Cigana

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Era uma galeria.

A sala comprida era iluminada por candelabros de cristais. As paredes em terracota eram adornadas por colunas jônicas que formavam arcos espaçados. No centro de cada arco, a altura dos olhos, havia quadros emoldurados ao estilo Luís XV. Um lugar sóbrio, mas bonito.

Minha consciência veio tranquila. Sonhava.
Eu estava só, o ar úmido e parado. O silêncio era quase tátil mas não me sentia ameaçada. Percebi-me caminhando quando vim da inconsciência.

Bem... já que estava ali poderia apreciar as obras - pensei. Sempre gostei destas coisas eruditas, apesar de não me considerar uma. Bibliotecas, museus, exposições e coisas deste tipo sempre estiveram na categoria de "diversão" pra mim.

Mas qual seria a utilidade de visitar uma galeria em sonho? - pensei eu - Sonhos sem-pé-nem-cabeça me são normais... Nem ponho estes sonhos na conta de sonho lúcido, projeção, nem nada parecido, mesmo que eu esteja semi-consciente (eu sempre sei que estou sonhando). Aquele sonho parecia não ter enredo algum, mas estava estranhamente vívido. Eu caminhava feito uma alma penada silenciosa num salão cheio de quadros.

Hummm... os quadros...

Olhei o que estava mais próximo de mim. Parecia borrado... um jardim de Monet?
Avancei mais um pouco... o segundo... sei lá... tons de cinza e azul... uma mesa ou estrada... ou corredor em perspectiva?

Estava difícil.... Os quadros iam mudando de padrões no momento em que eu os encarava. Lembravam arte pontilhista... depois cubista... Embaçados... Embaralhados...
Dava dor-de-cabeça tentar focá-los.

Era estranho.
Quando olhava para eles um pouco mais de longe, conseguia identificar alguma coisa: um quadro com uma dama de chapéu... Um de carruagem... E aquele outro? Que era aquilo?... Roedores num prato?... Todos seguiam o mesmo padrão indefinido... Mutante.

Encarava-os de cenho franzido. Droga! Me doíam os olhos... Mas por que será que estou aqui? Continuei andando.

Passei por uma moldura. Meu reflexo lampejou... Um vulto negro e grande...
Ah!!! Putz! Que susto! - exclamei. Era um espelho. Espremi os olhos e os arregalei em seguida - Aaah! Agnostha!

Meu reflexo espelhava Agnostha. Estava Agnostha. Seu corpo cintilava à luz dos candelabros. Olhei automaticamente para minhas mãos.... Humanas. - Ãh!?
Olhei meu corpo... humano?... vestindo um camisolão branco. Pés descalços. - Mas... hein!?

Ergui a cabeça para olhar o espelho de novo e o reflexo respondeu... era ela... quer dizer, eu... Grande, e de um grafiti quase negro, os olhos brancos cintilando pérolas, com ar de surpresa.

Ai, puxa vida... isso é tão cliché... - pensei - ...isso de você parecer uma coisa e seu reflexo espelhar outra. Já vi isso em vários filmes... - ri para mim mesma. - Esse sonho tá esquisito mesmo... - àquela altura Agnostha já não me era estranha. Eu estava mais que acostumada com ela. Já fazia uns 5 anos que eu e ela éramos a mesma.

Bem... Pelo menos acho que nada de mal vai me acontecer... - e balancei a cabeça deixando o espelho para trás.

Segui para o fundo da sala. Um último quadro grande estava pendurado.

Este não estava borrado. Ao contrário. Eram um quadro bem nítido.
Uma cena Art nouveau: um cavalheiro de fraque e cartola ao pé de uma escadaria floreada segurando suas luvas e bengala. Olhava para o alto da escada como se fosse subi-la ou aguardasse alguém descê-la.

Era bonito... se bem que num primeiro momento achei que o carinha pintado me lembrava o Mandrake... Sorri.

Continuei olhando...olhando.... E enquanto olhava fui sendo tomada por um sentimento estranho... Uma certa ansiedade começou a borbulhar em meu estômago.... Algo incomodava... Senti-me intranquila.

Cheguei mais perto. Inclinei a cabeça diante do quadro. Olhei mais... Seria um mordomo? Não. Não... Muito arrumadinho... Nada a ver... Um cavalheiro, então?... Não... Não só um cavalheiro... As flores...O olhar... Um enamorado???

Ao pensar naquilo meus joelhos ficaram meio... moles. Meu corpo parecia... sei lá... morno. Minha respiração ficou irregular e os batimentos descompassados.
Me deu ânsia de correr dali como se o cavalheiro do quadro pudesse sair da pintura e me pegar... meus pés não respondiam... encarava-o. Ele era bonito. Bonito?... Vai sair do quadro!... Vai sair!Vai sair!Meu Deus... Vai me agarrar!Eu queria que ele me pegasse?

Luz!

Acordei do nada, com aquela imagem na cabeça: o Cavalheiro.
Olhei para um lado...pro outro. Tudo escuro. Quarto normal. Bah!... Quanta besteira!

Levantei e fui tomar meu banho. Minha irmã já tinha ido para a escola e meus pais e irmão, pro trabalho. Estava só em casa pelo menos até o almoço. Aquele dia ficaria mais interessante quando meus pais retornassem. Iríamos sair à tarde.

Estava com 18 anos e recentemente havia feito minha matrícula para o primeiro período da faculdade. Estava vivendo dias de marasmo - aquele período em que você está desempregado, fora do ginásio e esperando as aulas da faculdade começarem.

Havia ansiendade pelo início das aulas.... isso poderia explicar a noite estranha.

Enquanto banhava-me, lembrava de como tinha crescido mental e fisicamente. Acho que tive uma adolescência bem legal. Aquela garota introvertida, que se tornou Agnostha aos 11-12 anos, mudara bastante. Acho que em grande parte devido a ela.

Tornar-me heroína de meus próprios sonhos deu-me segurança na vida real também.
Consegui um certo destaque na escola e no ginásio - chegando a ser popular entre alunos e professores (pois é... que nem aqueles filmes americanos que tem a fulaninha popular). Saía mais. Ia para as festinhas americanas, para as festinhas de rua, festa junina... Fortaleci-me. E mesmo as eventuais brigas de meus pais em casa (isso demorou a passar....) já não assustavam tanto. Eles que se entendessem... eu daria meu apoio aos dois.

Namorei bastante também (meu primeiro beijo foi sobre uma bicicleta!) apesar de não me achar bonita (garotas magricelas de cabelos encaracolados castanhos, cheios como uma juba de leão, não estão nas capas de revistas, né?)

Espere aí... Namorei? Hum, bem... Acho que "ficar" é a palavra mais correta. "Fiquei" bastante... Beijei muuuuito!
Fala sério!... Detestava namorar! Quero dizer... Namorar firme.
Namorar implicava em compromisso. E isso eu não queria. Tava fora!

Olhando por este lado - o lado dos namoros - eu não estava muito "bem na fita" com meus pais.
Eu já estava, como disse, com 18 anos e quase não namorava "oficialmente". E isso, eu sabia, os decepcionava um pouco.

Sabe como é, né? Eu era a Mais Velha; a Estudiosa, a Responsável, jovem... Era a Moça da Casa. E quando você chega nesta fase, pronto!... A família começa a cobrar casamento, pretendentes, compromisso... Os pais querem que seus filhos se encaminhem na vida. Querem mostrar à sociedade que fizeram um bom trabalho na criação dos rebentos.

Meus pais não cobravam abertamente, mas ficavam meio receosos quando me viam sair com Deguinha, minha amiga, e só e sempre com ela. Nenhum rapaz. Sendo mulher e nunca sendo vista acompanhada - eu nunca levava ninguem lá em casa... - os parentes fofoqueiros - eu sabia - começaram a falar... "Será ainda virgem?", "Não é!", "Não fica com ninguém!", "Deve ter problema!", "Será sapatão?", "Só quer estudar!", "Deve ser chata!", "Encalhada"... e por aí seguia. Eu não estava nem aí para os comentários.

Me lembro bem: quando ficava com alguém e o cara falava que queria conhecer meus pais, eu puff!... Saltava fora. Isso aí. Terminava mesmo.
As poucas vezes em que os namoros evoluíram para a fase da apresentação; os poucos que conseguiram ser apresentados aos meus pais (...e isso dá pra contar nos dedos de uma só mão antes de chegar ao 5...) foram namoros que não duraram nem 3 meses. Meus pais reclamavam de que quando eles estavam se apegando a alguém, eu "chutava" o cara.

A verdade é que eu não me apegava a ninguém... Era tudo passatempo...
Acho que quando ganhei confiança em mim mesma, fiquei também mais independente. De certo modo, apesar de apreciar belos rostos e corpos, achava que, no geral, os garotos eram sempre desinteressantes... Além do mais, eu não queria saber de namorado a sério. Era jovem e iria concentrar meus esforços em minha individualidade. Queria estar livre pra curtir minha fase de faculdade, me formar, e depois trabalhar e ir morar sozinha. Sair de casa era meu maior sonho.

Esse era o plano, "Meu Glorioso Plano": ser a garota independente.

Todos os meus sonhos giravam em torno de ser autossuficiente.
Ter meu apartamento, minhas coisas, meu carro, meu dinheiro. Poder viajar sem ter que me explicar para ninguém ou ter a obrigação de voltar. Conhecer o mundo com minhas próprias economias...

