Fantasmas (Parte 1)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Depois do almoço avancei apressada pela enorme escadaria do hall do CT e depois pelos corredores do Instituto de Física.

Quando entrei no saguão da biblioteca e vi o Zé e o Lino no balcão, senti alegria...e alívio. Tudo estava em seu lugar. Sorri.

-- E aí, rapazes! - saudei.

Eles me sorriram.

-- Puxa, você está preta, garota! Foi a praia!? - saudou-me Zé.

Eu ri. Avancei pelo bequinho do balcão e beijei as faces do Zé. Depois, com naturalidade, dei outro passo e beijei as faces do Lino. Era a primeira vez que beijava-o. Eu me sentia vermelha...

Como era de praxe, começamos a tagarelar... quer dizer, eu e o Zé começamos a tagarelar.
Lino prestava muita atenção mas falava pouco. Como fui gostar desse cara?

Falei da praia, do toboágua, do churrasco, do bloco, da caipifruta, da minha sandália que arrebentou, do primo que me derrubou suco, do confetti que caiu nos meus olhos, falei de tudo... menos de Rafael, claro.
Zé falou do retiro que fizera com sua igreja, do local, das caminhadas, dos amigos...
O Lino... bem, o Lino se limitou a dizer que tinha passado bem, que bebeu um pouco e que foi dormir tarde todos os dias.

Entre um tópico e outro fazíamos um atendimento.

Eu tentava ao máximo ignorar como eu me sentia em relação ao Lino agora. Acho que foi por isso que falava tanto... Me distraía.
Estava difícil controlar meus olhos para vê-lo com espontaneidade sabendo o que eu sabia. Que estava enamorada dele... Não conseguia encará-lo. Tinha medo que ele visse a verdade no meu olhar como Deguinha e Lili viram.
Mesmo meus olhares furtivos estavam diferentes. Me peguei reparando na forma como ele movia os lábios enquanto falava com o Zé. Sua boca, como a maioria dos orientais, era perfeitamente desenhada e os lábios eram cheios... pareciam macios...
É melhor eu sair daqui! - concluí.

Peguei alguns livros que estavam sobre o balcão e os empilhei.

-- Já fez a estatística destes aqui, Zé? - perguntei arrumando a pilha no carrinho que ficava encostado na parede.
-- Já sim, Alya. Vai arquivá-los? - respondeu girando na cadeira para me olhar.
-- Vou sim. É melhor não deixar acumular... - ...e é melhor eu sair daqui antes que o Lino perceba que estou caidinha por ele...

Empurrei o carrinho e segui para a porta dupla que separava o saguão e o acervo.
O acervo era um salão comprido. Devia caber quase umas duas quadras de volei dentro dele.
As estantes eram dispostas no sentido do comprimento formando uns seis corredores estreitos e perpendiculares ao corredor central em que eu estava.

Era um daqueles momentos em que o acervo ficava vazio. Naquele horário os alunos estavam em suas classes.
Mesmo naquela amplidão, eu ainda ouvia o burburinho dos rapazes conversando no balcão de atendimento, Nini Brantes falando ao telefone (o escritório dela ficava no fundo do salão) e de seu Manoel guilhotinando papéis (sua sala vivia fechada por causa do barulho, ficava do lado oposto do salão).

Eu empurrava o carrinho que fazia aquele barulhinho monótono de rodinhas sobre assoalho.
Olhei os livros que tinha que guardar e verifiquei os códigos em suas lombadas. Classe 539... Hum... Deve ser no corredor quatro, lado esquerdo... - pensei - e empurrei o carrinho para lá.

Passei pelo corredor um, passei pelo corredor dois...
Quando passei pelo corredor três, vi um senhor de pé de frente para as prateleiras. Estava a alguns metros de mim, mas dava para ver que podia ser um médico. Todo de branco: usava um jaleco de botões até o pescoço, calça e sapatos brancos. Folheava um livro tranquilamente.

Oh... O acervo não estava tão vazio, afinal.
Avançava para o corredor quatro, quando me lembrei de alertar àquele senhor para não repor a obra consultada na estante - tínhamos que contabilizar os assuntos...
Na mesma hora dei um passo para trás me esticando para olhar o corredor anterior de novo.

