Zumbis (Parte 2)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Desci às pressas do carro. Voltei. Já ia esquecendo a mochila. Bati a porta.

--Valeu, pai! Valeu, mãe! - disse me inclinando do lado de fora para a janela. --Bença!

--Deus te abençoe, minha filha. - responderam os dois sorrindo.

Aceleraram. O carro deles virou um borrão antes de chegar à esquina.
Caminhei sem pressa pelo pátio. Era uma manhã nublada, mas clara.
Ajeitei mais a mochila ao ombro e senti que estava me esquecendo de alguma coisa.

O que seria? O trabalho de História?... Não. Esse era pra sexta. O de inglês? ... Não... Que dia era hoje? - continuei andando. - Putz!... Não consigo me lembrar... algo importante. Lembre-se...Lembre-se...Lembre-se...

Estaquei.

Caraca! Tô sonhando!

Era disso que tinha que me lembrar! Estava sonhando com a faculdade! Finalmente!
Depois de quase duas semanas sem nada estranho me ocorrendo, já estava achando que havia dado muita importância ao sonho.

Todas as noites, antes de dormir, eu respirava fundo, orava e me concentrava tentando reunir minhas forças. Ia dormir me sentindo preparada para encarar qualquer coisa, fosse o que fosse. No entanto, as noites seguiam seu rumo normalmente. Sonhos normais, dias normais. Foi assim por vários dias... Até que eu relaxei.

Bah! Bobagem ficar vidrada numa ideia maluca...

Agora estava eu ali. De novo no sonho da "Assassina-zumbi". Ai, meu Deus...

Me olhei. Não precisei largar a mochila. Ela desaparecera quando fiquei consciente. Eu estava usando jeans e uma camisa branca. Descalça. Não estava bom. Mas naquela circunstância, com uma zumbi prestes a me matar em sonho, que diferença faria?

Franzi o cenho com esse pensamento. Raiva. Não iria deixar aquilo acontecer de novo.
E assim, meio assustada, meio decidida a por fim naquilo, eu atravessei rapidamente o pátio, desci a rampa e ganhei o corredor.

Entrei.
Oh! - Por mais que o sonho, em princípio, seja meu, a mim parece que existe uma força externa agindo pois nunca as coisas são como eu espero ver. Eu sempre me surpreendo...

Não era mais meu conhecido subsolo. O cenário mudara.
O breu era quanse total depois que atravessei o batente. Uma luz esverdeada fraquinha iluminava o centro do que parecia ser um salão com um amplo espaço central rodeado de várias camas hospitalares de ferro.

Eu só via o esboço delas porque antes de chegar às paredes, já não se via nada, tal a escuridão. Uma bruma pairava sobre o chão ocultando tudo até meus joelhos. Uma umidade cavernosa completava o ambiente onírico. Onírico que parecia real demais...

Dei alguns passos. Não havia mais nenhum sinal da porta no corredor atrás de mim e eu estava no centro da luz verde. - Sinistro! Eu não poderia estar criando aquilo, poderia?... - Aquele ambiente aterrorizou-me e tive que juntar minhas forças para não acordar.

Ainda bem que fiz aquilo pois mal fechara os punhos e me concentrara, uma lança atravessou o ar zumbindo como um dardo e me acertou!

Merda! Que mira boa tinha a filha da p...!!!

A estaca entrou exatamente pelo meu olho direito e atravessou minha cabeça que foi para trás com o impacto. Caí!

Só vi de relance. A zumbi estava de pé no canto mais distante do quarto em cima de uma das camas. Ela ria alto. Confiante. E não estava sozinha. Outras vozes riam com ela. Inumanas.

Aquilo me surpreendeu. Eram outros zumbis. Mais quatro deles. Percebi enquanto me apoiava com um braço no chão nebuloso. Minha cabeça pesava, pendendo para trás, com a estaca atravessada nele. Eu devia estar horrível...

Eles riam alto. Eles estavam rindo às minhas custas... Rindo da humana viva. Da humana indefesa.
Me senti diminuta. Humilhada...

