Redentor (Parte 2)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Não faço ideia de quanto tempo já dormia, ou já sonhava, quando ganhei alguma consciência.
Estava de pé com os olhos fechados... no meu quarto?

--Ah, não!

Minha consciência clareou um pouco mais na mesma proporção em que meu corpo tencionou quando a escuridão ganhou novo significado. Estava de pé em algum lugar que não meu quarto - concluí. Os sons indistintos vinham de muito longe, como ecos. Me lembrei do sonho do abismo. Um frio percorreu minha espinha.

Como se fosse para confirmar minha situação de perigo, uma brisa suave soprou pelo meu corpo. Eu devia estar nua.

Ótimo! - pensei sarcasticamente. Agora me sentia apavorada e frágil.

Os segundos se arrastavam. Apertei os olhos me forçando a acordar. Sabia que acordaria assustada.

-- Não seja infantil... - me disseram.
-- Pra você é fácil falar... - repliquei ainda tentando acordar.

Isso foi estranho.
No sonho, parecia normal que houvesse alguém ali para falar comigo. A impressão que tinha, era de que já estávamos conversando há algum tempo antes de eu ganhar alguma consciência de que sonhava; entretanto, o que escrevo aqui é tudo de que me lembro. Foi um encontro, não sei com quem - apesar de imaginar hoje, por tudo que me aconteceu depois, qual foi o teor da conversa.

-- Sem medo. - continuou a voz complacente - Você é forte. O que tiver que ser, será... Agnostha... - a última sílaba ecoou até sumir.

Meu coração palpitou. Eu me lembrei. A menção à Agnostha lembrou-me quem eu era em sonho. A minha força! Mas minha força, eu sei, vinha de meu Deus. Eu não sou nada sem Ele.

Inspirei o ar pesadamente.
Munida dessa força que brota dentro da gente quando se pensa em Deus, suspirei, ergui a cabeça devagar olhando para o céu e.... abri os olhos!

Eis-me aqui, Senhor!!!

Foi como se eu mandasse um sinal aos Céus e este me enviasse a minha armadura.
No mesmo segundo, fui inundada por uma sensação maravilhosa de força, paz e amor.

Se antes meu corpo vacilava ao sabor do vento, agora estava firme como uma rocha sobre meu ponto de apoio. Se antes estava nua, agora me sentia vestida. Forte!
Eu estava Agnostha. Eu sabia.

Sorri sem medo. Trouxe a cabeça de volta e olhei para o horizonte. A visão restabelecida. Quase de frente para mim, um pouco a direita, o halo do sol surgia no horizonte.

Respirei. -- Fascinante!

O céu variava do cinza-noite, passando pelo turquesa até o laranja-amanhecer. Ia ser um lindo dia...
Apreciei a paisagem: a Urca, a enseada, a baía, a ponte... uma tênue neblina em torno de tudo.

Maravilhoso!!!
E tão feliz eu fiquei, que imitei o gesto mais evidente do cenário: abri meus braços!

Eu estava de pé sobre o ombro direito da gigantesca estátua do Cristo Redentor!!!
Ri um pouco do momento incrível e de toda aquela situação.
Que lugar mais absurdo para um encontro! No ombro!? - pensei - Deixa pra lá... isso aqui é muito lindo!!!

Quando o sol despontou azulando o céu, e seus primeiros raios me atingiram, meu corpo resplandeceu em sua superfície espelhada. Que sensação! Permiti-me sorver aquilo!
Fechei os olhos e inspirei.

Algo acontecia... Agora eu podia sentir tudo a minha volta. Tudo...
Era como se o cenário estivesse envolto numa bolha de ar, mas eu era eu, e o ar ao mesmo tempo... Difícil explicar.

Eu podia sentir o granito sob meus pés, o grande formato da cabeça ao meu lado, a base da montanha, a pedra, a vegetação, os pássaros... Poderia dizer aonde estavam as pessoas que cuidavam do mirante, e mesmo a temperatura, a velocidade e a direção do vento eu sabia. Eu sabia tudo!

