Zumbis (Parte 1)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Finalmente o tempo passou e as aulas começaram.
O primeiro mês foi uma droga! Desculpem o palavreado.

E não foi ruim só por causa dos trotes. Isso foi mole.
Pra uma faculdade pública federal até que eles pegaram leve: tive que fazer uma cena de amor com o busto do patrono que fica no pátio na frente de todo mundo.

Corei, é claro. Mas pra quem estava tão feliz como eu por estar ali, até que não foi um esforço muito grande fazer a tal cena. Além do mais, aquelas pessoas não me conheciam. Não sabiam o quão louca eu posso ser quando quero, e eu queria fazer amizades.

Deu certo. A palhaçada no pátio me ajudou a me misturar. Os que estavam ali, na mesma situação embaraçosa, simpatizaram comigo.

Foda mesmo foi o ambiente....
Não, não... Nada assustador, de verdade... Ao menos aos olhos.

Naquele tempo, o prédio do CCH da Unirio ficava no mesmo campus que a reitoria, junto com a Escola de Enfermagem e a de Direito. Era um campus vizinho ao campus de outra faculdade, a UFRJ na Urca.

A Escola de Biblioteconomia ficava naquele prédio que tinha cara de anos 70. O nosso prédio era apenas um amontoado de salas comuns (cadeiras com braço de apoio como carteira, uma lousa grande, uma parede-janelão), as outras dependências dos funcionários, banheiros horríveis como qualquer faculdade pública... Tudo normal.

O que me incomodava lá era o corredor do térreo. O pavimento térreo ficava no subsolo.
Pois é... A gente tinha que descer uma rampa; alcançar um corredor para; ao fim dele, alcançar o elevador. As salas de aula ficavam pra cima.
Esse subsolo foi aproveitado para colocar as salas de Educação Física, salas para guardar equipamentos e alguns vestiários. O pavimento todo era meio silencioso já que não haviam aulas diárias. O maior movimento ficava mesmo nesse tal corredor, que pra piorar, era mal iluminado.

Sempre que eu passava por ali sentia um incômodo.
De início não consegui identificar nada, não sabia explicar o que era. Havia apenas aquela vontade de passar rápido por ali... Fugir...
Mas ao fim da primeira semana os sonhos começaram. Pesadelos, devo dizer...

Foi num sábado...

Antes, eu comecei a ter aqueles sonhos repetitivos de que estava em sala de aula ou com os novos amigos. Isso não era nada de se estranhar. Eu estava me integrando a um ambiente novo e é normal que se sonhe com um ambiente novo. Sempre existe aquela mistura de ansiedade e excitação quando se integra um projeto inédito, como era o caso da faculdade, e eu não fugia à regra...

Pois é. Naquele sábado estava eu sonhando que me dirigia à faculdade. Andava tranquila, mochila às costas, cabeça na aula... Já tinha atravessado o pátio quando entrei naquele bendito corredor e BAM!!!

Alguém me acertou a cara!!!

Um soco!? Uma paulada!?Acordei com o impacto. - Caraca! Me deram um cacete! - estava atordoada na cama. - Ah! Que maluquice... - pensei. Passei a mão no rosto, pisquei um pouco e - sem dar muita importância - voltei a dormir pois era madrugada.

De domingo pra segunda torno a sonhar que estou indo à faculdade. Tudo igual: viro no corredor e... PHOU!!! - não deu tempo de ver nada, mas escutei alguém rindo. Voz de mulher.

Acordei de novo. Dessa vez mais chateada do que assustada. - Que merda era aquela? Duas noites seguidas tomando porrada? - Não iria acordar da próxima vez... se lembrasse de me controlar... e se houvesse uma próxima vez.

Não precisei esperar muito.
Na quarta ou quinta da semana seguinte sonhei novamente com a faculdade. Ganhei lucidez quando ainda passava pelos portões do pátio.

Que alegria! Ganhar lucidez é uma dádiva. Você fica tão emocionado por estar consciente em um sonho que quer reparar em tudo. As cores, os objetos, como você está... Eu ao menos sou assim.

Me olhei. Eu era eu mesma. Meus cabelos encaracolados castanhos desciam por meus ombros até minha cintura. Meu corpo esguio de pele clara. Não sabia como estava meu rosto, mas certamente devia ser o mesmo rosto de coelhinha-dentucinha e olhos negros e sem graça de sempre (nunca fui uma beldade, embora - sabe lá Deus como - eu conseguia namorados...). Estava usando meu jeans justo e surrado, tênis keds, e uma camisa T-shirt verde que nem tinha na vida real. Dei de ombros. - Dá pro gasto.

Olhei em volta enquanto caminhava. Era uma versão meio estilizada de minha faculdade. Havia mais verde do que na realidade, mas o prédio principal estava lá tal como eu lembrava dele.

A memória dos outros sonhos veio clara. Avancei com cuidado. Dessa vez sabendo que havia alguma coisa querendo me bater, então olhava para trás de vez em quando.

Num primeiro momento, não estranhei muito o fato de não ter ninguém lá além de mim. Eu chegava muito mais cedo do que a maioria dos outros alunos pois ia de carona com meus pais. Eles tinham que estar às oito no trabalho e me deixavam na faculdade às sete. O problema é que ali eu sabia que estava sonhando. E o fato de não ter ninguém por perto era algo a se considerar. Isso deixava-me a sós com meu agressor.

Avancei mais a passos lentos... já conseguia ver a rampa que descia até a entrada do corredor.

