimos com um abraço fraterno e cada um seguiu seu caminho. Ele tinha que ir para o trabalho e eu para meu novo estágio. Pela hora, eu iria ter que adentrar pela tarde para poder pagar as horas que ficara na reunião. Mas tudo bem. Isso iria ocupar minha cabeça. Era o melhor a fazer.

Enquanto me dirigia pra lá - de ônibus - eu fiquei me debatendo internamente: porquê estava tão triste e incomodada com o sonho? Afinal eu tenho sonhos doidos quase todas as noites... Por que aquele me incomodava tanto?

Só perto da UFRJ é que eu chegara a uma surpreendente conclusão: estava com inveja de Gavāhī Dēnā. Não inveja do destino dela... Não, claro que não. Inveja do que ela tinha com Prēmī.

Tá! Tudo bem. Era infantil mesmo. Essa estória de primeiro amor, amor eterno, e coisa e tal... Eu sei! Mas o que eles tinham era tão lindo e puro e correspondido... Era amor.
E isso não é banal... Não mesmo. É raro... Muito raro.

E tinha a dor. Até a dor eu invejava. Eu sei que parece presunção, mas eu não conseguia me imaginar sofrendo por alguém daquele jeito intenso que ela sofrera pelo garoto - haja vista o que eu fizera ao pobre Wendel... No pity!

Gavāhī parecia ser mais humana do que eu. Sofreu por amor como uma humana, morreu por este amor... Eu era mais uma andróide mesmo. Agnostha. Vivia para fazer meu trabalho: analisar, aprender, planejar, sintetizar, corrigir, agir, organizar...

Mesmo meu relacionamento com outras pessoas era muito superficial. Tinha sorte de conseguir manter algumas amizades antigas... Não que eu fosse uma insensível. Não, acho que não. É claro que eu já tinha me apaixonado antes, na adolescência. Mas eu, mesmo adolescente, sabia que era passageiro. Curtia o momento. Era moda.

Depois de moça eu levantara as barreiras: namoro só para ocupar o tempo! Eu tinha meus objetivos! Queria conquistar independência! Viva as barreiras! Nada seria tão forte para derrubá-las... A não ser um amor como aquele, e eu, certamente, nunca iria encontrar algo como aquilo... Nem ao menos similar... Eu sabia.

Foi com este espírito que cheguei à biblioteca naquele dia e dei de cara com aquele rapaz.

No instante em que nossos olhos se cruzaram eu senti um arrepio correr por minha espinha e a sensação de estar estranhamente desconfortável... Vulnerável...
Medo. Só podia ser medo...

Depois do estágio, lá pela tardinha, enquanto voltava pra casa, até estava rindo comigo mesma. Coitado do rapaz! Deve ter me achado uma maluca! Bipolar!

Primeiro pareço um bicho acuado, e depois, uma tagarela! - ria olhando pela janela do ônibus - Maluca mesmo...

O sol brilhava alaranjado no horizonte daquele entardecer de verão.

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Hoje, vejo como foi estranho o como - de certa forma - aquele sonho se realizou, com seus desdobramentos até bem recentes - tendo em vista a cicatriz em meu pulmão... E pensar que tudo começou naquele dia...

A propósito... "Ryiuniyana" quer dizer "Reencontro".

(Continua)

Ryiuniyana (Parte 4)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A emoção de ver meus pais ali, na entrada da cela olhando para cima, me vendo naquela situação, minou minhas forças...
Sorri-lhes... E em seguida apaguei.

Estava pairando junto ao teto de uma casa - não há outra explicação - quando recobrei o controle.

Era um quarto. Havia uma janela mais alta que larga onde a luz da manhã entrava filtrada por uma cortina fininha azul. Num dos cantos havia um pequeno altar com uma estátua sobre ele, ao estilo indiano. A seus pés haviam pratos com frutas, incenso, e velas.

Sinceramente, o quarto não me interessava muito... Eu queria saber o que ainda fazia ali. Quanto tempo havia se passado? Perdi tal noção - como se isso fosse possível num sonho...