Aquela altitude seria vertiginosa se eu estivesse lá na vida real.
No ponto estreito em que pisava, havia uma dobra do panejamento que cobre o ombro do Cristo, assim meu apoio era quase um plié - algo inadmissível, se estivesse acordada. (Eu, mal e mal, consigo trocar uma lâmpada numa escada...).

O nó na garganta que sentia agora, era de felicidade! Deus sempre foi muito bom pra mim. Sempre me senti amada por Ele.

Sorri. Era hora de ir. Minha vida seguiria.
Eu estava forte e me sentia preparada para a alegria e para a dor, e estranhamente feliz por ter os dois. Não me pergunte como sabia disso... só sabia.

Ainda de braços abertos, olhei para a frente e deixei meu corpo se inclinar lentamente....

... e caí!!!

UAU!!!
Meu voo rasante passou rente à mureta da sacada principal e no outro segundo via o verde da montanha. Juntei os braços ao longo do corpo e, como um míssil, ganhei mais velocidade! Direcionei meu impulso para a direita e já via o morro da Urca. Os prédios passando como borrões sob mim. Mais um segundo e o morro ficou para trás. Ganhei a Baía de Guanabara - um borrão azul. Vi a Praia de Icaraí. Entrando pelo continente estaria em casa em segundos. Deixei a velocidade do pensamento me dominar; meu corpo me atraindo como um imã.

Arfei. Nossa!!!

Havia acordado. Me sentia maravilhosamente bem! O sorriso estampado no rosto. Meu corpo quente. A superfície da pele formigando ligeiramente. Não incomodava.

Espreguicei e a sensação parecia estar colada em mim. Eu devia estar irradiando energia.

Lembrei que estivera no Corcovado num dia de férias com meus pais - é claro que estivera no mirante... não no ombro, claro. E foi um dia muito legal em família. É provável que isso tenha sido gravado em meu inconsciente e daí o sonho. Não me detive neste pensamento. Estava feliz.

Ainda era cedo, então fiquei na cama por alguns minutos. Rememorava o sonho e sorria.
Não me aguentei por muito tempo. Levantei saltitante como uma gazela e fui pegar minhas roupas. Estava muito ansiosa por começar o dia.

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O dia na faculdade foi ótimo. Ou era meu estado de espírito?

Recebi minha nota em História da Arte e era boa. Em outra disciplina, eu e as amigas Diva, Lili e Lú conseguimos todos os textos para compor o seminário da semana seguinte.

No intervalo corri até a sala do DA. Havia recado pra mim. O rapaz da xerox me entregou um papelzinho com a caligrafia conhecida:

"Grande Alya, temos que nos ver hoje à noite. Te ligo mais tarde. Marconi".

Ai, que bom! - pensei. Voltaria à Unirio. Quem sabe Lino me acompanhava?
Marconi tinha o telefone da sala de Nini. Ficaria esperando - o ramal do balcão só seria instalado mais tarde junto com as reformas da biblioteca. Corri de volta a sala.

Na saída, eu e Lili passamos pela agência bancária que ficava nos fundos da faculdade. Sacamos parte do nosso maravilhoso ordenado de estagiária. Era 1º de abril. Eu tinha que reservar algum para ir a BH, mas ainda daria para eu e Lili almoçarmos no Hamburgão - era o restaurante mais caro do Fundão e só nos dias do pagamento é que comíamos por lá.

Corremos para o ônibus quase perdido. Viajando em pé - como de costume - Lili me pergunta - também de costume - como vai meu quase-romance.

-- Ah, Lili... na mesma... - respondi balançando a cabeça.
-- E você não falou nada pra ele? Nem uma pista? - perguntou com um sorriso maroto.
-- Já dei pistas demais. - fiz uma cara desapontada - Sabe o que me aconteceu ontem?

E contei o flagra do usuário. Ela riu e comentou:

-- É, amiga. Não queria estar em sua pele. Você foi escolher o cara mais isolado da faculdade, isso é o que dá.

Revirei meus olhos. O que eu podia fazer? Ninguém escolhe a quem amar...
"Isolado". Termo interessante... Por que será que Lino fazia questão de parecer "isolado" aos olhos dos outros? Ou seria "invisível" a palavra certa? - hoje, imagino que minha curiosidade em torno dele, foi um dos ingredientes dessa paixão...