Para isso eu seguiria uma linha reta: estudar, me formar e trabalhar. Nada, nem ninguém, me moveria daquilo. Nada de se encantar com ninguém que não fosse apenas distração. Sem compromissos.

Acho que foi por isso - pra saber o que ia em meu coração - que minha mãe me convidou para visitar uma cigana com ela... com a desculpa de fazer previsões de Ano Novo (minha família sempre teve um pezinho lá na senzala, no terreiro... e na fogueira as bruxas. Minha bisavó era uma cigana espanhola que se casou com um português e veio para o Brasil. Meu avô materno era filho de índios com negros - mameluco. Só meus avós paternos escapam da mistura. Eram italianos. É muita cultura misturada). E eu, exotérica como sempre, concordei em ir.

Passei a manhã dando um jeitinho na casa (não tínhamos empregada...). Eles chegaram por volta das 14h e após me vestir saímos.

Meia hora depois estávamos lá. A casa era simples mas agradável aos olhos. Qualquer um que chegasse ali não concluiria que se tratava da casa de uma espírita cigana. No interior, cores claras. Sofás confortáveis ladeados por abajures em tons pastel.

Ficamos eu e minha mãe ali na sala aguardando nossa "consulta"(meu pai aproveitou para resolver problemas bancários e saltou fora... não queria saber daquelas coisas...). A moça que nos atendeu dissera que sua mãe estava se vestindo e que já nos atenderia.

Eu já estava arrependida. Como é que deixei minha mãe me convencer? Curiosidade é uma merda! Vai que ela fala alguma coisa que eu não gostaria de saber! Vai que ela fala que eu iria morrer? Que eu iria sofrer um acidente? Ficar aleijada?
Fiquei batendo o pé enquanto esperava. Impaciente.

Finalmente, uma senhora sorridente de uns 60 anos chega à sala. Estava vestida a caráter, mas sem exageros. Uma blusa de linho e lesi amarela, uma saia vermelha com fios dourados, um lenço de organza também vermelho sobre a cabeça.

Após as apresentações, ela chamou minha mãe primeiro que a seguiu até a um vestíbulo cuja porta ficava no corredor.

Fiquei lá na sala esperando a consulta acabar. Aposto que a mamy estava perguntando sobre seu casamento... Enquanto isso a moça me trouxe um café. Eu aceitei de bom grado.

O que será que eu gostaria de saber sobre minha vida? - pensava eu - Tudo estava tão parado pra mim...Todo o mundo que eu conhecia estava mais ou menos no mesmo esquema: fazendo cursinho pré-vestibular, concursando ou tentando um emprego...
Desde que passara pra faculdade há dois meses, quase não saía... Também pudera... Fora um período muito exaustivo tendo que estudar aquilo tudo. A exaustão do vestibular foi tanta que tive até uma paralisia num braço. Fui parar no pronto-socorro. - balancei a cabeça - Não queria pensar naquilo... Naquele outro sonho maluco... O sonho em que meu braço "fantasma" não colava em meu braço "real" e nesse desespero acordei sem o tato no bendito membro. Levei uma semana para recuperar-me totalmente. No final, a conclusão era de "estafa". "Estafa"... Sei... Minhas noites é que não eram normais mesmo... - pus a mão no queixo e ri sem querer - Aliás, confesso que se não fossem minhas noites serem animadas de vez em quando, eu provavelmente, teria morrido de tédio naquele período.

Nesse momento lembrei-me do sonho matinal... Bah! Sonho bobo...

Estava rememorando aquilo tudo quando minha mãe reapareceu. Estava sorrindo. Deve ter tido boas notícias....

-- Agora é sua vez, meu bem. - disse a senhora com um sorriso.

Levantei insegura. Lancei um último olhar pra minha mãe que acenou com a cabeça: vai!
Suspirei e acompanhei a senhora até o vestíbulo.

Na salinha, tudo muito simples também. Uma pequena mesa quadrada forrada com uma toalha branca e um caminho em cetim vermelho onde as cartas repousavam. Uma vela acesa em um dos cantos.
A janela tinha cortinas fininhas que deixavam entrar o sol da tarde, clareando o ambiente, mas deixando aquele aspecto meio surreal em tudo.

Sentei na cadeira da consulente e ela tomou sua posição. Fechou os olhos e começou a orar. Acho que era um Pai-Nosso... não... talvez o Credo... ela sussurrava. Fiquei quieta e comportada. Olhei a pilha de cartas. Eram maiores que um baralho comum. A face que via era decorada com arabescos vermelhos e brancos.

As mãos da senhora avançaram sobre a mesa e ela pegou as minhas que repousavam na beira.
Ela me olhou por um breve momento e entendi que devia me concentrar com ela. Através de minhas mãos senti que ela tremeu rapidamente e no segundo seguinte não era a senhora que estava ali comigo, mas sim o espírito da tal Cigana.

-- Então, filha minha. - disse ela - Vamos ver o que as cartas têm a dizer-te.

Olhei para ela e tive a impressão de que aquela senhora parecia mais jovem. Suas sobrancelhas se arqueavam parecendo muito mais negras agora. Ela começou a embaralhar agilmente as grandes cartas. Pediu que eu as cortasse em 3 montes e depois de reajuntá-las as distribuiu em algumas fileiras sobre a mesa. A medida que ela ia virando as carta eu ficava mais inquieta. Incomodada.

Uma estranha sensação de familiaridade assomava-se sobre mim apesar de eu nunca ter visto aquele tipo de tarot antes. As imagens eram ricamente ilustradas. Art nouveau...

Meu Deus! Meus quadros! - um arrepio percorreu minha espinha se espalhando pela nuca e braços quando reconheci.

Eu não sei que cara fazia enquanto a via enfileirar as imagens que consegui me lembrar de ter visto borradas em minha galeria onírica. A carruagem, a dama, os roedores, flores...
Meu olhos arregaldos, certamente.

A última fileira era composta de 3 cartas que ela manteve viradas. Eu já estava assustada.

Com uma técnica que nunca vira antes, ela começou a ler pra mim. Ela tocava as cartas uma a uma com o dedo indicador direito, dizia seu significado e com a mesma mão recolhia a fileira na direção oposta, batendo cada montinho recolhido três vezes sobre a mesa antes de somá-los ao monte precedente. Sua voz saía como uma ladainha, baixa, usando todo o ar, chegando quase ao limite de seu fôlego. Lembrava uma oração.

Ficava difícil acompanhar as revelações e o ritmo frenético com que ela apontava e recolhia as cartas. Suas frases eram pontuadas pelas palavras: "Filha minha".

Ela falou muito.
Das coisas que me lembro, - e que pude entender - a imagem dos roedores (eram ratos) associavam-se à palavra "desgaste"... Desgaste de energia. A carruagem, na posição em que estava, significava "viagens" nacionais e internacionais. A dama na ilustração relacionava-se à "influência", as flores, à "vitória dos esforços de trabalho", e assim foi...

Achei tudo de uma banalidade total. Só me chamou a atenção ela ter visto que eu me recuperava de algum problema nas mãos (na verdade era no braço - a paralisia) e que eu tomasse cuidado com "correntes d' água". Huh... até aí nada. Acho que teria conseguido ler aquele tarot eu mesma...

Foi aí que ela chegou até a última fileira. Virou as últimas três cartas.
Com desenhos floreados e cheios de detalhes, estavam lá a "Estrela", os "Enamorados"... e, ao pé da escadaria, lá estava meu "Cavalheiro"... na verdade, o "Amante". Não havia como ter dúvidas. - Caraca!!! Eu devia estar preparada...! Se tudo me era familiar até ali! - Mas não adiantou, meus olhos estavam mais arregalados e engoli em seco.

Ela pegou justo a carta do "Amante" nas mãos e, fugindo do padrão que seguira até então, mostrou-a pra mim:

-- Filha minha, conhecerá um rapaz. Seu coração espera por ele. Não demorará. Ele também espera por ti. - sua voz parecia uma profecia.

Sentia-me confusa e surpresa. Ela continuou:

-- Ele será importante pra você, filha minha. Fará diferença.... Mas... - mudou o tom sinistramente - Você ainda é muito jovem... E ele também.

Ela tava brincando, né?
Pô... vou lá pra saber de estudo, trabalho, e profissão, e ela me vem com esse papo de namorado?

Aquilo me incomodou, mas, após o susto inicial me controlei e fiz cara de paisagem.
Ela pousou a carta sobre a mesa e me encarou. Acho que ela notou alguma coisa em minha expressão:

--Filha minha... Ninguém é uma fortaleza solitária...

Ela levantou-se. Segurou minhas mãos (estavam frias) e após um rápido tremor vi aquele alterego jovem dar lugar a senhora sorridente.

--E então? Gostou da consulta? - perguntou ela. Era outra pessoa.

Eu me limitei a acenar um "sim" com a cabeça. Estava meio confusa com a sequência - meus quadros eram as cartas... Cavalheiro que era amante... Fortaleza... - Saí de lá meio bamba.

O que meu futuro reservava pra mim?
Não via a hora das aulas começarem...

(Continua)

Mix (Parte 4)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Era tudo tão insólito que eu já nem ligava.
O que pensar? Estava flutuando através de colunas de concreto e metal, com uma estrela pairando sobre minha mão, à procura de um bebê morto para entregá-lo a uma mulher morta, para levar a ambos para o céu. Simples assim.

Embotei um pouco o raciocínio e foquei em cumprir minha tarefa.