Olhei para baixo e vi um corpo no que parecia ser uma cama.
A moça estava de bruços - seu rosto quase infantil apoiado de lado sobre algo fofo, os olhos fechados e os cabelos compridos espalhados como algas escorrendo pelo outro lado. Estava coberta até o pescoço por um lençol de cor laranja com estampas vermelhas... Rosas vermelhas? Era Gavāhī Dēnā, provavelmente em seu leito de morte, pensei.

Fiquei triste... Lembrei que Gavāhī havia prometido esperar por Prēmī. Já estaria ela morta?

Como se meu pensamento tivesse sido gritado, vi quando o olho que não estava sobre o travesseiro se abriu inicialmente sem foco, mas depois girou na órbita e olhou de soslaio pra mim.

Foi como um tiro!

Num átimo - sem nenhuma decisão consciente minha - estava eu voando para fora da casa!

Foi tudo muito rápido - como num passeio de fórmula 1 - vi algumas casas caiadas de branco, pessoas passando, animais num mercado... e o templo!

Avancei pelas colunas e num segundo minha visão percebeu o corredor seguido pelo quarto ricamente decorado. No segundo seguinte percebi o barulho da briga. Em algum lugar meu coração palpitou com a voz conhecida: era Prēmī discutindo com sua mãe dentro do quarto!

Eu cheguei já no meio da discussão. Seria eu o assunto? Angústia.
Ele estava de pé gesticulando muito, e parecia zangado. Ela, também de pé, bradava os braços no ar, nervosa, a fisionomia dura. Era óbvio que eles não me viam... o que me angustiava mais!

Eu estava confusa e não conseguia entender o que diziam... Eu não conseguia me concentrar... a atmosfera estava muito pesada. Lutei um pouco com meus ouvidos... Finalmente, como se alguém apertasse a tecla SAP, eu comecei a entender:

-- A senhora nunca se importou realmente com meus sentimentos, mãe! - falou ele transparecendo seu pesar.
-- Que sentimentos, Ātmaghātī!? Que sentimentos? Uh!? - exaltou-se ela - Isso que você tem por aquela mandira é simplesmente desejo! Desejo! - ela continuou numa torrente - Você inveja Krūra Ādamī! Roubou-lhe a noiva! - girou os olhos à hipérbole - Meus deuses! Você me envergonha! - a mão na testa. Dramática.
-- Não é verdade! - ele exaltou-se também - Não estou brincando com ela, mãe! Eu vou tomá-la por esposa! - deu um passo duro a frente, apontava - A senhora verá! Ficaremos juntos! - o tom agora era ameaçador.
-- Nunca! - o dedo em riste cortou o ar, e franzindo o cenho continuou - Não criei você sem seu pai para isto! Tenho coisa melhor para ti! - ela bufou.
--Humf! "Coisa melhor" pra mim? - perguntou Prēmī sarcasticamente - ... Ou melhor para sua linhagem real? - cruzou os braços zangado.
--Chega, Ātmaghātī! Você não fica com ela! - balançou a mão para ele e deu-lhe as costas.

Pausaram. Ambos ruminando as palavras ditas.

-- Além disso... - retomou ela, mas dessa vez cuidadosa - Além disso... - baixou o tom - ... Krūra está com ela...

Confusão no ar. Silêncio.

Ela soltou um longo suspiro, daqueles audíveis, e puxando um pouco a saia, virou-se e sentou na cama. Garva Mām notou que agora não poderia recuar, respirou fundo e não encarou seu filho ao continuar:

-- Ele exerceu o direito de castigá-la, Prēmī... Para limpar sua honra...

Ātmaghātī Prēmī congelou onde estava. Seu rosto tingido de surpresa e terror.

-- C-Como é? - perguntou num suspiro.
-- Ele... Ele a levou para a masmorra... - agora ela parecia arrependida.

Vendo que Prēmī a encarava acusadoramente ela continuou, defensiva:

-- Eu não pude fazer nada, Prēmī! Ela era a noiva dele! - gesticulou - Eu não sei o que ele fez com ela... Acho que corpo dela não está mais lá! ... Os pais a levaram...- ela falou de uma só vez como quem se desculpava.