-- Pra você ver a minha sorte... - comentei.

Ela riu.

-- Vai voltar à faculdade hoje? - perguntou
-- Talvez... Marconi ficou de me ligar.
-- Humm... - fez com malícia - Vai estar coladinha com o Lino... - e me empurrou com o ombro.

Eu devolvi o empurrão, sem jeito:

-- Ai, Lili, não me ponha nervosa!

E mudei de assunto. Minha cabeça já estava cheia daquele cara.

Depois de almoçar no Hamburgão e dar uma passadinha nos toaletes, nos despedimos e corri para o IF. Ao chegar, deparei com uma moça bem baixinha, de cabelos encaracolados e cheios sentada ao balcão. Era a Vallery.

Trocamos um "boa tarde", assinei meu ponto, guardei a mochila e sentei.

-- Cadê todo mundo? - perguntei.

Vallery era uma moça que trabalhava na biblioteca do CCMN.
Quando as coisas ficavam muito atribuladas no IF, Nini a pedia "emprestada" à Madalena, gestora do Centro. Nos conhecemos na semana das matrículas. Ela fazia Serviço Social na UFRJ. Eu gostava dela por seu ar maternal.

-- Nini pediu ao Lino e ao Zé que fossem ao CCMN ver o espaço para alojar parte do acervo. Daqui a pouco eles estão por aí... Você sabe que as reformas vão começar, não sabe? - lembrou-me ela.
-- Ah, é.
-- Olhe, a Nini quer falar com você. Dê um pulinho lá.
-- Ok.

Levantei e fui até a sala da bibliotecária-chefe.
Nini me recebeu com um sorriso e me explicou que devido às reformas, a biblioteca só funcionaria dois dias por semana. Assim sendo, ela concluiu que não seria necessário que todos viessem nestes dias e que por isso, passaríamos a trabalhar em sistema de plantão, apenas três de cada vez.

-- Seu estágio acabaria na primeira semana do mês que vem, mas com isso e mais sua viagem à BH, receio que teremos que adiar sua saída, quem sabe, para junho. - concluiu ela.

Eu não me opus tendo em vista que ela fora muito compreensiva em permitir que eu viajasse no meio do mês e compensasse depois. Compensar mais um mês não seria um sacrifício. Não mesmo.

Antes de eu sair, ela disse que Marconi ligara e que eu poderia usar seu telefone. Disquei o número que ela anotou e do outro lado da linha Marconi atendeu:

-- Graaande, Alya! Salve, Salve!
-- E aí, Marconi? Tudo certinho!? Que manda? Nos veremos hoje?
-- Olhe, querida, - começou ele - amanhã é o último dia para enviarmos os currículos dos palestrantes à banca da Executiva Nacional para avaliação. O Leandro trabalha com dois dos palestrantes e havia se comprometido a levar o currículo deles lá para a nossa reunião. Só que ele teve um imprevisto e não irá. Como ele estará aí no Fundão para um seminário, eu pedi a ele que os entregasse a você para que os trouxesse para mim hoje. Eu tenho fax no trabalho e passarei os currículos amanhã pela manhã. - (naquele tempo, nada de e-mails; e fax era uma coisa corporativa) - Ele deve passar por aí lá pelas 15h, ok?
-- Tá ok, Marconi. Ficarei esperando. Até a noite, então.
-- Beijo!
-- Beijo.

Desliguei.
Ah, puxa, logo o convencido do Leandro? - pensei - Bah! Deixa pra lá.

Agradeci à Nini, voltei ao balcão e aproveitei para papear com a Vallery.
Ela me parecia uma moça tímida, mas com meu talento pra puxar assuntos - que funciona bem com quem quer falar - ela se soltou mais, e em pouco estávamos rindo enquanto trabalhávamos.

Durante nossa animação, ela começou contar seu sonho daquela noite. Ela sonhara que tinha uma espinha no rosto e que ao espremê-la, ela ia ficando maior, e maior, até que uma cabeça caía no chão. Ela acordava horrorizada.