O homem sumira.

Franzi a testa. Como pôde? - pensei surpresa - Será que ele passou por mim? Teria ele dado a volta tão rápido sem que eu o visse ou o ouvisse naquela quietude? - eu sorri - Devo estar muito lerda mesmo...
Balancei a cabeça e voltei ao meu corredor de interesse...

E o homem estava lá.... no meio do corredor quatro!

Levei um segundo para realizar que só havia uma forma de ele ter chegado ali tão rápido sem que eu tenha visto... Atravessando as estantes!

Eu travei. Meus olhos se arregalam, meu coração bombou e os cabelos subiram!

Segurando o grito, simplesmente larguei tudo para trás e praticamente corri de volta ao balcão. Os meninos se assustaram com a maneira que eu empurrei as portas duplas e me joguei na cadeira entre eles.

-- Que foi, Alya!? Você está pálida! - perguntou o Zé sorrindo dubiamente.

Lino também se virou para mim. Inclinava-se para olhar meu rosto.
Eu apoiei os cotovelos na bancada e segurei minha cabeça com as duas mãos. Respirava apressada.

-- A-a-acho que vi um fantasma... - minha voz tremia - Um homem de branco... - respirei fundo - ...entre as estantes!

Eu achei que os dois iriam rir de mim, mas me surpreendi quando Lino, sem dizer nada, se levantou e foi para o acervo e o Zé, depois de balbuciar alguma coisa, foi a passos rápidos para a copa.

Não era a primeira vez que isso me acontecia.

Uma vez, eu tinha uns 14 anos, nós, minha família e parentes, voltávamos de Duas Barras, interior do Estado, quando minha mãe começou a sentir-se mal. Pressão alta.

Paramos num pronto-socorro para que ela tivesse atendimento. Eu fiquei no carro com minha prima, já adulta, e meus irmãos. Eles demoraram quase uma hora lá dentro.

Quando olhei para a escadaria do hospital e vi minha mãe e meu pai descendo por ela, notei que eles estavam acompanhados por um senhor de branco, médico com certeza.
Seria uma cena até natural - que alguém acompanhasse os forasteiros à saída - se não fosse o fato de o homem não ter imagem nenhuma dos joelhos para baixo... Transparente.

Eu olhei, pisquei e olhei de novo e conforme meus pais se aproximavam do carro a imagem do médico ia desaparecendo, até sumir por completo quando eles entraram no carro.
Eu estava cravando as unhas no braço de minha prima sem conseguir falar o que via e ela apertou a minha mão.

-- Eu estou vendo também... - falou ela calmamente quando viu o pânico em meus olhos. - Fique calma. - completou. Minha família é toda assim...

Essa era minha segunda vez. Houveram outras... talvez eu conte...

-- Não há ninguém no acervo... - comentou Lino quando voltou. A dúvida no rosto.

Eu, ainda sentada, bebia a água que o Zé me trouxera. Olhei atônita para a cara dos dois rapazes que me olhavam atônitos também.

Três medrosos.
De repente meu nervosismo explodiu em gargalhadas!

-- K-k-k-k-k! Eu vi um fantasma!!! - ria nervosa com a mão na boca.

Os dois não estavam preparados para minha reação. Entreolharam-se...
... e caíram na gargalhada também!

-- Ha-ha-ha! Você parecia uma vela!!! - ria Zé batendo em seus joelhos.
-- Só acontece com você mesmo, Alya! Ha-ha! - gargalhava Lino. Os olhos em riscos.

Rimos muito.
Ri de chorar. E se continuasse rindo perderia o controle e choraria de verdade...
Você deve estar achando isso muito estranho. Alguém rir de algo tão macabro. Mas eu já estava acostumada com essas estranhices e naquele momento, com meu enamorado ali e meu amigo, rir era a melhor maneira de extravasar a tensão... apesar de que acho que daquela vez eu consegui passar um atestado de 'maluca total'...