... Mas eles não me conheciam, ah, não!
Não sabiam que eu não era uma humana comum. Não comum quando sonha, pelo menos... E eu não iria ser saco de pancada de sonho nenhum! Fosse sonho, fosse pesadelo, fosse visão, fosse o que fosse!

Naquele mundo onírico eu era a estranha ali! Eu era Agnostha!!!

Com este pensamento, ergui-me devagar. Um misto de raiva e petulância crescendo em mim.
Equilibrava a cabeça com a estaca atravessada. Não sentia nada. Só via um borrão vermelho no local onde meu olho vazado deveria estar.

Respirei. Encarei meus algozes gargalhantes de pé em torno do quarto. Eram tão feios e maltrapilhos quanto ela, a que me atingiu, a que parecia ser a líder, a "Zumbi-mor".

Com gestos deliberadamente lentos, coloquei ambas as mãos na estaca e a puxei.
Foi como puxar o palito do algodão-doce. Não senti nada. Minha visão se reestabeleceu automaticamente.

As risadas pararam na hora. Surpresos, sem dúvida.
Agora eu sorria ironicamente:

-- Você. Não. Pode. Me. Ferir! - disse eu entre dentes. E, num movimento rápido, impensado, lancei a estaca de volta pra ela.

Essa cortou o ar sibilando e fez um barulho seco quando atravessou a barriga da Zumbi saindo pelas costas!

No segundo seguinte todos os vultos estavam urrando sobre mim!

Foi tudo muito rápido!

Na verdade eu não queria briga. Raramente brigo em sonho.
Nunca briguei corpo-a-corpo com alguém na vida real (Tá... Já me embolei com meu irmão algumas vezes quando criança. Mas era briguinha de irmãos... Nada comparável...). Eu chegara ali pensando em ser a magnânima, a benevolente, a celestial, a caridosa. Pensava em levar um papo com a tal zumbi... Lhe mostrar a luz, coisa e tal...

Mas vi que eu não era tão boa assim... Eu sei que não sou...
A culpa era minha. Não devia ter lançado a estaca... Eu estava com raiva... Raiva de ser a mortal. Parecer fraca. Fui petulante. Minha raiva deflagrou a violência. Agora era tarde. Já não havia espaço para o diálogo. Os outros zumbis vieram pra cima de mim e eu tinha que ao menos me defender.

Minha reação foi instantânea.

Abaixei-me girando no eixo do meu calcanhar direito, estendendo a perna esquerda e passando uma rasteira em dois zumbis que avançavam pelo meu flanco direito. Ainda girando, semierguida, estiquei os braços e plantei minhas mãos espalmadas nos peitos do outro casal que saltava pelo meu flanco esquerdo, completando o giro. Eles voaram por cima das camas, tal minha força.

Nem precisei me olhar para ver que estava Agnostha. A perspectiva do salão tinha mudado e sabia que estava mais alta. Bem mais alta. Além disso, minha velocidade e a força só corroboravam para minha certeza.

É estranho.

Não é como nos filmes de super-heróis onde todos eles têm uma transformação espetacular cheia de cores e brilhos, ou fazem aquelas posições heróicas como nos filmes japoneses, ou evocam palavras mágicas poderosas como em filmes de bruxos. Eu simplesmente sou eu... E um segundo depois, eu sou Agnostha.

As vezes nem me dou conta disso até ver minhas próprias mãos, ou ver a perplexidade dos meus circunstantes oníricos. Não há nenhum sinal mesmo.
Tá. Convenhamos. Há um sentimento: me sinto diferente... me sinto forte.

Eu precisava sair do centro da luz verde. Despistá-los.
Saltei no ar abraçando as pernas. O quarto girando uns 360 graus antes que eu caísse perfeitamente de pé sobre uma das camas.

De lá pude ver melhor a situação.
A Zumbi-mor tentava retirar a estaca da barriga, furiosa, se contorcendo sobre a outra cama. Os outros quatro que derrubara estavam se levantando da bruma do chão.

Estaria pronta para um novo ataque? Até quando aquilo duraria?