A estrela era uma bússola eficiente. Eu desviava um pouco e seu brilho diminuía, eu virava para a direção certa e seu brilho intensificava. De repente eu lembrei de que não gostaria de ver uma criança morta como vira a mãe... Acho que choraria se o visse...

Como se uma inteligência superior me ouvisse, o cenário mudou. Como se reconstruído, ele voltou a ser o hospital e eu vagava por um dos corredores, agora menos iluminados. Era como um filme sobreposto: o filme bonito rolando sobre o filme feio... eu sabia. Não sei como sabia, mas sabia.

Notei que a surdez fora removida, no entanto, ainda não ouvia outras pessoas. Nem as via. Era como se tivessem fechado meu foco... um objetivo. Faça! E assim avançava.

Virei num corredor e vi a sala onde estariam os bebês. Estava escura. Mesmo assim, quando entrei nela, vi claramente que havia somente bercinhos vazios. Aquilo me confundiu um pouco. Já haviam levado os bebês?

Sim. Os bebês já haviam sido levados... Pelo menos todos aqueles que queriam ser encontrados pelos entes queridos...

...Todos aqueles que queriam ser encontrados pelos entes queridos... Hum... - minha alma gemeu - Elevei a mão que segurava a estrela usando-a como a um candeeiro.

--Vamos pequenino... Ela o quer! Apareça! - disse mentalmente.

De repente a estrela em minha mão fulgurou como um pequeno sol e a sala inteira iluminou-se como o dia. Por um segundo meus olhos foram ofuscados pela claridade e no segundo seguinte consegui ver o solzinho que saíra de minha mão pairar sobre um dos berços descendo suavemente. Fiquei onde estava, um pouco perplexa. Um corpinho começou a se formar em torno da estrela que agora era o coração. A luz foi diminuindo inversamente proporcional aos contornos que apareciam em seu lugar. Alguns momentos depois estava aquela coisinha se mexendo sobre o colchão.

--Você está aí... - disse sorrindo...e quase chorando.

Era o bebê. . Um menino recém-nascido, bem pequeno. Tinha cabelos negros fininhos sobre a cabeça e dedinhos compridos com braços gordinhos. Seus olhos eram grandes e negros. Olhavam-me como se soubessem quem, ou o quê, eu era. Ficou batendo as perninhas e as mãozinhas descoordenadas.

Me aproximei e o peguei do berço... Nunca tive jeito com crianças, ainda mais bebês... e lá estava eu dando uma de anjo... pensei.
Aconcheguei-o a meu peito. Ele não chorou nem por um momento... eu em lágrimas. Flutuamos dali.

A volta foi rápida e nem precisei chamar. A energia dela, a mãe da criança, encontrou-me no caminho.

--¡Mi hijo!- exclamou em júbilo.

Eu não disse nada. Já estava muito emocionada. Passei o bebê para seus braços e ela, carinhosamente, apertou o rosto dele contra o seu. Olhos fechados e sorriso na boca. Lágrimas descendo sobre a face enquanto murmurava frases de afeto.

Fiquei olhando. Segurando a emoção. Já estava chorando, sem soluçar. Nesse momento aquela estranha certeza me voltou e estendi minha mão a ela, que sorrindo a segurou. Flutuei tirando-nos dos escombros como um fantasma. O cenário feio de novo.

--¡Muchas gracías! - balbuciou ela pra mim quando pousamos sobre os escombros.

Sorrindo, senti que não estávamos sós. Senti presenças ao meu lado. Eram adultos. Não me virei para olhar. O clima era bom, então confiei.
Íamos subir. Soube. Sempre saberia. Agora eu era Agnostha...

A moça estava tranquila. Seu bebê ao colo. Ela acenou com a cabeça assentindo para aqueles que eu não vira. Estava pronta agora. Senti um bolsão de energia se formar. Como num elevador, todos subimos juntos: Eu, a moça com o bebê de feição feliz, e os que estavam a meu lado. Olhei pra cima... Ia para o céu também?

A sensação foi estranha... A medida que subia, acordava, caindo em meu corpo. Não dá para explicar isso....

Acordei calmamente, com lágrimas nos olhos. Estava muito feliz. Orgulhosa de mim mesma.
No café da manhã, cheguei a comentar com minha mãe que tivera um sonho bonito naquela noite, mas não entrei em detalhes... iria assustá-la...

O mais engraçado é que só fiquei sabendo do terremoto no México dias depois... Eu quase não via TV e era época de provas de quarto bimestre, eu tinha que estudar...

Quando soube fiquei meio confusa, mas não posso relacionar meu sonho com nada que tenha ocorrido lá realmente... Quero dizer... Não pode ser clarividência, nem mediunidade, nem nada disso... Acho que não... Acho que sou só supercriativa.... Eu acho...

O fato é que estar Agnostha só diz respeito a mim. O que significou tornar-me Agnostha?
Sei lá! Quando é que um adolescente toma consciência de sua posição em relação ao mundo que o cerca? Como é que ocorrem os mecanismos do amadurecimento? O cérebro cresce? Nascem neurônios? Eu não sou psicóloga muito menos neurologista, então vocês vão ter que pesquisar isso pela Internet.

De qualquer forma, acho que foi isso que ocorreu comigo naquela noite... Acho que cresci. Entendi minha posição na família, em relação ao problema de meus pais, separei nossas vidas pessoais, desvinculei minha vida da vida amorosa deles. Eu continuaria crescendo e vivendo, eles se separassem ou não. Eu seria forte. Daria todo o apoio necessário aos dois se precisassem de mim, mas teria minha própria vida pra cuidar.

O interessante é que a adolescência passou.. a juventude chegou e...continuei Agnostha. A juventude passou...com seus amores e dores e ... Fato é que sou assim até hoje.
Depois que tive aquele desdobramento astral, já adulta, as coisas pioraram mais um pouco... Fiquei mais maluca?... sei lá.

Se ainda estiver interessado vou lhe contar como a realidade e a ficção começaram, sutilmente, a se misturar.

(prox. Capítulo)

Mix (Parte 3)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Aquele momento foi mágico. Apesar de toda dor em volta, eu senti a magia.

Estávamos de pé, de frente uma para outra sobre aquele monturo de cascalho. Eu era mais baixa uns 40 centímetros que ela, com seus 2 metros de altura.
Olhei pra cima com determinação:

-- Estou pronta. - respirei

Entrelaçamos as mãos como duas amigas a brincar de roda.
Eu e você somos uma só. Somos a mesma. Entendi.

Ela me deu um olhar carinhoso e imediatamente vi. Vi quando sua cor foi lentamente mudando de grafite para prateada. Mas ela não estava ficando prateada, era só uma impressão. Na verdade era uma luz que emanava de seu corpo, deixando tudo claro em volta.

A claridade foi aumentando e não conseguia mais ver sua expressão.

A luz, agora ofuscante, começou a fluir para meus braços. Como se fosse água. Como se eu tivesse posto minhas mãos num riacho de luz.
A luz escorreu pelos meus braços, subindo pelos meus ombros e, num lampejo branco, todo o meu corpo se iluminou também. Eu era luz!!!

Em volta, tudo estava branco também. Eu não via mais aonde estava... nem Agnostha.

Comecei a ouvir um acorde pulsante e por segundos vi-me de volta a meu quarto. Cadê a luz? Não sentia a cama... O quarto parecia balançar (Ou era eu tendo um espasmo?).

Um calor agradável banhou meu corpo e me esforcei por não despertar daquilo... Era bom. Eu me sentia morna. Pareceu-me que eu estava girando sobre meu próprio eixo, solta no espaço como um astronauta vagando fora de sua nave.

Sonhava de novo. Estava mesmo no espaço. Enquanto flutuava girando, raios de luz vinham do infinito e, atingindo minha pele, metalizavam-me. Tornava a brilhar.

Eu me sentia estranha. Já não era estranho o bastante?

O som castigava meus ouvidos e eu podia sentir a luz sendo gravada sobre meu corpo. Aquilo foi aumentando... aumentando..., meu corpo todo coberto, tudo era luz... Já não conseguia pensar direito... Girando, girando, queimando, queimando, brilhando, brilhando... Até que, como se fosse uma montagem de mil pecinhas de lego, eu estava reconstruída, de pé sobre o monturo de cascalho do sonho. O mesmo sonho.

Dessa vez estranhei pra valer... Diferente. Respirei ofegante (Será que meu corpo estava ofegante também em meu quarto?). Olhei em volta e estava só. Mas não sentia-me sozinha. A escuridão pesava e no entanto enxergava perfeitamente os contornos do que restara do prédio. Levei um segundo para perceber a diferença em mim.

Eu não via mais minha personagem... Eu era ela!

Cara!!! Que coisa incrível!!!

Desde quando tinha começado a sonhar com Agnostha eu passara a idolatrá-la como minha heroína... Achava que ela seria minha personal superherói para sempre... Nunca tinha pensado em me tornar heroína de mim mesma... Agora estava ali.

Olhei meus braços e eles estavam espelhados e negros... Grafite-escuro. Virei as palmas para cima e para baixo tentando imaginar como metal poderia ter movimento... Olhei meu corpo e assustei-me com a altura (até hoje me assusto. Não cresci muito depois daquilo, apesar de ter um 1,71m hoje...). Sorri... só os lábios se moveram. Me sentia incrivelmente forte e segura.

Meu Deus! Meu Deus! Como!? Caraca!