Pensando bem... eu não precisava passar por aquilo, ? Eu poderia aproveitar que estava consciente e fazer algo legal no meu sonho... Sei lá... Voar. Ver um amigo. Ver o mar...
Com este pensamento eu fiz meia-volta e foi quando vi o gato aos meus pés.

Amo gatos! Eles são tão adoráveis!
Mas aquele gato não era adorável...

Era um gato preto, de cócoras, olhando pro alto. Encarando-me.
Ele estava... morto. Em decomposição. A ponta de sua cauda carcomida balançando de um lado para o outro...

O pavor subiu por minha espinha!
Estava suficientemente lúcida para reparar em suas carnes caídas pelas costas e patas enquanto os ossos das costelas se expunham do outro lado. Vermes se retorciam entrando e saindo do buraco do que fora um dos olhos que me encaravam. Até o fedor de podridão eu pude sentir.

Meus olhos estavam arregalados, meu estômago ameaçando revirar. Não sabia se devia acordar, ou correr, ou atacar.

Sinistramente, ele emitiu um miado ameaçador deixando os dentes amarelos à mostra.
Dei um passo para trás com as mãos à frente preparando-me para defender. Para minha surpresa e confusão, ele parecia assustado e correu para longe.

Meu alívio durou segundos. Percebi que ele correra do que estava atrás de mim.
Girei, mas não deu tempo para reagir.

O vulto feminino me empalou violentamente com uma estaca fina como um cabo de vassoura.
Pegou na barriga... na boca do estômago. Curvei, arfando, sem ar... A dor irradiando daquele ponto. Minhas pernas tremeram e, segurando o cabo, fui caindo lentamente...

Horrorizada com minha própria morte em sonho, olhei para cima. A mulher - o que restava dela - parecia ser um zumbi. Um corpo deteriorado, esverdeado. Cabelos desgrenhados. Os olhos eram hematomas escuros sorrindo de forma aterrorizante.

-- Eu posso te ver! - disse ela com uma voz inumana.

Não resisti. Fui ao chão... Escuridão... e acordei.

Meu coração disparou! Estava ofegante.
Sentei na cama e abracei os joelhos apoiando a cabeça neles, tentando me recompor. Controlar a tremedeira nas mãos. Suas palavras retumbando em minha cabeça: "Eu posso te ver".... "Eu posso te ver"..."Eu posso te ver!"...

-- Eu posso te ver? - fiquei confusa com aquilo - O que significava? E o gato?

Respirei melhor. Olhei em volta e o quarto estava normal. Minha irmã ressonava em sua cama.

E a dor? Aquilo doeu. Não havia verdadeiramente dor quando acordei. Mas no sonho, doeu. Não era a primeira vez que sentia dor em sonho, mas não contava com aquilo. - O que fazer...?
Já era cinco da manhã e é óbvio que não consegui dormir de novo. Meia hora depois o ritmo frenético de nossas manhãs teve início quando minha mãe se levantou. Logo, todos estávamos saindo de casa. Não alarmei ninguém, como de costume, com meus sonhos animados.

Mais tarde, naquele mesmo dia, uma de minhas recentes amigas estava ao meu lado quando comentei o sonho:

-- Esse seu sonho é interessante... - disse Diva, enquanto guardavamos nossos cadernos - Você sabia que isso aqui já foi um necrotério, Alya? - explicou ela.

Diva é uma daquelas pessoas que Deus coloca em seu caminho para cumprir uma função e depois saem de cena. Um anjo, por assim dizer.
Era a aluna mais velha de nossa turma universitária. Ela devia ter quase cinquenta anos. A faculdade era um sonho antigo sendo realizado. Apesar de ser meio matrona, seu semblante transparecia força e energia. Suas roupas tinham um quê de cigana provavelmente pelo visual dos colares e da faixa que usava para arrematar o cabelo puxado num coque. Ela era o tipo de pessoa que combinava alegria e maturidade com grande dose de espiritualidade.

--Não brinca! Como é que é!? - perguntei. Minhas sobrancelhas deviam estar no meio da testa com o modo que arregalei meus olhos...

-- Isso mesmo. - continuou ela - Esse campus da UFRJ ao nosso lado já foi um hospício. A maioria dos pacientes era esquecida pela família... Alguns ficavam aqui a vida toda. Quando morriam eram trazidos para o necrotério, que ficava aqui, - apontou para baixo - até serem resgatados pelos parentes...

Engoli em seco:

-- ... E quando os parentes não resgatavam... Levando-se em conta o sistema de refrigeração daqueles tempos... Imagino que isso aqui devia ser bem apavorante... - completei eu fazendo uma imagem mental bem nítida do que queria dizer.

-- Ah! Com certeza entravam em decomposição antes de serem enterrados... Irrrc! - repugnou ela.

Fiquei cismada. Eu juro que não tinha conhecimento daquele fato. Não fazia ideia de que o campus Urca da UFRJ já fora um manicômio.

Imagine o abandono, a confusão, a raiva, a loucura? Tudo num só lugar! Quanta energia ruim... Imagine se alguém naquela situação pudesse ver outro alguém... sei lá, diferente... e julgasse essa pessoa como a responsável por sua dor?

Algumas suposições começaram a borbulhar na minha cabeça.
É claro que estava consciente de que aquilo tudo poderia não passar de maluquice minha. Coincidência, sabe?... Mas era muita coincidência junta. E eu já vivera coincidências demais, com e sem Agnostha, para acreditar inocentemente que tudo que se sonha tem explicação Freudiana ou Junguiana...

Não! Eu não ia tomar porrada toda vez que sonhasse com a faculdade. Estava decidido.
Eu não sabia se tinha coragem suficiente... Mas eu tinha que encarar aquela situação... E eu ia.

(C0ntinua)