Fiquei surpresa por ela me escolher para contar aquilo. A gente se via pouco.
Isso ocorre de vez em quando. As pessoas, do nada, começam a me contar seus sonhos... Devo ter cara de "confessionário onírico"...

-- Acho que você deve procurar um médico. - disse em tom moderado - Você comentou que está com gastrite. Talvez a coisa seja um pouco mais séria e seu corpo esteja querendo avisá-la...

Não sei de onde me veio aquilo, mas a menção à "cabeça" me lembrou algo que tem vontade própria, que pensa sozinho, vivendo dentro dela... sei lá.

-- É. Vou procurar. - respondeu ela de um jeito anticlimático, frio, me olhando de cima abaixo e acima de novo.

É justamente aquele tipo de olhar que eu evitava - e evito - ao máximo. Ela me olhou daquele jeito que tenho medo que as pessoas me olhem se eu contar minhas aventuras oníricas. Me achando uma esquisita. Estranha.

Dei um sorrizinho sem graça e voltamos ao trabalho. O papo continuou, claro, mas senti que agora ela tateava para falar comigo. Ainda bem que minha tarde melhorou quando meus afetos entraram pela porta.

-- Olá, meninas! - saudou o Zé.
-- Boa tarde. - saudou Lino.

Eles passaram direto pelo corredor.

-- E aí, rapazes? Como foi lá? - perguntei animada.
-- Foi tranquilo. - disse o Zé ao passar - Vimos os espaços para acondicionamento do acervo. Depois a gente conversa...

E seguiram direto para a sala da Nini para prestar seu relatório.
Uns dez minutos depois, tão logo eles estavam de volta, Vallery falou com Nini, se despediu de nós e saiu na sequência. Será que eu a havia assustado? Até hoje não sei.

Os rapazes tomaram seus lugares de costume e ficamos a falar sobre as reformas e em como poderíamos aproveitar o tempo livre do plantão. Todos tinham em mente pôr os estudos em dia.
É claro que nem tudo era seriedade... Fizemos piadas sobre o 1º de abril - Dia da Mentira.

O tempo foi passando e conforme chegavam, avisávamos aos alunos que a biblioteca entraria em reformas e que só ficaria aberta dois dias por semana. Nini preparava uns panfletos para divulgar aquilo.

Lá pelas três horas, haviam poucos livros a serem arquivados de modo que o Zé se oferecera para realizar a tarefa sozinho. Ele saiu empurrando o carrinho, mas antes, e só para mim, ele deu uma piscadinha.

Quando entendi suas intenções, eu travei um sorriso e meneei a cabeça. Zé estava nos deixando sozinhos de propósito.... Eu tinha mais um torcedor.
Depois que ele saiu, ainda debruçada sobre o livro em que trabalhava, comentei casualmente:

-- Vou voltar a Unirio hoje, Lino. Você vai à aula?
-- Vou sim.
-- Podemos ir juntos?
-- Sempre.

Eu olhei para ele que sorria. Eu sorri por dentro e por fora, mas voltei a dar atenção ao meu livro.
Quando achei que Lino iria me dirigir a palavra para falar alguma coisa, Leandro entra hall a dentro fazendo barulho.

-- Achei você!!! - sorria ele - E aí, gata!!!

Ele se aproximou e se inclinou por sobre o balcão na minha frente.

-- Oi, Leandro. Tudo bom? - disse educada.
-- Qual é, Alya? Nem um beijinho? Nós somos companheiros de causa ou não somos? - e sorriu.

Rolei meus olhos à hipérbole e tive que rir. Ele era tão espontâneo.

-- Ah... Desculpe...

Levantei-me, apoiei as mãos na bancada, inclinei sobre o balcão e beijei-lhe as faces.

Leandro tinha aquele jeito chato de cumprimentar. Ele virava um pouco o rosto para dar beijinhos estalados, sua mão segurava a nuca da pessoa beijada e ele fazia isso mais lentamente do que a amizade permitia. Ele fazia isso com todas as garotas. Todas.

Ao me afastar dele, me senti um pouco constrangida porque Lino estava ali e certamente observara a cena.