Suspirei - Dezencana, Alya! - Não tinha tempo para ficar me admirando. Uma certeza aguda de que tinha trabalho a fazer tirou-me daquele momento de surpresa.

Tornei a minha forma humana. Como fiz isso? Apenas desejei e pronto. Sabia que a moça iria assustar-se em ver um ser tão estranho como Agnostha. Ela não estranharia uma garota.
Como sabia? Não sei como sabia... só sei que sabia.

Era eu mesma de novo. Usava vestes brancas. Ainda sentia Agnostha dentro de mim - como até hoje sinto - sabia que podia invocá-la a qualquer hora. Então não me preocupei. Não tive medo.

Flutuei para dentro dos escombros. Era um sentimento estranho... Podia sentir as pedras e o aço das colunas retorcidas, mas elas não resistiam a mim. Via através delas como se fossem um raio-x colorido. Simplesmente as atravessava - posso, por assim dizer, que sei exatamente como um fantasma se sente.

Caminhei(?) por dentro dos escombros e vi um corpo a uns metros de mim. Parei. A moça.
Sabia que veria aquilo. Era um trapo roxo-escuro, esmagado, contorcido e ensanguentado por sobre os metais da cama também retorcida. Para qualquer um, ver aquilo seria motivo para acordar gritando em desespero... Respirei e chamei calmamente.

-- Senhora?
-- ¿Quién és? - ela respondeu em espanhol. Eu ainda não falava espanhol na época, mas entendi.
-- Vim ajudar.... Vou encontrar seu filho. - acho que fui compreendida...

Subitamente ela materializou-se diante de mim. Era a mesma moça de antes do desabamento. O corpo ficou lá.
Sua expressão era triste.

-- Pobre niña... ¿También estás muerta? - sua cabeça de lado ao olhar pra mim. Para todos os efeitos, eu era uma adolescente, mais jovem que ela. Ela me tomou por uma fantasma também.

Bem... ao menos ela já tinha consciência de que estava morta... Acho que Agnostha já havia falado com ela antes de nós... Meu pensamento foi interrompido:

-- Yo tuve una hija como tú... tendría tu edad se no tuviera abortado.... - falou tocando meu cabelo maternalmente.

Estremeci, mas entendi.

Ela sabia que a hora de seu julgamento - ou o que quer que nos esperasse no "céu" - havia chegado. Ela havia negado a primeira criança abortando-a há muitos anos atrás quando a vida em sua vila estava difícil. Pedro vivia na guerrilha... Ela tinha que vender doces aos andarilhos. Eventualmente teve que se prostituir para conseguir dinheiro para comer... E agora que a vida melhorava, veio o segundo filho. Ela ia entregá-lo a uma família americana. Seria bom para o pequenino. Com o dinheiro, ela poderia se mudar de vez para o centro e trabalhar com a... Ai! Que jorro de informações entravam na minha cabeça!!! Bem... agora estava arrependida. Queria a criança. Ia subir - ou descer- com ela! Nada mais interessava! Então poderia curtir sua maternidade afinal... Criar a criança no "céu"... sei lá. - levei a mão à testa - Ai!!! Devagar!!! Eu não falo espanhol!!! - Balancei a cabeça tentando me livrar daquela confusão. Aquele jorro de informações. Eu já tinha entendido. Olhei nos olhos dela e tentei transmitir conforto.

-- Você queria mesmo ter sido mãe? - falei/pensei pra ela com um toque bem doce na "voz".
-- Sí... lo quería.... - e baixou a cabeça tristonha. Ela pensou em seu filho com amor.

Vi claramente quando uma pequena estrela brilhou em seu peito... e flutuou para fora dela...
Estendi a mão instintivamente e ela pairou a centímetros de mim, flutuando sobre minha palma. Soube de imediato que aquele pequeno ponto de luz seria minha bússola.

-- Aguarda-me. - disse a ela e flutuei dali.

(Continua)

Mix (Parte 2)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Meu Deus! Que inferno é este!?

Já havia sonhado com lugares feios antes: lugares que pareciam favelas, manguezais, florestas escuras... mas nunca havia sonhado com destruição. Destruição total.

Havíamos pousado nos restos do que teria sido uma rua. Todo o lugar, que parecia ser o centro de uma cidade, fora abalado por um terremoto. De um lado e do outro só se via escombros, pilhas de concreto, aço retorcido, cascalho, e muito pó. Pó que pairava no ar como uma neblina estática.

Estava escuro, mas eu podia enxergar o cenário como se uma luz amarela pousasse sobre tudo... Era como ver um filme em tons de sépia.

Quando comecei a entender o que estava ouvindo, Agnostha pousou suas mãos sobre meus ouvidos e fiquei surda. Ela não queria que eu me assustasse com os gemidos e o rugir de terra assentando-se que ainda pairavam no ar.

Um calafrio percorreu minha espinha só de imaginar o que eu poderia ver ali. De alguma forma eu entendi que ao me ensurdecer ela poupava-me de entrar em descontrole emocional. Ela não queria que eu me apavorasse e, consequentemente, acordasse.

Eu - apesar de saber que estava numa cena de terremoto, e na melhor das hipóteses estava tendo um pesadelo - sentia-me um pouco anestesiada. Sabia o que estava acontecendo, mas concordava em segui-la. Sentia a expectativa, no entanto, estava calma. Tinha que fazer o que viéramos fazer.... E ela ia me mostrar.

Caminhamos lado a lado em direção a uma montanha enorme de concreto. Conforme avançava para aquela pilha de cascalho o cenário ia mudando, como se reconstruído, e me vi dentro de um prédio.

Era um hospital. Enfermeiros e pacientes passavam normalmente para lá e para cá no corredor. Pareciam nos ignorar.

O filme avançou direto para um quarto onde sobre uma das camas próximas à janela estava uma solitária moça morena. Paramos, eu e a enorme mulher metálica, junto a parede no canto do quarto, próximo ao pé da sua cama, mas ela não nos percebeu. Éramos invisíveis.

A moça, que tinha entre 25 e 27 anos, era de uma beleza comum. Cabelos negros e lisos amarrados num coque, olhos amendoados levemente orientais. Estava mexendo distraidamente numa bolsa sobre o criado mudo ao lado. Era uma bolsa grande decorada com bichinhos e flores... Foi então que eu percebi que deveria estar numa maternidade pois a bolsa era uma daquelas que se usam quando se vai ter um bebê.

Olhei inquisitivamente para Agostha que apenas olhava a moça. Sem resposta. Virei a cabeça olhando novamente para a mulher, procurando por algo em especial.
Para meu espanto, o local todo tremeu e os vidros da janela trincaram!

Olhei apavorada para Agnostha e de novo para a moça que soltara um grito! ...E a escuridão nos cobriu!!!

Silêncio.
Não sentia nada. Apenas a escuridão. Mas compreendia perfeitamente o que havia acontecido. O local desmoronara. Estava ficando nervosa e minha garganta doía com vontade de chorar. Agnostha tocou meu braço e puxou-me dos escombros. Nós passamos através deles como se fossem nuvens. Eu estava desnorteada, porém íntegra. Ela me deixou sobre o monturo e na sequência mergulhou, afundando sob seus próprios pés como um fantasma. Em busca da moça.

Por um minuto fiquei só e angustiada. Eu sabia que à minha volta havia o caos e que se pudesse ouvir estaria desesperada. (Pessoas esmagadas! Argh! Senhor!) Inclinei sobre os destroços e chamei por Agnostha. Senti um toque em meu ombro e a iridescente estava atrás de mim.

Minhas lágrimas desciam, eu tentava me controlar. Mas percebi que Agnostha também estava triste. Agnostha consegue expressar-se através da máscara. Apesar de seu rosto ser esculpido em metal, ele é dotado de pequenos movimentos. Suas sobrancelhas inclinavam-se levemente para baixo. Olhei em seus olhos que agora não brilhavam. Neles havia apenas a esclera perolada.

Não encontrou a moça?


Ela, a moça, não queria ir... não queria partir... não sem seu bebê. Ela não o tinha visto quando nasceu. Fora um parto difícil. Ela não o queria... mas agora, arrependida, o quer. No entanto, não havia vínculo até então... Não há como reconhecê-lo... Ela está nervosa. Não consegue pensar coerentemente. Não consegue se concentrar no bebê. Não consegue transmitir sua humanidade para que o identifiquemos. É preciso outro humano para fazê-lo... eu. Eu tenho que fazer isso. Entendi.

As lágrimas salgavam minha boca e a angústia crescia. Aquela realidade onírica me pegara desprevenida.

Quando sonhava com Agnostha, ela fazia tudo. Me defendia dos maus, abria meus caminhos, me tirava voando dos perigos. Ela. Agora ela estava ali me pedindo para participar de um resgate justo quando estava mais consciente. Justo quando as barreiras entre o sonho e a realidade estavam tão tênues. Desejava sair daquele pesadelo...

Como fazer aquilo? Procurar um bebê nos escombros? Eu!? Medrosa, fraca e inapta do jeito que era? Como? Insegura??? Sempre fui, claro!!! As coisas pareciam grandes demais pra mim...

Ter medo é natural.. Eu sei... Uma hora o medo é real, é um aviso. Outras é imaginação... Mas como acreditar no meu juízo? No juízo que faço das coisas sem falhar? Saber a diferença...?