Prēmī ainda estava de pé no centro do quarto. Sua respiração estava cortada.
Senti que a palavra "corpo" reverberou nele. Seus olhos pareciam alucinados. Acusação. Frustração. Dor. Raiva. Vi tudo passar por eles. Imaginei que Prēmī voaria no pescoço dela!

Mas, lentamente, vi sua luz se apagar. Os olhos desfocados.
Ele baixou a cabeça e vi duas pequenas estrelas d'água aparecerem no chão aos seus pés. Sei que sentia dor. Os punhos fechados agora estavam travados ao longo do corpo. Ele estava tentando se controlar... - Aquilo me dilacerava...Ver meu amado sofrendo...

Na cama, Garva estava tensa. Virou o rosto ocultando suas feições. Pensei ter notado algo em seu rosto antes dela se virar. Estava arrependida? Arrependida de quê? De não ter me ajudado? Ou de ter contado meu paradeiro ao filho?

Ela tornou a olhar e notei a humidade em seus olhos. Vendo que ele parecia estar em choque, ela continuou num tom maternal:

-- Prēmī... Por favor... Eu só quero seu bem... Você tem que esquecê-la...- ela esforçava-se para modular a voz que parecia querer embargar - Prēmī? - chamou ela.

Ele não reagiu. Ela forçou:

-- Prēmī... Eu não decidi nada! Krūra Ādamī...
-- Você me matou... - cortou Prēmī suavemente.

Surpresa, ela encarou o rosto dele. Incrédula. O cenho se franziu:

-- Como é que é?

Ele levantou a cabeça lentamente.

Não havia nada lá, nenhuma emoção. Nem tristeza, nem dor, nem raiva. Nada. Só os olhos vermelhos.

-- Você me matou... Vocês me mataram. - e aquela calma de sua voz trazia algo diferente. Decisão.

Vi a compreensão horrorizar o rosto de Garva Mām e me horrorizei também.

-- Ātmaghātī !!! EM QUE VOCÊ ESTÁ...

Ela estendeu os braços levantando-se para segurá-lo, mas já era tarde!
Ele já tinha se virado e saído do aposento a passos duros, rápidos e decididos, deixando-a no vazio.

Eu me desesperei!

"O que você disse a ele!? Que eu morri!?" - gritei sem voz. Meu peito me oprimia. O que ele irá fazer? - "Vá atrás dele, sua burra! Vai! Não deixa ele ir!!! Vai!!!" - bradei angustiada.

Ninguém me ouviu. Ela fitava o vazio.
Avancei sobre ela e gritei de novo: "Vá atrás dele!!! Agora!!!"

No momento seguinte ela ruiu sobre os próprios joelhos e caindo no chão começou a chorar alto e convulsivamente.

Desesperança.
Argh! Orgulhosa!

Não fiquei ali. Perdi a paciência! Ela que se entendesse com sua dor...

Eu - literalmente - voei atrás de Prēmī. Minha cabeça a mil!
Eu já não sabia quem eu era. Se era eu, Alya, se era eu, Gavāhī. Pouco importava! Eu só sabia é que eu não queria que meu primeiro e único amor fizesse uma besteira por minha causa! E voei mais rápido.

Os corredores passavam por mim, o templo era grande. Não conseguia localizar-me. Droga!
Ele deve ter descido para o pátio interno, aonde os homens treinam - concluí... Ou me foi dito. - Sim, sim! - sem tempo para discussão mental agora. E voei apressada para lá.

A claridade me alcançou.

Havia uma roda de guerreiros atônitos. Ātmaghātī Prēmī estava no centro da roda frente a frente com Krūra Ādamī. Ambos em posição de luta. Eles pareciam discutir. Voei em direção à aglomeração com toda a velocidade. Como iria parar aquilo?... Meu Deus! Não!!!

A imagem virou um borrão.

-- Argh!!! - gritei contra minha vontade quando minha mãe passou o unguento em minhas costas. - Não!!! - minha mão segurou o punho dela com força, o movimento fez doer minhas costas, e ela deixou cair o vasilhame do remédio.

Droga! Estava no meu quarto na casa de meus pais! Há quanto tempo? Não podia perder um segundo!