-- E aí, Lino? Tudo jóia? - saudou Leandro estendendo sua mão para ele.

Leandro e Lino eram da mesma turma. Se conheciam.

-- Tudo bem, e você? - respondeu levantando-se e apertando sua mão.

Leandro riu.

-- Cara! Você trabalha com a Alya, - gesticulou para mim - e nunca falou nada! Pôxa!
-- Pois é...
-- Puxa, essa garota não para! Fala pra chuchu, resolve tudo e reclama a beça! Como tu aguenta!? - ele ria de mim.

Comecei a corar e tive que me intrometer.

-- Ei! Vê lá como fala de mim! - disse brincando - Vai assustar o Lino! - eu sorria... mas estava falando sério.

Lino deu um sorriso presunçoso e respondeu a ele:

-- Eu já me acostumei.

Eu murmurei alguma coisa contra os dois que estavam me zoando.
Lino e Leandro ficaram mais alguns minutos conversando sobre qualquer coisa referente a um trabalho acadêmico. Era contrastante ver os dois falando. Um com a voz modulada e gestos contidos e o outro tagarelando e gesticulando.

-- Olha, gata. - disse Leandro quando se virou e pousou uma pasta plástica azul sobre o balcão - Aqui estão os currículos e as cartas de apresentação dos palestrantes. Tenho que voltar pro seminário.
-- Ah, sim. Obrigada. - respondi pousando a mão sobre a pasta para puxá-la para mim.

Leandro travou meu movimento ao segurar minha mão e de repente ficou sério:

-- A gente se vê na próxima reunião, Alya. - e soltou todo o poder de seus olhos verdes sobre mim.

Pega de surpresa, como uma passarinho mesmerizado por uma cobra, fiquei alguns segundos perdida nos olhos dele. Emudeci.

É claro que ele gostou da minha expressão...

-- Tchau, Lino! - disse ele ainda com os olhos em mim - A gente se vê amanhã. - só aí me soltou quebrando o link.

Virou-se, acenou e saiu sem mais.
Eu e Lino murmuramos um "tchau" mudo e quando a porta se fechou atrás dele a biblioteca ficou em total silêncio.

Ainda desconcertada, soltei a respiração que prendia e peguei a pasta. A guardei junto de minhas coisas e me sentei. Lino já estava em seu lugar.

-- Ele é um cara legal... - comentei para quebrar o gelo - É meio chatinho, mas é legal... - e me lembrei dos olhos verdes - ... Além de ser um tremendo gato! - completei em tom de brincadeira.

Lino não fez expressão alguma. Apenas levantou-se.

-- Vou ver se Nini quer que eu leve as cartas para os escaninhos agora. - disse com indiferença. Passou por mim e saiu pelas portas duplas.

Eu fiquei no vácuo.

!?!?
Me virei, abri o armário e peguei algumas fichas para ordenar. Bati a gaveta com força.
Droga!

Essa era, basicamente, a diferença entre Lino e eu: ele falava de menos e eu demais.
Será que lhe provoquei ciúmes? Eu nunca saberia. Eu não tinha material o suficiente para analisar a situação. E era também isso que atrapalhava aquele romance. Eu nunca conseguia ter uma certeza razoável sobre se ele gostava de mim do mesmo jeito que eu gostava dele. Para cada palavra ou expressão que me dizia que sim; havia uma dúzia, que não me diziam que não, mas me deixavam no limbo...

Estava eu xingando mentalmente quando o Zé voltou ao balcão e Lino passou pelo hall com as cartas porta à fora.

-- Aconteceu alguma coisa? Vocês brigaram? - perguntou Zé ao sentar-se.
-- Não. Por que? - me surpreendi.

Zé deu de ombros:

-- Ah... Por nada... É que ele estava com uma cara...

Ah, Droga... O que ele estaria pensando? Argh! Vou mandar esse garoto às favas! Já não aguento mais esse "estica e puxa" de sentimentos. Saco!

-- Dez para as quatro, Alya. - cortou o Zé - Você não tem que voltar à Unirio?
-- Ãh? Ah, é.

Parei o que fazia e comecei a recolher minhas coisas. Depois peguei a mochila e a tal pasta azul e as pousei sobre o balcão.