Depois que Nini saiu do telefone, ela veio ver o que nos arrebatara no balcão uma vez que o barulho estava impróprio para uma biblioteca. Contei o que vira.
Ela achou que eu estava brincando, mas nos contou que alguns alunos já tinham visto o fantasma do patrono da biblioteca por ali. O Plínio Sussekind. Nós rimos mais um pouco com essas estórias.

Foi bom ver o Lino rindo... Mesmo tendo eu levado um susto daqueles.
 Ele tinha um sorriso encantador... dentes branquinhos... Ooops... Virei o rosto e parei de encarar.

Aproveitamos para falar de situações de medo... eu não contei nem 1% das minhas aventuras...
E passamos o resto da tarde assim.

Dei graças a Deus por, naquele dia, não ter tido reunião do DA na Urca.
Eu precisava de tempo para me acostumar à ideia de ter Lino por perto como a um amigo qualquer...

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No dia seguinte, depois de uma apresentação em uma matéria do curso, depois de ter contatado outras faculdades sobre a prévia do Encontro de Estudantes, depois de ter copiado matérias atrasadas e depois de ter narrado os insólitos acontecimentos do acervo e driblado Lili cordialmente sobre como estava suportando meu relacionamento amoroso unilateral-platônico, entrei na biblioteca do IF sorridente como sempre.

Estava todo mundo no balcão da recepção: Zé, Lino, Seu Manoel e Nini Brantes. Pareciam animados vendo algo espalhado sobre a bancada.
Perguntei qual era a novidade quando me acomodei na cadeira.

-- Chegaram os jalecos. - respondeu Nini Brantes - Fui informada também que nossa biblioteca passará por reformas. - comentou
-- Jalecos? - olhei as embalagens com as camisas azuis. Eu achava aquilo muito démodé, mas uma biblioteca não é o lugar mais salubre do mundo... -- Ah... Legal. Vou ter que usar também?
-- Não será preciso... só quando você for trabalhar no acervo. - respondeu ela - Aqui no balcão é limpinho.

Fiquei grata. Eu já me achava feia... imagine, feia, e de jaleco?

Nosso dia seguiu. Estava sendo movimentado. Uma palestra no IF havia impulsionado os alunos a procurar certos tópicos no acervo e a biblioteca estava no maior entra e sai.
Eu, Zé e Lino revezávamos no atendimento realizando os empréstimos, dando baixa nas devoluções e auxiliando na localização de títulos.

Lá pelas quatro da tarde, perto do meu horário de saída, bateu aquela fome. A biblioteca estava mais tranquila, então achei que uma paradinha não iria sobrecarregar ninguém.

-- Meninos, vou à copa comer uns biscoitos. - anunciei - Alguém quer me acompanhar? - completei torcendo para que Lino fosse.
-- Não, obrigada, Alya. - reponderam os dois.

Desapontada, mas ainda com fome, fui para nossa copa.
A copa era uma salinha no fundo do hall. Só cabiam um forninho elétrico e uma cafeteira sobre a pia; um armário de duas portas, um frigobar e uma mesinha de dois lugares com duas cadeiras.
Abri o armário e peguei alguns biscoitos de leite. Nós fazíamos uma vaquinha para comprar biscoitos todos os meses, de modo que sempre tinha alguma coisa comunitária lá para se comer. Bebi uma xícara de café requentado.

Quando saí de lá, encontrei o Zé todo atolado com uma pilha de livros. Não perguntei pelo Lino. Tinha que manter minha fachada de 'indiferente'.

-- Quer ajuda, Zé? - ofereci

Ele resmungou alguma coisa e continuou ocupado em anotar as devoluções.
Olhei a pilha e vi dois livros importantes os quais Nini estava aguardando a chegada.

-- Os livros do Feynman foram devolvidos! Vou levá-los para Nini...

O Zé estava tão concentrado na estatística que nem sei se me ouvira. Peguei os livros e fui para a sala de Nini Brantes.

Entrei no acervo, passei pelo corredor e avancei pelas estantes sem olhar para os lados. Ainda estava com medo de ver alguma coisa como no dia anterior.
Me dirigi para a sala de Nini. Essa ficava no fundo do acervo; era o que alguns chamam de "aquário" - uma divisória de vidro montada sobre estruturas de compensado.
Quando alcancei os vidros a claridade me iluminou e eu vi.