Os maltrapilhos grunhiam com raiva, cambaleantes, em minha direção. Dali, a névoa e a escuridão pareciam mais intensos. Aquilo me incomodava.

Luz!
A ideia me veio clara.

Sim! Como não pensei nisso antes? Como proceder?
Levou um milésimo de segundo para saber. Direcionei minhas mãos para os zumbis e me concentrei. Surpreendentemente, minhas palmas negras ficaram prateadas como aço inox e em seguida brancas.

Sem me deixar deslumbrar, continuei com a concentração. A alvura se espalhando como água subindo pelas mãos e braços - lembrei-me do dia em que me tornei Agnostha pela primeira vez - Eu fazia um esforço mental consciente! Mantive a luz ali, concentrada, quente.

Os zumbis não se intimidaram com a crescente claridade. Continuavam a se aproximar perigosamente! Os quatro de uma vez!

A luz já estava escapando pelos meus dedos que pareciam êmbolos pressionados.
Mais dois segundos e eles me tocariam!

Não corri riscos. Como se fosse uma represa arrebentando, eu libertei toda a luz que pude!
Como mil flashes disparados de uma só vez, o quarto se encheu daquele branco cegante e por um segundo, mesmo eu não pude ver nada!

Silêncio.

Como disse... Nada é como eu espero que seja em meu próprio sonho...

Foi como se a luz tivesse enxaguado uma crosta suja.
Ali, de pé sobre a cama de ferro, pude ver um novo quarto no meu entorno. Era amplo, mas dessa vez tinha limites. As paredes eram pintadas de cinza claro. O assoalho era de tábuas corridas em um tom mogno escuro e o teto em ripas de madeira pintadas de branco. As camas continuavam lá: de ferro cinza, 3 de cada lado. Estavam arrumadinhas com lençóis de linho branco. Lampeões espaçados iluminavam monotonamente. Nenhuma janela... ou porta.

Confusa e desconfiada, desci da cama deixando o lençol franzido para trás. Vagarosamente, como uma autômata, me dirigi para a cama do outro lado do quarto. Estava assombrada com o que via: uma moça de uns 25-27 anos, bonita, amarrada, pulsos e pés, nos ferros da cama. Seus cabelos negros e lisos escorrendo pelo travesseiro. Seu rosto pálido como vela me encarava com um olhar melancólico.

Aquilo apagou todo o fogo em mim.... toda a luta... a raiva... Deixando-me sem ação.

Me aproximei taciturna e fiquei ao seu lado sentindo uma profunda pena. Sua dor. Me dei conta de que tudo era uma ilusão. Não ilusão minha... Ilusão dela, a Zumbi.

Minha pobre Zumbi-mor... Tanto esforço para preencher sua loucura e solidão...


Sem dizer nada, minhas mãos - humanas - começaram a afrouxar as fivelas que a prendiam à cama. Primeiro os pulsos, depois os tornozelos... Ela não se mexia, só me acompanhava com os olhos. Quando terminei parei de novo a seu lado. Ela virou a cabeça acompanhando-me.

--Você está livre. - eu disse, por fim.

Vi a confusão e depois a compreensão banhar seu rosto. Sorriu-me.
Ela moveu a cabeça e, olhando para o teto - provavelmente vendo o céu - desapareceu. Como neblina.

Um segundo depois o quarto a acompanhou e eu estava de pé no meio do corredor da faculdade, quase em frente ao elevador.

Acabou.

Sentia-me cansada.
Luta, dor, pena... Sentimentos muito ruins. Fora o tanto que eu tinha doado - e na época eu nem sabia que tinha... - Eu me sentia muito cansada. Exausta, na verdade. Ia perder a consciência com certeza... Não dava mais para aguentar.

Caminhei para fora com as forças que me restavam. Consegui. Estava no pátio.

Não dava mais... eu tinha que...
Apaguei. Sem sonhos.

A última coisa de que me lembro é de ter visto um lindo felino... se lambendo... com o pelo preto fofinho... Reluzindo ao sol.

(Continua)