-- Ia partir sem mim? - Lino perguntou ao entrar pelas portas da biblioteca.

Eu sorri quando o vi, sinceramente feliz por ele parecer estar de bom humor de novo. Minha raiva se esvaindo.

-- Eu estava te esperando... - mentira. Àquela altura eu já achava que teria que ir sozinha - Vamos? - controlei o sorriso.

O Zé sempre ficava mais meia-hora para pagar suas faltas com seminários e cursos, então nunca saía conosco. Lino pegou suas coisas, nos despedimos de todos e saímos.

Fizemos o conhecido trajeto falando pouco.
Falamos sobre as reformas na biblioteca - Vão instalar computadores? Puxa! -, da situação política do país, em duas palavras: Era Collor -, das greves e dos salários.

Nos alojamentos, nos dirigimos automaticamente para nosso jardim e, mais uma vez, senti a timidez pairar no ar.

-- Vão ter que esticar meu estágio, sabia? - comentei - Com essas reformas e minha viagem à BH, eu vou acabar tendo que compensar até junho.
-- Junho? - sorriu ele - Até quando? ...Até meu aniversário?

Eu olhei.

-- Você faz aniversário em junho?
-- 19 de junho.
-- Hum... Um geminiano... - disse num tom de mistério. Cruzei as pernas e pousei as mãos nos joelhos.

Conhecer as fases dos signos solares não era algo recente para mim. Eu sempre me interessei por Astrologia. No entanto, eu sabia pouco sobre Gêmeos. Sabia que mudavam de humor rapidamente e que a dualidade é um traço marcante na personalidade dos geminianos, e só. ( Hoje eu sei bem mais que isso...)

Ele perguntou curioso sobre o que eu sabia e eu lhe respondi o comentado acima. Ele me olhou incrédulo.

-- Eu não acredito nessas coisas. - afirmou com um sorriso zombador.

Eu olhei presunçosa:

-- Você sabia que o signo de Virgem é o único que consegue mudar o humor de um geminiano tanto para o bom quanto para o mau?

Ele sorriu apertando os lábios, olhou para longe e de volta para mim.

-- E você é virgiriana. - o sorriso se abriu.
-- De 28 de agosto.

Ele se inclinou e apoiou os cotovelos nos joelhos, juntou as mãos e olhou de novo para longe.

-- Então, neste caso, estou começando a acreditar... - e me olhou com o canto dos olhos - Só você consegue me fazer sorrir e também me irritar ultimamente...

Meu coração palpitou. Ele queria dizer o quê? Que eu era a dona do humor dele?
Resolvi manter o diálogo leve.

-- Eu te irrito? - sorri e bati com meu ombro no dele - Eu não sou nada irritante, tá! - disse como uma garotinha. E mudando o tom completei - Eu gosto de mexer com você... Provocar você... É diferente.

Ai, meu Deus... o que eu estava dizendo? "Provocar" poderia ter diversas interpretações... Mais um pouco e eu estaria me declarando. Calei e virei o rosto encabulada.

Silêncio.

-- ...nosso ônibus. - ele disse. Pareceu-me que ele fizera um esforço para falar.

Soltei o ar pesadamente. Ainda sem olhar, ajeitei a mochila no ombro e me levantei. Nem tinha notado que o ônibus chegara.
Caminhei sem falar nada e o rapaz ao meu lado também estava quieto.

Como de costume, ele parou à porta e fez sinal para eu subir. Havia um banco vazio no meio do ônibus e me sentei à janela.

Tão logo ele se recostou ao meu lado percebi seu calor. Era bom. Olhei discretamente. Lado a lado, seu ombro era um palmo mais alto que o meu. Ele estava usando uma camisa de botões negra com as mangas dobradas até o cotovelo e calça jeans escura. Lhe caíam muito bem. Eu gostava daquele porte físico dele. Me atraía... Na verdade eu achava ele lindo.

O ônibus deu partida.

-- Ai, meu Deus! Minha pasta! Onde a deixei!? - me alarmei tateando em volta quando me libertei do devaneio.
-- Calma... está aqui. - e me passou ela.