-- Mãe... Mãe! Por favor, me escute! - arfei. Estava difícil falar. Não largava seu punho - Prēmī! ... No templo! Por favor! - estava desesperada. A voz pesava-me. Eu fazia um esforço sobre-humano - Por favor, Mãe... No templo! Por favor... - agonizava. - Temos que ir... !

Minha mãe se assustou, puxou a mão e levantou-se ressaltada. Gritou pelo meu pai.
Ele entrou correndo.

Minha voz era pouco mais que um sopro, mas eu continuei gritando. Tinha que fazê-los entender... As palavras embolavam em minha boca. Pesadas.

-- Pai...! - ar, ar - Prēmī! ... No templo! - inspirei. - Por favor!

Ainda estava de bruços o que dificultava a passagem do ar pela minha garganta. Tentei me virar.
Eles me seguraram.

-- É a febre! Ela está delirando! O que faremos!? - minha mãe parecia desesperada também.

Meu pai dobrou os joelhos ao lado da cama:

-- Minha filha... Calma! - havia embargo e nervosismo em sua voz - Calma!

Eu não tinha mais tempo! Apoiei o cotovelo esquerdo erguendo-me um pouco - doeu - com o braço livre agarrei a roupa dele na garganta. Puxei para perto os milímetros que pude:

-- Vão. Matar. Prēmī!!! - falei séria e olhei bem dentro dos olhos negros dele.

Eu não sei o que ele viu mas sua feição mudou.

Eu o soltei... e caí de novo sobre a cama. Exausta.
Sem me dizer nada, ele levantou-se, olhou para minha mãe:

-- Eu já volto. - e saiu apressado.

Minha mãe parecia triste enquanto se abaixava ao meu lado. Inclinou a cabeça e passou a mão em meus cabelos. Sei que ela era bonita... Toda mãe amorosa é.

Tomei um longo fôlego... Me acalmei, resignada. Tinha que esperar.
Tentei focar o rosto da mulher ao meu lado mas não conseguia. Eu queria confortá-la. Dizer que estava tudo bem comigo. Mas não encontrei minha voz... Na verdade, eu não encontrei meu corpo. Já não sentia mais nada. Meu corpo entorpecera. Era difícil manter-me acordada no sonho... - que loucura... Mas é a mais pura verdade... Eu queria ficar.

Depois de olhar meu corpo com um vinco na testa, minha mãe levantou-se e puxou o lençol que me cobria. Ela gemeu alto ao fitar as estampas vermelhas ... Ah! Entendi... Não eram rosas afinal... Ela chamou mais alguém, um criado, acho, que àquela altura eu já não sabia se era homem ou mulher. Eles, com muito jeito, me viraram de decúbito dorsal. Eu não senti nada.
A outra pessoa se retirou e ela trouxe um lençol limpo e me cobriu.

Olhei para o teto. Para mim já não fazia diferença... Eu só precisava saber o que acontecera com Prēmī... Quanto tempo? Eu já não tinha mesmo tal noção...

O ar entrava e saia mecanicamente de meus pulmões. Meu corpo parecia tremer, mas eu não sentia nada.

Depois comecei a sentir como se meu corpo estivesse mergulhado em água. Era uma sensação boa, mas eu sabia que estava me perdendo...

Olhei para minha mãe que ainda estava sentada ao lado do meu leito. Eu queria dizer a ela que não conseguiria continuar ali - Eu tinha que ir... - mas me segurei porque neste momento meu pai entrou no quarto.

Olhei para ele com ansiedade. Ele parecia soturno e concluí que a notícia não era das melhores. Meus olhos se arregalaram e queria gritar para que ele falasse logo, mas não encontrei minha voz.

Minha mãe olhou com significado para meu pai e cedeu-lhe o lugar ao lado da cama. Ela soluçava, mas abafava o som com as mãos. Ele sentou-se, e pesaroso, pegou minha mão que jazia em algum lugar. Começou a acariciá-la. Eu não senti o toque.

--Filha... - começou ele hesitante - Ātmaghātī Prēmī... - levantou a cabeça e me olhou nos olhos - Prēmī está morto... - concluiu amargo.