Que susto!!! Um homem sem camisa!!!

Soltei uma exclamação e do outro lado ele soltou uma também.

Levei um segundo para perceber que Lino estava provando os jalecos naquele espaço.
Baixei a cabeça no outro segundo, mas foi o suficiente para notar os braços fortes, o tórax coberto de pelos, e a pequena imagem escura tatuada no braço do rapaz.

-- Me desculpe!!! - exclamei. Estava mais vermelha que um pimentão.

Girei nos calcanhares - totalmente sem graça! - e cheguei ao balcão na metade do tempo que fizera pra ir. Me joguei na cadeira.

-- Que foi, Alya! Viu outro fantasma! - Zé estava alarmado.
-- Quase! - eu estava queimando - Me assustei com o Lino... - "assustada" não era bem a palavra...
Zé riu alto. Ele devia ter ideia do que me acontecera.

-- Seu bobo! - levantei da cadeira rindo totalmente ruborizada - Você podia ter me avisado!!! - eu ria de vergonha enquanto batia com os livros do Feynman no ombro dele. - Ai, meu Deus!!!

Ele começou a zoar da minha cara vermelha. Que ódio!!!
Depois de mais alguns tapas eu me acalmei.
A visão de Lino sem camisa só piorou minha situação. Eu já achava ele atraente... sem camisa... Irresistível.

A coisa ficou pior ainda quando Lino voltou ao balcão. Estava usando o bendito jaleco. Me olhava com um sorrisinho malicioso.
Eu já estava controlada, mas totalmente constrangida.

-- Você me assustou. - falou ele com aquela calma insuportável - Pensei que fosse um dos seus fantasmas... - sorriu e se sentou.

Tornei a ficar vermelha. "Meus fantasmas..." - Humf! - Moderei minha voz.

-- Ah... me desculpe. Ninguém me avisou que você estava lá...

Atrás de mim, ouvi o Zé disfarçar o riso dele numa tossida.

-- Desculpe a mim. - respondeu Lino - Eu devia ter ido ao toalete ou ao vestiário - ambos ficavam no corredor, afastados da biblioteca.
-- Que isso... foi nada... bobagem.

Eu estava mesmo sem graça, mas discrição nunca foi meu forte. Ele viu quando eu olhei para o braço dele aonde a tatuagem devia estar ocultada pela manga da camisa.

-- Você viu? - apontou com os olhos. Sorria. Suas faces coraram também.
-- Er... vi. - não consegui me segurar - O que é? - perguntei curiosa.

Ele estendeu o braço e arregaçou a manga da camisa. A pequena tatuagem ficava na parte interna de seu braço, próximo à axila. Era pouco maior que um boton.
Um dragão sinuoso em negro, verde e vermelho com toques azuis, enroscado sobre si mesmo. Parecia uma medalha.

-- Fiz quando tinha uns quinze anos... Os garotos da turma estavam fazendo tatuagens... sabe como é... para se exibir... - e riu - Eu tinha pavor de agulhas mas não queria parecer um fraco e fiz esta pequena...

Nós rimos.

-- É interessante... - ...como tudo em você.

Alguém entrou no hall.
Nos ajeitamos nas cadeiras... nossas cabeças estavam quase se tocando.
Levantei e fui atender ao usuário.

Na saída, encontrei Lili e caminhamos conversando.
Não tive como deixar de comentar a ocorrência do dia.
Obviamente, ela também ficou me sacaneando. E foi ainda pior porque ela sabia o que eu sentia pelo Lino (ela brincou dizendo que mais um pouco e eu teria quebrado aquela vidraça e agarrado ele; entre outras coisas desse tipo...).

Quando me despedi dela, fiquei pensativa enquanto andava até em casa.
A situação toda seria cômica se não fosse trágica (ao menos para mim): um cara tímido, uma garota expansiva, uma paixão velada... e ocorrências estranhas para temperar... Putz!
À noite, deitada só em meu quarto, minha cabeça estava confusa. Não sabia se fomentava o que sentia e corria o risco de perder a amizade dele, ou se engavetava os sentimentos e tocava minha vida.