Fé!? Como ter fé? - comecei a soluçar como a criança que era - Tudo ao meu redor estava uma bagunça! Ninguém me ouvia! Alguém poderia me ouvir? Só você me ouve... - lembrei-me da situação que vivia em casa - Eu não conseguia entender como as coisas ficaram tão ruins... Qual era meu lugar naquele mundo?... Eu tinha um lugar? Eu tinha medo... Como superar tudo aquilo ali ou em casa...?

Naquele momento de pranto vi com assombro que estava no ponto de mutação. Eu ainda não tinha noção exata do que acontecia, mas sabia que o sonho e minha realidade estavam misturados de alguma forma. Eu crescia no sonho, e cresceria na vida real, ou eu sucumbia e ficaria uma garotinha assustada para sempre. A decisão era minha. Seria inevitável. Um dia eu tinha que tomar as rédeas de minha vida!

Agnostha de pé a minha frente olhava-me complacente. A ternura fluía de suas pérolas e as imagens continuavam a vir a mim.

Nós? Juntas? Como? Se creio em você?... Eu creio em você! Você é forte! Grande! Eu creio em você! - solucei - Sei... E você crê... Em Deus.

Ergui meus olhos.

Fé. Era disso que ela falava. Ter fé para enfrentar os problemas. Ter fé é acreditar que nada acontece sem que Deus saiba. Ter fé é saber que a força vem a ti quando precisar dela. A minha força estava ali. A força de Deus estava ali. Eu tinha que experimentar a Fé. Então...

... Eu creio em Deus também!!! - disse a ela usando meu pensamento e minha voz.

Tomei fôlego. Chega de choro!
Ela segurou minhas mãos e eu, que a esta altura estava de joelhos, ergui-me. Respirei fundo novamente e controlei a dor na garganta.
Era hora de crescer!

(Continua)

Mix (Parte 1)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Estava eu sentada junto à sarjeta da calçada conversando, como meu novo costume, com meus recentes amigos: Deguinha - a melhor amiga, Diana - a evangélica, Lucy - a tímida, Andy - a espevitada, Mary - a corpaço (segundo os meninos), Deick - o inquieto, Ricky - o de orientação sexual duvidosa, Cacá - a meiga... Éramos todos adolescentes, entre 13 e 15 anos.

Em um ano de nova moradia naquele bairro classe média, consegui ser aceita pelos adolescentes locais e foi muito confortante descobrir que pessoas bem legais moravam por lá. Integrei-me a esse grupo eclético. E sendo tão diferentes, éramos iguais em jovialidade e avidez por troca de experiências.

Nossa calçada era especial. Era um esquina em formato de "T", onde nos sentávamos no topo do T para observar as duas ruas ao mesmo tempo. Um único poste fazia a iluminação daquele trecho dando àquela esquina um aspecto de luz-no-fim-do-túnel para quem vinha das outras quadras - tão ruim era a iluminação daquele lugar. Minha casa compunha um dos ângulos da esquina e por isso ganhava um certo destaque no hall de casas simples da rua.

Nós, as meninas, tagarelávamos sobre o grupo Menudo de muito sucesso naquele tempo. Os meninos que estavam conosco caçoavam... cogitavam nosso gosto e chamavam eles de "gays".
Os meninos eram sempre assim... Sei que até pode ser verdade; que algum dos meninos do Menudo fossem gays...mas e daí? Eles morriam era de inveja daqueles fofinhos. Eu amava o Robby... Isso dava uma discussão superanimada.

Só quando vi aquele par de olhos neon brilhando suavemente no escuro, olhando-me do terraço de minha casa, é que percebi que sonhava...

Ai, meu Deus!

Agnostha estava sentada em posição indiana e encarava-me. Sendo tão negra, e não tendo luz daquele lado, não era fácil percebê-la lá em cima.

Não sei se foi o costume , ou se não estava totalmente consciente - se fosse na vida real eu provavelmente correria desesperada gritando - só sei que não me assustei.

Como disse, ela aparecia rotineiramente em meus sonhos depois que abri aquela porta e a partir de então eu tinha duas opções: ou contava pra minha mãe que há meses andava sonhando com uma andróide alienígena cor de grafite-escuro que conversava comigo por telepatia, e ela me mandava para um psicólogo... ou um exorcista; ou me acostumava com essa intromissão e tinha sonhos mais animados.
Fiquei com a segunda opção.

Senti que ela queria falar comigo. Pedi licença, acenei para os amigos e voltei para casa sem chamar a atenção.

Naquele ano ainda não tínhamos o segundo andar, que fora construído bem depois. Nosso terraço era apenas um espaço mal-utilizado ocupado por uma pilha de tijolos, caixas, garrafas vazias e vergalhões espetados que insinuavam os locais de onde novas vigas seriam construídas. Fui para os fundos e acessei a escada que dava para lá. Andei cautelosamente em meio às penumbras até ela.

Mal me aproximei e já sabia que alçaríamos voo. Sem palavras. As imagens apenas entravam na minha cabeça.

Ela ficou de pé sem um ruído. Era alta. Bem alta. Um pouco delgada até. A expressão tranquila. Seus movimentos pareciam pensados, tentando não me assustar. Seus olhos brilharam mais e me vi refletida naquele corpo espelhado dela. Ela laçou minhas costas e pernas com seus braços metálicos como se eu tivesse o peso de um lençol. Eu abracei seu pescoço. Seu toque era veludo. Não era fria. Me sentia como no colo de minha mãe.
Subimos. O terraço encolhendo rapidamente.

Voar com Agnostha, ou sendo Agnostha, é algo muito diferente: não se sente nada. Isso mesmo. Nada. Ela parece não se mover. Não há resistência do ar ou sensação de deslocamento. Ao que parece, o cenário é que se move ao redor dela, e não o contrário...

Depois de certa altura - uns 15 metros mais ou menos - subindo em linha reta, a paisagem girou 90 graus ao norte e aceleramos. Agora ela se inclinava numa posição horizontal. Eu confortável, sem nada sentir. Em um segundo atingimos uma velocidade inimaginável. Tudo abaixo parecia um borrão; ao alto, um manto negro com riscas de giz. Não vi muita coisa...

Quando dei por mim, estava num lugar horrível.
Destruição e Morte, dois dos cavaleiros do Apocalipse, estavam por lá...
(Continua)

Agnostha (Parte4)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O sorriso dela atravessou meu corpo como um choque!!!
E com este estalo fui puxada de volta com muita violência!

Num segundo senti como se mil de mim mesma estivessem caindo na cama - como fazem os jogadores de poker habilidosos com um baralho de cartas - E a cada camada nova que caía, um sentido novo era acionado.

Foi incrível!!! Durou segundos, mas foi incrível!!! Um chiado de estática castigava meus ouvidos e a sensação de espaço envolvia meu corpo enquanto várias de mim mesma sobrepunham-se em milésimos de segundo!!!

E finalmente, no segundo seguinte, minha consciência caiu naquele corpo! Meu próprio corpo!

Senti-me arfar profundamente arqueando minha coluna no momento em que fui reanimada com o pulso atroz de uma descarga elétrica!

Milionésimos depois tudo estava terminado.

Ofegante e desnorteada, sentei na cama e olhei em volta.

O quarto estava no mais perfeito silêncio. Minha irmãzinha dormia tranquilamente na cama ao lado.

Aquele era o momento de entrar em pânico, mas senti-me estranha na sequência... Calma.
Meus olhos ficaram sem foco e minha respiração desacelerou rapidamente... Meu coração também. Calma.Uma estranha calma.

Foi gradativo, mas rápido. Em três minutos me sentia muito calma. (Hoje eu imagino que essa calma me foi dada... Como uma criança passa por um sonho daqueles e fica calma?)

A tranquilidade se apossou de mim e cheguei a rir de mim mesma... Que imaginação! - pensei. Tornei a me deitar olhando para o teto e fiquei rememorando aquilo tudo. Que situação, meu Deus!

Virei de lado e senti um torpor... acho que dormi de novo... Sem sonhos.

Naquela manhã fui para a escola muito feliz e tranquila e entre um intervalo e outro fiz um desenho de minha heroína. (Ah! Sim. Porque alguém tão linda só poderia ser minha própria heroína...) Exagerei um pouco nos traços, insinuei roupas como um collant ou body. Depois fiquei admirando.

Naquele tempo sentávamos em carteiras escolares duplas e a coleguinha do lado ficou olhando com um vinco na testa.

-- Que é isso? - perguntou-me quando não conseguiu segurar mais a curiosidade.
-- Sonhei com ela... Acho que é uma andróide... - gostei de usar o termo. Achei que se aplicava bem ao caso.
-- Bacana... Você desenha bem. Eu também desenho. Quer ver? - e tirou da mochila seu caderno e me mostrou seus desenhos de bonecas vestidas ao estilo Barbie.

Definitivamente eu estava fora dos padrões das meninas de minha idade... As meninas desenhavam flores, bonecas, príncipes... E eu desenhava unicórnios, espaçonaves, guerreiras e andróides...
De qualquer modo, aquele foi um bom começo; fiz uma amizade. Dina - apelido carinhoso - me apresentou as outras coleguinhas e acabei aceita pelo grupo. Grupo pequeno... longe do holofote das populares, mas legal.

Passei os dias super bem... me sentindo forte, como há algum tempo não me sentia.

Na semana seguinte tornei a sonhar com ela... Isto é, ela estava no meu sonho. Observava-me.