Um nó se formou em minha garganta e começou a transbordar pelos olhos mas eu não disse nada. Ele continuou:

-- Ele... Ele encontrou Krūra Ādamī no pátio e o pediu que ele lhe desse o mesmo destino que foi dado a ti... - sua voz era grossa pelo embargo -... Ele pediu... E Krūra aceitou...! - balançou a cabeça - Eles o penduraram... - sua voz falhou na palavra - ... penduraram como o costume... Mas ele teve um sangramento muito forte... Não parou...

Hemorragia, eu pensei. Alya pensou. Meu pai continuou:

-- Ele pronunciou seu nome... - agora as lágrimas escorriam por sua face -... e fechou os olhos... Não abriu mais... - meu pai baixou a cabeça. - Tiraram-no de lá. Mas já era tarde...

Um choque anafilático, eu sabia. Alya sabia.
Ele concluiu:

-- Garva está inconsolável... Krūra foi repudiado por Vacta... - apertou minha mão - Eu sinto muito... Muito, minha filha!

Era informação demais... Eu encarava o teto agora.
Acho que entrei em choque porque meu corpo parou de tremer e minha respiração se acalmou. Só as lágrimas pareciam refletir meu estado de espírito.

Não gostei do que ele fez. Por que acabar com a vida por escolha própria? Eu não tive escolha. Ele tinha. Idiota! Eu não merecia tal sacrifício... Como ele pôde?... Como ele pôde?... Ele fez isso pra ficar comigo? Ah, meu amor! Eu teria te esperado... Esperado por toda a eternidade! Não precisava se apressar...

O pensamento de que ele - que estava atrasado - agora estava adiantado, me fez sorrir...
Ele já estava lá... - seja lá onde "lá" for - ... e me esperava!

Olhei para meus pais ainda sorrindo. Os dois ao meu lado.

-- Estou pronta. - disse suavemente.

Minha mãe não suportou mais. As lágrimas caíam. Meu pai se levantou e acolheu a face dela no ombro dele, confortando-a.

A sensação de água que sentia banhar meu corpo alcançou meu rosto... Eu estava imersa...
Não tive medo. Olhei para eles como quem se desculpa. Eles me olharam carinhosamente.

-- Não chorem...- usei o último ar que tinha - Eu...vou...ver... Prēmī...

E fechei os olhos.

(Continua)

Riyuniyana (Parte 3)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Controlei o nó na garganta e me apressei.
Corri para colocar as frutas aos pés da deusa, derramei mais óleo nas lâmpadas, recolhi as toalhas e fiz a reverência final.

Depois corri para o cubículo e troquei a roupa ritual pelas minhas. Tirei o ōpī, soltei o coque e deixei minhas longas tranças caírem pelas minhas costas. Lavei o rosto e segui para minha célula. Muita pressa, muita pressa... Teriam notado minha ausência?

O corredor dos quartos estava tremulante com a luz das tochas e por isso não reparei que também havia luz em meu quarto. Mal entrei e alguém segurou meus cabelos enroscando minha trança em seus dedos até minha nuca com muita força. Num mesmo movimento, puxaram minha cabeça para trás e para baixo, fazendo-me cair de joelhos. Doeu.

Soltei um grito curto e engasgado como uma exclamação. Minha reação instintiva foi a de tentar alcançar a mão que me segurava e ergui os braços. Me deram um solavanco e gemi alto. "Fique parada", entendi.

Comecei a arfar. Demorou um pouco para compor o cenário à minha volta. A adrenalina gelava meu sangue.

De repente meu ponto de vista girou e eu estava no canto oposto do quarto.
Gavāhī Dēnā estava prostrada na entrada do aposento sob o julgo de um homem alto e forte que inclinado atrás dela, a imobilizava pelos cabelos.

Porque não pude avisá-la do perigo? Eu tinha visto um movimento no salão... Droga!... Concluí tardiamente que a Alya que observava e a Gavāhī que vivia a situação não compartilhavam as visões...

Haviam mais dois homens de pé no quarto. Um ao lado esquerdo e outro de frente para ela, de costas pra mim.