Que alívio! Eu vivia esquecendo as coisas... Se não fosse ele...

-- Ah... Obrigada. - disse me recompondo. Sorri um pouco. - Eu ando meio distraída... Essa distração vive atrapalhando meus planos... - afirmei resignada.
-- E quais são seus planos? - me encarava agora.

Hum... Essa me pegou... Ele estava me dando assunto para uma hora inteira de viagem até a Urca.

-- Ah... Bem... - comecei entrando em modo palestra - Primeiro preciso me formar; conseguir um emprego... - gesticulei - Neste caso, essa viagem à BH será uma boa experiência profissional porque, você sabe, nossa área...
-- Nós já falamos sobre nossa vida profissional... - me cortou ele - Eu falo da vida pessoal... - engoliu. Corava? - Quais são seus planos?

Senti aquele friozinho no estômago. Para onde ele estava levando aquela conversa?

Sinceridade, Agnostha.

-- Bem... No nível pessoal as coisas estão meio confusas... - eu moderava a voz agora - Ainda não sei bem o que quero. - meus olhos vagaram - Tenho milhões de tarefas e responsabilidades comigo, com minha família, os estudos e o DA. - balancei a cabeça - As vezes é bem difícil fazer um plano coerente, sabe? - e olhei pra ele.
-- E os pretendentes? - perguntou casualmente.

Comecei a corar. Olhei para a frente. Apertei as mãos no o colo sobre a mochila.

-- Ah... Tenho alguns, você sabe... - gesticulei - Mas eles não se encaixam nos meus planos... Não que eu não queira... A vida é que está confusa mesmo...

Notei que ele puxou o ar antes de falar:

-- Você tem planos com o Leandro?

Leandro? Como Leandro entrou nessa conversa?

Perseverança, Agnostha.

-- Não... eu não tenho planos com o Leandro... - suspirei - Tenho planos com outra pessoa... - e olhei furtivamente para ele.

Ele girou um pouco no banco, virando-se pra mim, e procurou meus olhos:

-- Outra pessoa? - hesitou - Posso saber quem?

Minha respiração suspendeu. Eu pisquei confusa e me olhei para a frente. Dois segundos e soltei o ar de maneira audível. Senti seus olhos ainda sobre mim. Tão perto...

O que faço!? Falo? Digo que gosto dele? Mudo de assunto? Ajo?
Meu coração martelava forte enquanto meu sangue fervia.

Coragem, Agnostha.
Agi.

Solenemente, me virei pra ele, puxei seu queixo para baixo e, delicadamente, dei um, dois, três selinhos em seus lábios.

-- Você, idiota! - completei olhando em seus olhos.

Olhei pra frente de novo. Desnorteada com o que tinha feito, continuei falando.

-- Bem... como ia te dizendo...

... e não faço a menor ideia do que disse naquela hora!

Meu coração palpitava como louco e meus ouvidos zuniam! Minhas mãos pareciam picolés e meu rosto estava ardendo de vergonha e - por que não? - de alegria também!

Ele estava congelado - ou chocado - na mesma posição... Eu não sei... eu ainda não tinha coragem para olhar. Eu falava sem parar para respirar e devo ter falado por um minuto inteiro!

Vendo que a situação era insustentável, eu finalmente pausei e inspirei fundo.
O que fiz!? Será que ele estava chateado comigo? Toda nossa amizade perdida?
Expirei relaxando os ombros e olhei pra ele sem encarar seus olhos.

-- Ai, ai... Me desculpe... - disse sem jeito - Eu sou maluca... Eu sou doida... eu... - e balancei a cabeça - Eu não queria te forçar... eu...

Sua mão segurou meu queixo e levantou meu rosto.

-- Ainda bem que você falou... - seus olhos nos meus. Sorriu - ...Eu estava juntando coragem pra me declarar...

E aí sua boca colou na minha e eu não vi mais nada!
Não vi o ônibus cheio de gente, não senti seu saculejar, não vi em que ponto do trajeto estávamos... Nada!