Não havia notado a presença dela. Sonhava que estava na escola - que, aliás, já não tinha aquele cômodo-que-ninguém-ia - durante uma aula de matemática. Batera o sinal do recreio e nós saímos felizes como sempre. Ia comprar meu lanche quando a vi sentada elegantemente no telhado do quiosque da cantina. Me assustei um pouco mas ela só ficou lá. Olhava-me. Continuei sonhando normalmente.

Em outra ocasião sonhava que passeava com meus pais de carro. Ela estava de pé a beira da estrada, de novo apenas observando-me. O carro passou por ela... isso foi tudo.

Foi aí, que em uma outra noite sonhava que estava voltando de uma festa sozinha (Isso estava começando a ocorrer na vida real - de meus pais deixarem eu e uma nova amiga de minha rua, Deguinha, irmos sozinhas às festinhas juninas nas praças do bairro). Dois caras mal-encarados barraram meu caminho. Estava escuro, não havia ninguém por perto e eu já sabia o que era estupro. Senti pavor naquele momento. Não haveria escapatória. Meu sonho se tornaria um pesadelo horrível!

Ela apareceu do nada! Intrometeu-se entre mim e os caras, e num gesto simples empurrou-os a metros de distância com uma força sobre-humana. Apesar de estar salva, a surpresa da cena de ação - bastante vívida para mim - me fez acordar assustada. Mas depois fiquei bem.

Eu estava descobrindo esta força. E esta força estava me acompanhando. Isso era bom.

E assim foi indo... Depois daquela fatídica noite a personagem aparecia rotineiramente em meus sonhos. As vezes observando, as vezes participando. Foi realmente incômodo no início. Não que ela me assustasse... eu me assustava sozinha, só de ver aquilo... quer dizer, ela.

Demorou mas aos poucos sua presença foi se tornando comum e perdi o medo... Consciente ou não, ela estava por lá.

Ela simplesmente integrou-se ao meu imaginário - E até hoje, de uma forma ou de outra, ela faz parte de minha vida porque agora ela e eu somos a mesma pessoa.

Dei um nome a ela que, originalmente, não é Agnostha. Mas esse pseudônimo é necessário pois como algumas pessoas conheciam a personagem dos tempos escolares, achei por bem chamá-la diferente aqui neste blog... (A verdade é que me sinto meio boba por estar contando essas coisas...)
Bem... Agnostha veio depois, quando aprender línguas se tornou um hobby. "Agnostha", como já disse, significa "Desconhecida".

Sei que você deve estar pensando que existem várias explicações psicológicas para esta estória. E provavelmente existem. E provavelmente eu as aceito: um período familiar difícil; adaptatividade; hormônios adolescentes; surto de crescimento... Sim. Eu tinha bastante motivos para ter uma noite conturbada. Mas convenhamos que algumas coisas nessa situação são um pouco over... mesmo para uma adolescente.

Notem... Eu não tinha referências... Naquela época não existiam personagens cinematográficos que pudessem fazer parte do imaginário de ninguém, como os iridescentes de Exterminador do Futuro 2 e Surfista Prateado. Eu não lia revistinhas em quadrinhos - ah, sim... li toda coleção Vaga-Lume da época... - locadoras eram caras; e meu primeiro videogame, de cartucho, incluía Pac-Man e Space Invaders... Não eram lá um grande desafio mental... E mesmo que ainda a mídia tenha tido alguma influência; não há como negar que estive Agnostha em vários momentos importantes de minha vida...

Foi assim quando em sonho soube que viajaria para Aracaju, para Belém e para o Ceará; estive Agnostha quando enfrentei em sonho os avisos das três vezes em que quase morri; estava Agnostha quando me foram apresentados os dois caras que realmente fizeram diferença no amor... Coisas que vivi na vida real.

Agnostha é como uma armadura em que me torno quando me preparo para a guerra... E o mais interessante: minha profissão é ligada, indissociavelmente, aos livros... Livros!!! E já tinha sido avisada que assim o seria desde quando abri aquela porta aos 11 anos de idade: seria Bibliotecária. Biblioteconomia! - a profissão mais pacata do mundo (no imaginário das pessoas!)!!!

Agora que contei isso, me sinto mais aliviada. É bom registrar isso em algum lugar, mesmo num blog.

Ah, sim... Você pode comentar e me chamar de "louca", "maluca", "esquizofrênica" e tudo o mais... Mas eu não ligo. Não te obrigo a ler isso...

Espero ter coragem para contar outras coisas... Gostaria de saber como eu e Agnostha nos tornamos uma só?

(Continua)

Agnostha (Parte3)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Foi com alívio, surpresa e admiração que entrei naquele ambiente.
Sabe quando você fica fascinado e seu queixo cai...? Pois é. Fiquei com aquela cara de babaca...

Uma Biblioteca!

Era uma sala enorme. Com o pé-direito de uns 3 andares. Muito Alto.
De frente pra mim abria-se um amplo espaço numa sala que parecia ter o formato octogonal.
Não haviam paredes visíveis. Estavam todas cobertas com prateleiras cheias de livros. Livros com lombadas rústicas e outras modernas, finas e grossas, de todas as cores e materiais.

Uma suave luz entrava pelo teto que era ocupado por um vitral decorado com arabescos. Isso dava ao ambiente um ar angelical e agradável como numa manhã de sol.
Tudo parecia estar em animação suspensa, como se há muito ninguém entrasse ali. Ainda assim, não registrei nenhum odor, seja papel ou mofo, tão comum em bibliotecas. O ar parecia mentolado e frio.

Fiquei olhando para as paredes de livros... dando alguns passos enquanto admirava. Me virei e foi aí que notei o sarcófago... (Juraria que não estava lá há um segundo atrás...). Estava no centro do octógono.

Parecia mesmo um sarcófago egípcio deitado sobre uma mesa de mesmo contorno. As laterais eram decoradas com símbolos e imagens que só me remetem, ao que posso compreender, à cultura egípcia.
Franzi o cenho estranhando aquilo. Destoava do cenário medieval em volta. Me aproximei mais e vi que não havia cobertura. Estava aberto.

Do ângulo e distância em que eu vinha não podia ver seu interior mas sabia que iria ter algo ali dentro. No mesmo segundo minha cabeça começou a vagar por todos os filmes de múmia que já tinha visto (ainda bem que naquela época, o filme "A Múmia" de Stephen Sommers estava longe de ser lançado!).
O medo me inundava e fiz força para não acordar... Sabia que tinha que ir até o fim; confrontar o conteúdo do sarcófago e acabar com aquele padrão onírico de "cômodos-que-ninguém-ia".

Avancei mais um pouco. Mas lentamente...
Pude ver alguns contornos, que para minha surpresa, não possuíam as esperadas ataduras de múmia. Me aproximei mais e foi com alívio que reconheci um brilho. Espelho?

Confiante, me aproximei da lateral do sarcófago e fiquei extasiada com o que vi.

Não era um espelho... Era uma estátua.
Uma escultura. Representava uma mulher alta. Acho que tinha uns 2 metros de altura.
Jazia com as mãos e seus dedos compridos entrelaçados sobre o peito.

Seus traços eram finos. Me lembravam a rainha Nefertiti: um rosto anguloso, lábios grossos e nariz bem definidos com olhos que, se estivessem abertos, pareceriam ligeiramente desproporcionais àquele rosto de tão grandes que eram. Sobrancelhas finas emolduravam estes grandes olhos e faziam uma leve curva nas têmporas.
Sua cabeça parecia estar coberta por um capacete que remetia àquele adorno egípcio que pode ser visto na deusa Bastet, porém estilizado. Era curto. Não cobria o pescoço... Isso mesmo... seu rosto era uma mistura de Nefertiti com Bastet... só que com linhas mais ousadas... de uma certa forma contemporânea.

Que coisa linda! Um ar milenar com um toque futurista...

Quanto a seu corpo, não haviam linhas ou outros adornos que assinalassem roupas. Ao que tudo indicava, ela estava nua. No entanto, pelo que notei, este fora esculpido para parecer vestido, como se estivesse usando uma roupa de mergulho - ou algo similar - já que os ângulos revelavam muito, mas não tudo.

Era um corpo esguio, atlético, musculoso, mas sem exageros.
Seios proporcionais - nem grandes, nem pequenos; uma cintura fina seguida de quadris bem demarcados. Pernas fortes e compridas. Não haviam dedos nos pés. Estavam apenas insinuados, como em um sapato ou meias. Suas curvas eram muito aerodinâmicas. Ela era longilínea... Quase alienígena...

Alienígena, sim porque - acho até que deveria ter falado isso primeiro - ela era toda feita de metal... Isso mesmo. Uma escultura metálica... Um metal de cor grafite-escuro. Quase negro.

O metal negro - ou o que quer que fosse - parecia ter sido misturado a uma purpurina finíssima, prateada, que cintilava levemente ao longo de toda aquela obra de arte. Era como um aço polido... onde eu podia ver meu próprio reflexo distorcido sobre os ângulos de seu corpo.... (Daí a confusão com um espelho...)

Era incrível!!! Era linda!!! Era assustadora!!!

Eu fiquei encantada com tudo... A quietude e tranquilidade do sonho... as cores... o ar... o ambiente mágico... Eu... - a Alya-criança-quase-adolescente - admirando uma obra de arte... Era como um sonho mágico de uma noite de verão.

Sem notar... Sem ao menos ter consciência do ato... Minha mão direita - pequena, se comparada à dela - estava tocando os dedos sobre seu peito.
Curiosidade.