Não era preciso muita imaginação para ver que aquele que segurava seus cabelos e o que estava ao lado esquerdo eram soldados/guerreiros. As mesmas calças bufantes...
Mas o homem que estava de pé, de costas para mim, era distinto. Era alto e musculoso como um halterofilista. Eu só via suas costas largas e nuas, com uma trança comprida ao longo das vértebras. Ele encarava Gavāhī. Estava tenso. Tinha seus punhos fechados, uma postura rija e imposta, avultando-se sobre ela.

No lado direito do quarto, no canto mais escuro, estava Garva Mām que, ao que parecia, estava sentada à beira da cama da moça.

Foi um momento muito confuso pra mim.
Meu ponto de vista se alternava entre os olhos que viam a cena e os olhos que sofriam o bote.
Olhei para a frente e vi os olhos apertados de Krūra Ādamī, sua testa franzida, seu queixo rijo. Ele era um homem másculo... quase bonito... Mas ali era o rosto de uma fera. Meu algoz...

Olhei como pude para o lado e vi a face insultada de Garva Mām... Toda a nossa amizade perdida...

-- Garva... - gemi, meus olhos se enchendo d'água - Eu posso explicar...

Pra quê tentar fugir ou dissimular o assunto? Eu já sabia o que eles tinham visto...

-- Cale-se! - ela gritou comigo e seu grito repercutiu no meu peito. Solucei ao calar - Quem você pensa que é!? - ela franziu a testa e a boca como se estivesse com nojo. Virou o rosto.
-- Garva... - tentei de novo.

Nem terminei. O tapa me calou dessa vez. Meu rosto queimou.

-- Falsa! - gritou Krūra Ādamī, sua mão ainda pairando no ar. - Como pôde me envergonhar desse jeito!? - havia dor nos olhos dele... e raiva, muita raiva.

Ele gritou uma rajada de palavras que sob qualquer língua que fosse aquela que eu estava ouvindo eram, com certeza, insultos e palavrões.

Ele era um homem a ser respeitado! Um guardião do templo! Um líder ! Um semideus! Como ela ousou pôr por terra a honra que ele a legara quando fez dela sua noiva? Mulher desprezível!

Ele continuou falando e falando... Me senti confusa... Não entendia tudo... Ele estava muito alterado. Gavāhī Dēnā ouvia a tudo entre lágrimas, fechando os olhos e mordendo os lábios. Perdida.

Após a explosão, Krūra silenciou, respirou fundo e se endireitou. Ele olhou para Garva Mām - talvez esperando uma outra manifestação dela. Ela estava impassível. Fria e distante. Provavelmente ruminando o fato. Havia um brilho vacilante em seus olhos. Chorava?

Krūra Ādamī não esperou mais nada. Ele franziu o cenho e seus olhos pareciam opacos. Estava pensando. Hum... Mau sinal.

Minha cabeça doía devido a posição.
De repente Krūra se abaixou e segurou meu maxilar com força fazendo-me olhar diretamente para seu rosto.... Eu vi a decisão em seus olhos... e era a morte!

-- Você será um exemplo para esta vila... - falou calmamente entre dentes... e lá estava minha sentença.

Garva Mām não disse nada. Fitava a moça com ar superior, querendo mostrar a ela de quem era o erro. Ela sentia-se enganada, iludida, desafiada e desonrada. Como pôde acolher uma cobra naja num templo sagrado? Ainda assim, não queria sujar suas mãos com aquela criança... O noivo que fizesse o que achasse ideal para limpar seus nomes. Ela mesma só iria ter uma conversa com Ātmaghātī Prēmī mais tarde, quando ele voltasse do campo. Certamente que ele seria repreendido. Ela deveria parecer severa. Onde já se viu? Alguém da estirpe dele portar-se como um ladrão de mulheres!?... E justo uma mandira noiva! Humpf!
Ela teria que casá-lo logo, o mais rápido possível, para que isso não ocorresse de novo...

Chega!
Forcei a acordar.
Não aguentaria mais daquela torrente de informações!
Já não me bastava estar na cabeça da moça e agora estava na cabeça da mãe também!?
Eu já tinha visto o suficiente! A moça morre e pronto! Já chega!!!