O primeiro beijo com alguém que se ama é sempre o melhor de todos! Não dá para descrever!
Seus lábios eram macios, úmidos e quentes. Eles se encaixavam perfeitamente nos meus... e o gosto... e a língua... Ah!

Nos últimos dois meses minha vida tinha sido uma eterna dúvida ...e desejo. Aquele beijo era um alívio e ao mesmo tempo uma guinada em minhas emoções.

Quando nos desvencilhamos olhamos nos olhos e sorrimos. Nossa respiração indo e vindo muito rápido. Sua mão afagou meu rosto e eu retribuí o gesto. Como era bom finalmente poder tocá-lo! Tocá-lo com carinho.

Naquele segundo eu senti como se fosse um reencontro... Eu não sei explicar... Era como uma saudade enorme... que morria ali!

Ainda não havia espaço para palavras então nos beijamos de novo... e de novo... Até que tive que fazer um esforço consciente para lembrar que estávamos num ônibus acadêmico cheio de gente e me comportar.

Éramos todo sorriso. Agora nossas mãos dadas pousavam sobre a mochila em seu colo.

-- Ainda bem que isso aconteceu. Eu não aguentava mais essa situação... - comentou ele timidamente.
-- Você não aguentava!? - eu controlava minha euforia - Eu é que não aguentava mais!!! Você tem noção do que passei!?
-- Você passou? - e riu - E o que eu passei? Sem saber se o que percebia era interesse, ou mais uma brincadeira sua...
-- Brincadeira!? - bufei teatral - E você que tem a mesma cara para todas as emoções!? Como eu ia saber!?
-- A mesma cara? - e riu.

E começamos a brincar um com o outro sobre nossas inseguranças naqueles meses.
Foi divertido. Fiquei sabendo que ele estava interessado em mim desde a primeira ida à Unirio, que ele pensava que eu namorava o Marconi, que ele se segurava pra não me beijar na biblioteca...
Fiquei feliz. Em troca falei de como me sentia quando ele chegava perto demais ou quando estávamos sozinhos no balcão, e da vergonha que senti quando peguei ele sem camisa...

Nós rimos muito.
A situação toda era engraçada porque parecíamos dois amigos que se beijavam.

Apesar da brincadeira, eu ainda estava alerta. Sabia que ele tinha terminado um namoro recentemente e o que acontecera ali, podia ser algo de momento.

Mas não queria falar sobre nada sério naquela hora. Não queria perguntar se estávamos namorando de verdade ou não. Não queria saber da ex dele e em que pé estava aquela situação.
Eu queria aproveitar o agora... Deixar toda minha ansiedade acumulada se esvair na felicidade daquele momento.

Fomos nesse clima até a Urca. De vez em quando um beijo interrompia o diálogo.

Quando ele segurou minha mão para descer do ônibus, não a largou mais.
Quem passava, via um casal feliz.

Eu me sentia meio idiota com um sorriso estampado no rosto que não desmanchava. Não conseguia encará-lo diretamente, com vergonha de parecer uma boba infantil. Eu era, literalmente, uma adolescente de com seu primeiro amor.

Caminhamos pelo pátio - ou era o céu? - e só me dei conta que já estava em frente a escada da sala do DA porque ele parou. Olhei e vi que tinha gente lá.

Ficamos de frente um para o outro. Ele me passou a pasta azul - que eu já nem me lembrava dela (de novo) - e sorriu.

Me demorei em seus olhos negros.
É. Brilhavam... como os meus...

-- E então... - era sempre eu quem quebrava o gelo... naquele caso, o calor - ... nos vemos amanhã?
-- Espero que sim. - e sorriu torto - Vou te esperar...

Ele se inclinou e me beijou de novo.
Ele apenas pousou sua mão em minha cintura, mas eu tive que me esforçar para fazer daquele beijo, só um beijinho de despedida...

Com o coração palpitando, eu sorri e me afastei dele.
Foi difícil dar-lhe as costas e subir as escadas. Estabanada como era, não sei como consegui.
Do topo olhei pra ele e sorri. Ele inclinou a cabeça e sorriu também.
Fiquei olhando até ele sumir na rampa dos elevadores.

Suspirei e entrei saltitante na sala do DA. Feliz da vida!