Mal estabeleci contato e sua cabeça se virou pra mim! Seus olhos se acenderam - literalmente - como se fossem feitos de mil leds branco-azulados e sua boca, mesmo sendo esculpida sobre o metal, esboçou um sorriso!

(Continua)

Agnostha (Parte2)

sábado, 10 de outubro de 2009

Me lembro de ter tido pesadelos quando era criança.

Uma vez sonhei com um gorila e acordei chorando; outra, com bruxas e uma outra, com ter sido abandonada numa estação de trêm. Eu era pequena e a TV tinha sempre uma influência direta ou indireta nestes pesadelos. Além disso, eram passageiros. Você sonha uma vez e não sonha mais. São uma expressão de um momento e pronto.
Não foi o caso do "cômodo-que-ninguém-ia".

Não posso dizer também que era um pesadelo... Mas quando você sonha duas a três vezes por semana com o mesmo sonho, você começa a achar aquilo pesadelar...
Era um padrão repetitivo.

Toda vez que eu sonhava que estava em casa, nela havia um cômodo que ninguém ia. Toda vez que sonhava que estava na escola, tinha uma sala em que ninguém entrava. Toda vez que sonhava com qualquer ambiente fechado... pronto! Tinha uma sala, um cômodo, que ninguém estava autorizado a entrar.

Na maioria das vezes era só uma porta. Fechada. Coisa simples. Em outras era representada por um corredor tortuoso no qual ao fim se encontrava a tal porta trancada.
Nesses sonhos eu passava pelo corredor e via a porta. Sabia que era proibido e só. Ignorava e continuava sonhando. Em outras vezes alguém, um circunstante de sonho qualquer, fazia um comentário: "Não entre ali. É proibido." Eu obedecia e seguia minha noite normalmente.

Esse padrão vinha se repetindo por semanas, talvez uns dois meses, até que uma noite eu estava mais consciente.... e mais curiosa.

Me vi numa casa antiga enorme.
Eu estava de pé no meio de uma sala - Sabia que sonhava. Até ri comigo mesma - Olhei em volta e uma decoração rústica ocupava o ambiente. Cadeiras torneadas ao redor de uma grande mesa de madeira no mesmo padrão. Estandartes nas paredes. Castiçais sobre o aparador escuro. Poderia ser um castelo. Sim, era. Um daqueles bem cliché.

Em uma das paredes havia um portal que dava para um corredor. O tal corredor, pensei.

Avancei para ele. Pra quê ficaria parada ali? Sabia que devia seguir... E agora, que sabia que estava sonhando poderia explorar aquele ambiente diferente.
Caminhei um pouco. As paredes de pedra eram iluminadas por tochas espaças. Eu ficava mais tensa ao andar.
O corredor era extenso demais e fazia uma leve curva aonde parecia mais escuro. Não dava para ver seu fim.

Agora meus passos faziam barulho no piso de mármore. Só ouvia a mim mesma. O silêncio era gritante.
Eu sabia que encontraria a porta... e sabia também que ela não estaria trancada... Fragilizada, minhas mãos se uniram sobre meu peito, e conforme eu caminhava eu ficava mais suspeita.
Mais escuro e eu mais amedrontada.
Um film noir começava a se formar em minha cabeça... imaginei a porta aberta... algo aterrorizante em seu interior... Talvez um vampiro, um monstro... Quem sabe um serial killer?... O quê? O que poderia ser?
Meu coração palpitava!

LUZ!

Acordei assustada.
Olhos arregalados, o coração ainda batendo forte.
Não consegui virar a curva e chegar até o fim do corredor... era muito assustador.

-- Acalme-se, Alya! É só um sonho. - falei pra mim mesma.

Ofeguei um pouco, depois deitei. Demorou algum tempo para eu voltar a dormir, e quando consegui, estava eu lá, incrivelmente, no ponto em que parei!!!

Tornei a acordar. Que droga! Meu peito reclamava angustiado.
Meu impulso foi correr para a cama dos meus pais e dormir por lá... mas eu já era bem grandinha para aquilo... daí me controlei. Virei de lado e vi minha irmã em seu soninho perfeito na cama vizinha. Me contentei com sua companhia e relaxei. Fiquei zanzando pelos pensamentos até que o dia clareou e levantei para ir para a escola.

Sabia que numa outra noite tornaria a ver a porta. Sabia que não tinha opção a não ser entrar naquele cômodo que ninguém ia. Tinha que fazê-lo. Acabar com aquele padrão.

Pois bem, dois dias depois, naquela mesma semana, sonhei que estava em casa. Sonho banal.
Entrei no corredor da copa e... não era mais o corredor que dava para a copa... era aquele corredor. Reconheci de imediato. Estagnei.

A consciência me veio clara. Sabia que sonhava.
Olhei em volta. Nada de assustador. Só o mesmo corredor com uma flâmula iluminando alguns metros adiante de mim. Desta vez me sentia mais forte. Avancei.
O mesmo silêncio; só o barulho de meus pés no piso frio. Estaria descalça? Sei lá!
Continuei andando. Controlando o pavor. Os punhos apertados.

Finalmente venci a curva e via a porta, desta vez representada por uma pesada porta de madeira num estilo que combinava com o corredor medieval.
Avancei timidamente e segurei a argola que fazia a vez da maçaneta. Neste momento, ouvi uma voz, doce e clara, parecendo ser feminina:

--Tem certeza que vai entrar? Você será modificada para sempre....

Não me assustou. A voz estava atrás de mim. Não me virei para ver. A voz parecia apenas querer avisar. Esclarecer. Não impor ou proibir.

-- Eu tenho que fazer isso. - respondi taciturna, mas decidida, ainda olhando a argola que segurava.

Não houve resposta.
Eu fiz uma pequena força e empurrei a madeira deixando o cenário se descortinar a minha frente.

(Continua)

Agnostha (Parte1)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Deixa eu explicar como é este negócio de "estar Agnostha".
Confesso a vocês que de tudo que me é estranho, estar Agnostha é o mais estranho.

Não só pela profusão de sensações - que espero tentar fazê-los vislumbrar - mas porque tenho consciência que é algo que chega a soar meio ridículo... meio estória em quadrinhos, HQ, sabe?
Chego a ficar sem jeito para contar essa estória mas ao mesmo tempo é algo tão inerente ao meu mundo onírico, astral, irreal - seja lá que mundo que é esse o meu - que não dá para ignorar. Afinal, ela...quer dizer, eu...quer dizer, isso... dá nome a este blog.

Bem... foi tudo lá pelos anos 80. Eu era pré-adolescente (juro que vou fazer uma força danada para não revelar minha idade atual).
Havíamos nos mudado para uma nova casa própria - um feito para uma família brasileira já que todo mundo vive de aluguel.
Era uma casa num bairro residencial da baixada (também vou fazer uma força danada para não revelar meus endereços), térrea, recém-construída, ainda inacabada, mas tinha um amplo quintal e a possibilidade de expansão dos cômodos agradava meus pais.

Depois que minha mãe começara a trabalhar, nossa vida tinha melhorado sensivelmente - economicamente falando - e aquela casa era a primeira marca de um novo tempo para nossa família.
A ida de minha mãe para o mercado não só foi bom para nossas finanças, mas foi bom também para ela, como pessoa. Ela abriu os olhos em relação a muitas coisas.
Pessoas, governo, vida... Várias coisas que em seu mundo rosa de dona-de-casa eram perfeitas em si mesmas começaram a adquirir novos contornos mais realistas. E uma das realidades que mais nos impactou foi sua nova visão sobre seu marido, meu pai.
Depois de 15 anos vivendo sob sua guarda, dependendo dele para tudo, e sendo grata por isso, ela começava a perceber através de suas novas vivências como ele a controlava e o quanto era... digamos... infiel.

Suas desconfianças a levavam a crer que ele - como se diz mesmo? - "pulava a cerca" de vez em quando.
Ela nunca flagrou nada, nem tampouco algum incauto lhe afirmara nada, mas depois que ela começou a entender os esquemas da vida da rua, ver algumas ausências como comprometedoras e alguns sorrisos como dúbios foi uma questão de tempo até o início das brigas por ciúmes fundados e infundados.

Meu pai sempre foi um bom pai. Um pai que nada deixa faltar em casa, nem à mulher.
Ah, sim, sempre teve seus defeitos... Mas quem não tem?
Contudo, com o tempo as brigas foram se agravando. E, inevitavelmente, chegaram a um ponto crítico; com berros e troca de malediscências, onde não víamos, na época, outra saída a não ser a separação.
Eles faziam o possível para deixar a nós - eu, minha irmã e meu irmão - de fora das discussões. Mas havendo traição ou não, nenhum filho quer ver sua família dividida... e aquela fase gerou reações diversas.

Graças a Deus nenhum de nós se tornou um delinquente nem nada disso. Sabíamos que éramos amados, e esse amor nos aquecia e manteve nossa unidade básica, mas de qualquer modo éramos muito jovens, com a personalidade em formação, e as marcas ficaram através dos tempos até a atualidade.

Meu irmão, o filho do meio, ainda um menino na época, começou a ter notas baixas na escola e apesar de depois ter concluído o ensino médio, perdeu seu interesse pelos estudos acadêmicos. Tão logo se viu fora da escola tratou de arranjar um emprego e depois fez sua própria família.
Minha irmã, a caçula, ainda muito criança, se apegou mais aos amiguinhos e sendo tão carismática, até hoje possui este traço pessoal de ser a superpopular em todos os meios em que circula. E eu, a primogênita e mais introspectiva, me enfiei cada vez mais nos livros e nos estudos como um oásis de paz... como faço até hoje.