Rolei na cama e senti o travesseiro sob meu rosto... Mais um pouco... - Anda! Acorde!

Como se estivesse sendo abduzida pelo sono, meu corpo se entorpeceu novamente, sem sequer me deixar acordar de verdade. Meus olhos rolaram em suas órbitas e quando os abri eu estava num ambiente escuro.
Onde?

Olhei em volta e vi que estava encarcerada.
A luz tênue que vinha da fresta da porta fechada atrás de mim e o ar frio e parado só me deixavam perceber que eu estava num espaço amplo mas sem janelas. Haviam peças metálicas no chão e juro que na hora pensei que estivesse vendo peças de obra de arte... Que estivesse num depósito... Mas não. Era ferro retorcido... Grilhões?

Olhei para a parede mais próxima de mim e ela tinha... Espetos? Não. Garras?... Não... anzóis... É!Ganchos!... Isso! Anzóis de ferro. Toda a parede coberta de anzóis bem próximos uns dos outros... Mas pra quê?

Apertei mais meus "olhos" e foi quando percebi os filetes escuros, como códigos de barras sinistros, marcados na parede... Acompanhando o traçado, olhei para cima.

Eu quis gritar!!!

A moça, Gavāhī Dēnā, estava pendurada na parede! Como um espantalho... Um espantalho humano - os cotovelos erguidos, os braços pendendo, a cabeça inclinada...
Meu Deus!

Eu estava horrorizada! Ela estava içada pelos anzóis... Nas costas, nos braços... Estes estavam fincados em suas carnes como piercings do terror!
Não dava para ver os detalhes - estava escuro - mas dava para ver as peles repuxadas. Eu não tinha dúvidas... Os filetes só podiam ser sangue... sangue seco.

Meu Deus... Eu não tinha braços para levar as mãos aos olhos... Nem pernas para correr dali...
Que ignorância! Que atrocidade!
Além de horrível, a cena era triste.... Coitada! Tão jovem!
Meus olhos baixaram sem nada ver... Eu queria chorar...

Quando os ergui, dei conta de que ainda estava viva. Quanto tempo havia se passado? Um dia? Dois? Não importava... Minhas horas estavam contadas. Estava difícil respirar...

É certo que um dos ganchos - intencionalmente ou não - perfurara meu corpo mais fundo... Mais fundo que a pele... Tudo bem... Já não sentia dor, o que significava que estava mesmo morrendo... Seria breve então. Não tinha medo... nem raiva.

Sei que minha morte não limparia a honra de Krūra Ādamī. Talvez até fosse pior...
Vacta o repreenderia pelo que ele fizera comigo. Vacta não teria deixado isso acontecer... Ele não gosta destes costumes antigos que envolvem sacrifício humano. Mas Vacta estava no campo, preparando os rapazes para a cerimonia da passagem...
Tudo bem... Já não há nada a ser feito mesmo...

Na verdade, eu tenho minha parcela de culpa também... Destrocei a honra de dois Grandes de minha vila, fora a vergonha que meus pais deveriam estar sentindo agora... Ainda bem que não os veria mais... Seria difícil me desculpar...

Mas não sentia culpa por ter amado Prēmī. Não. Isso não. Eu teria feito tudo de novo e de novo, e morrido quantas vezes fosse necessário para estar com ele...

Minha maior tristeza nisso tudo era não poder cumprir minha promessa de esperá-lo. Está difícil ficar... Respirar.

Se a Deusa da Morte permitir, ficarei o quanto possível... Pobre Prēmī... Espero que Garva Mām lhe arranje uma noiva logo... assim ele não sofrerá por mim por muito tempo... Não quero que ele sofra... não quero...

Esse pensamento fez meus músculos tremerem. Estaria com febre?

Os pensamentos de Gavāhī Dēnā eram como um riacho sobre pedras: irregulares e sem contenção...

A luz cegou a nós duas quando vi a tocha que apareceu na entrada da cela. Um soldado a empunhava. Ele olhou friamente para a moça pendurada e virou-se de lado para dar passagem ao casal que o acompanhava.

--Gavāhī... Filha amada...

(Continua)