Ah, sim, a fase passou.... (de vez em quando ainda tem um arrancarrabo...) Os dois estão juntos até hoje. Aceitaram os erros do passado, curtem o presente, e mais apaixonados do que nunca em seus mais de 30 anos de casamento.
Como o mundo dá voltas... Acho que ao fim todos crescemos, de certa forma...

Mas foi nesta época, com esse clima pesado no lar, com a casa nova, escola nova e poucos amigos, que comecei a sonhar com o "cômodo-que-ninguém-ia". Que lugar sinistro!
(Continua)

Ladrão

domingo, 20 de setembro de 2009

Então estava eu lá. Caminhando pela rua. Acho que indo pro trabalho.... Estava no centro do Rio. Passei em frente a Caixa Econônica e o rapaz correu.
Foi nessa hora que lembrei que estava sonhando.
E agora, Alya? Mais um sonho lúcido. O que devia fazer?

O rapaz, um lourinho, sem camisa, de calça jeans e chinelos levou o dinheiro da senhora que estava em frente à porta do banco. Sacanagem! - pensei.
Era todo o dinheiro que ela tinha pra pagar o aluguel e a mensalidade da filha... Droga! Detesto quando estas informações entram em minha cabeça! Ser superconsciente as vezes é doloroso!

Em um segundo via o rapaz correndo e no outro já sabia que a senhora era viúva, do aluguel, da mensalidade e que o rapaz tinha um padrasto que batia na mãe dele...! Droga! Ele ia usar o dinheiro pra dar um "tapinha", comprar um tênis e ir pra balada - quem sabe deixava algum com a mãe.
Saco!!! Que faço!? Bem... o sonho é meu, não é? Não vou deixar que filho da p... nenhum roube e se dê bem num sonho meu... mesmo que tenha suas justificativas.

Nem se passaram dois segundos e eu já estava no ar.
Sempre foi muito fácil pra eu voar em meus sonhos... quer dizer... desde que soube que podia fazê-lo, lá pelos 8 anos de idade mais ou menos. De início era exporádico. Diversão de pequena frequência. Depois que me apaixonei a primeira vez e o perdi, e com a perda desejei estar perto dele em sonho, essa capacidade foi ficando mais intensa - Até as coisas piorarem e eu ter que fazer um curso de Projeciologia pra me controlar...
Bem, isso é outra estória...

Num segundo o rapaz estava correndo e no segundo seguinte eu estava no ar.
É fácil. É só fazer com que seus chacras te sustentem. Os chacras plantares dão impulso, o cardíaco, junto com os palmares, estabilizam o voo, os pulmonares impulsionam pra frente... Nada de mais.
O mais difícil é controlar a velocidade.
Dependendo da vontade você se lança com uma força tal que perde a noção de espaço. É difícil controlar seu pensamento para avançar um metro de cada vez quando você tem a velocidade do pensamento para estar onde quiser. Normalmente perco o alvo quando voo na velocidade do pensamento. Vou parar muito distante de onde estava. E se não reconheço aonde estou, tendo a perder a consciência. Talvez pelo esforço. Talvez por ser fraca. E volto a sonhar normalmente... inconsciente. Assim, voar rapidamente mas consciente dos metros que se está avançando é melhor. Eu não me perco.

Ergui-me uns 5 metros do chão e avancei na direção do rapaz que agora corria a minha frente. As pessoas olhavam, umas perplexas, espantadas, outras mais preocupadas com sair da frente. Não me preocupei se elas estariam espantadas com minha capacidade ou com a situação: um ladrão correndo, uma perseguição. Não sabia em que universo estava.

As vezes - muito raramente - sei em que universo estou. Umas vezes sinto que estou no universo paralelo; aquele em que todo mundo é onírico e tem capacidades iguais as minhas; noutras, no mundo dos mortos - você pode chamar do que quiser: umbral, purgatório, céu, colônia... não me importo, não sou religiosa. E outras, no mundo dos vivos, ou algo próximo, onde as pessoas têm as reações esperadas de quando estamos acordados, isto é, se surpreendem, fogem, gritam, enfim... Como você reagiria vendo uma mulher de salto, bolsa e trajes executivos voando, sem nenhum aparato, à 5 metros de altura?

Alcancei o rapaz em poucos segundos... caí, literalmente, em suas costas, travando-o com meu peso e pernas no chão. Não doeu... ao menos não pra mim. Ele bateu com as mãos tentando amortecer a queda. Seu rosto quicou no asfalto, machucou mas não sangrou. Um "ai" meio estrangulado e abafado foi o que ouvi.

-- Que coisa feia, rapaz? - disse meio sarcástica - Aonde pensa que vai? - completei me lembrando de uma fala de filme.
-- Merda! Que isso? Sai de cima de mim! - xingou ele com raiva. Começou a se debater e virou-se por debaixo de minhas pernas. Seu rosto assustado.

Sabe que ele era até bonitinho? Estava meio sujinho, mas me lembrava o James de Crepúsculo... (Caraca, tenho que parar de ler esta série... Já está entrando nos meus sonhos lúcidos!...)

-- Devolve! Seu filho da mãe! - gesticulei com as mãos.

Ele ficou tão assustado quando me viu que paralisou...

Será que eu estava Agnostha de novo? Minha pele grafitti brilhante, feita de metal reluzente, meus olhos brilhando sem íris e sem pupila, como uma pérola? Acho que sim... meu peso o mantinha no chão como preso a uma rocha... eu nem o sentia se debater...

Ai... não queria pensar em minha aparência... Agnostha ou não, meti minha mão na calça dele - ele tinha tirado o dinheiro da bolsa, enfiado na cueca e jogado a bolsa fora na corrida - senti aquela área quentinha e volumosa... arfei - Ai meu Deus! Um descuido e fico inconsciente! Volúpia é um saco!!! Transforma qualquer sonho em sacanagem! - e puxei o dinheiro.
Olhei pra ele com cara acusativa. Ele ainda assustado. Levantei sem dificuldade, libertando-o.

-- Sai daqui! - disse apontando o caminho.

Ele não falou nada, os olhos cravados nos meus, branco feito vela... Ergueu-se como se estivesse tentando encontrar o próprio corpo, meio devagar e depois, catando cavaca, correu como quem corre do tal (aquele que nunca menciono...).

Fiquei olhando-o sumir em meio ao povo que se juntava. Olhei o dinheiro em minha mão. Olhei em volta e vi a senhora encostada junto a uma arara de uma loja. A mão na boca, olhos atônitos, vincados no cenho. Será que ela correria de mim se eu me aproximasse? Mesmo com o dinheiro dela em minhas mãos, numa oferta clara de devolução?

Dei um passo. Melhor, não. Olhei pra ela, fiz sinal que o dinheiro estava ali. Abaixei-me e pus o dinheiro no chão. Olhei em volta com uma cara de repreensão. Ninguém chegaria perto daquele dinheiro, sem dúvida, a não ser a tal senhora. As pessoas congeladas onde estavam.
Era melhor sair... Voar dali... Estava ficando inconsciente porque entristecia... Ia acabar tendo um sonho ruim na sequência e não queria aquilo.

-- Voe, Alya!

Alcei voo reto para o céu. Deixei a velocidade do pensamento me dominar.
Céu azul... Céu Negro... Estrelas... Limbo... Consciência. Ressonei. E em um segundo estava em minha cama. Eram 06:42 da manhã de hoje (veja a data do post).

Olhei pro lado quebrando a catalepsia.
Minha família - meu marido, minha filha entre nós (ela pulou pra nossa cama de novo!?) - ainda dormia. Olhei pro teto.

Caraca! Um psicólogo me internaria se eu contasse essa maluquice de hoje pra ele...
Mas isso acontece todas as noites. Toda noite estou num filme diferente. Nem sempre me lembro... Nem sempre tenho tempo para me lembrar... Mas hoje, lembrei. Precisei registrar. Se não registrar isso em algum lugar vai parecer que nunca aconteceu - na minha cabeça, quero dizer...
É por isso que decidi escrever este blog. Pra registrar isso. Isso e tudo o mais que me parecer desconhecido.... como eu mesma... uma desconhecida de mim mesma... Agnostha.

(Continua...)

Agnostha

sábado, 19 de setembro de 2009

Tudo que é desconhecido é agnosto, agnóstico.
"Agnosta", ΑΓΝΩΣΤΑ do grego, "desconhecido".
Como desconhecida pouco, é bobagem... esse blog ficou Agnostha.
Com H, pra ter mais charme... se tornar um nome.

Aqui você vai encontrar os fatos(?) mais estranhos que já aconteceram comigo.
Não pretendo seguir nenhuma cronologia.... é melhor assim... escrever o que der vontade de revelar...
Além do mais, isso é um blog, não um livro, embora tenha pensado em escrever um livro com os textos que estão aqui... será que alguém se interessaria em comprar minhas insólitas histórias?

Bem... se tiver paciência e mente aberta, poderá ler algumas coisas interessantes... encare como uma distração. Se bem que pra mim, é tudo verdade... como em um exercício de autoconhecimento.

Autoconhecimento de uma estranha... desconhecida... agnosta... Agnostha.

Deu vontade de ler? Comece aqui.