Eu piscava os olhos e a imagem de Lino sem camisa me assombrava... Mas era o fantasma mais doce que eu conhecia...

(Continua)

Carnaval

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Aquelas semanas de fevereiro passaram voando.
Como imaginara, minha vida ficou bem mais atribulada com as aulas, o D.A. e o estágio. Mas até que eu levava as coisas bem. Eu era muito agitada, e até hoje agendas cheias não me assustam.

O feriado de Carnaval havia finalmente chegado e aquele sábado seria o primeiro dia dos nove que estaria de folga. Minha turma, em acordo com os professores, conseguiu enforcar a quinta e a sexta pós-carnaval. Então, só estaria de volta às atividades na outra segunda.

Eu estava achando ótimo me desconectar de tudo, mas sentiria falta dos amigos.
Ainda bem que em minha rua eu tinha Deguinha, minha melhor amiga.
Ela era mais jovem que eu uns 3 anos, mas já era moça feita, muito bonita apesar de ter baixa estatura. Era uma pessoa superanimada, alto-astral e divertida. Mas não era só uma maluquinha qualquer, ela sabia também ser boa ouvinte e conselheira quando necessário.

Como não iríamos viajar naquele feriado - nossas famílias eram amigas e de vez em quando saíam juntas - resolvemos curtir o Carnaval nos blocos de rua no bairro vizinho ao nosso.

Eu não era lá o que se pode chamar de "foliã", ela tampouco.
Nós íamos mesmo só para tomar uma caipifruta, comer um churrasquinho, paquerar e ser paqueradas, e, quem sabe, "ficar" com alguém já que estávamos ambas sem namorado. Eu não estava muito animada para "caçar" naquele ano, mas Deguinha me convenceu de que eu tinha que esquecer Wendell... como se eu precisasse...

Depois de sair de casa - com a recomendação de nossos pais de não abusar de bebidas alcoólicas, evitar lugares ermos e não chegar muito tarde - chegamos na praça e demos uma volta para ter ideia do ambiente geral. Estava animado. Muitas pessoas pulavam com o barulhento bloco que tocava no fim da quadra. Como era um bairro residencial, famílias com suas crianças fantasiadas passeavam para lá e para cá.

Nos afastamos do centro da folia. Paramos num trailer e compramos caipifrutas. De copos na mão, escolhemos um cantinho onde poderíamos conversar e observar a movimentação da aglomeração, ver e sermos vistas.

-- E então, Lia? Já está tudo certo para vocês irem a BH? - perguntou Deguinha. Eu sempre comentava as novidades do D.A. para ela.
-- Ah, sim. Tivemos outra reunião chata na segunda passada e nossas passagens já estão agendadas. - respondi balançando o copo plástico.
-- Sendo assim, então você foi no ônibus de novo com o "Samurai"? - praticamente afirmou animada.

Eu tive que rir. Embora "Samurai" fosse um termo que até poderia descrever Lino fisicamente devido ao seu porte esguio, ele, definitivamente, estava longe de ser um guerreiro destemido...

-- Kamikaze, Deguinha, Kamikaze... - eu tinha mencionado essa estória pra ela quando falávamos sobre cinema. Foi só um comentário. Sem detalhes.

Ela riu alto de si mesma, empurrando meu ombro - ela era mais expansiva do que eu... do que qualquer um, na verdade: -- Ah, você entendeu! - e continuou rindo.

Ri com ela, mas não consegui entender o tom da pergunta. Qual a 'novidade' em eu ir a faculdade com um amigo? Preferi responder.

-- Não, Deguinha... - apoiei o cotovelo na mão - Na última segunda nem fui ao estágio. Tive uma reunião à tarde, na decania. Marconi teve que ir também... - beberiquei meu drinque - Eles só liberaram duas passagens para BH, então teremos que ir somente eu e Marconi... O povo ficou chateado, mas prometeram que para Aracaju poderemos ir em comitiva...
-- Você vai viajar sozinha com um cara? - ela arregalou os olhos.

Ela me conhecia bem e sabia que seria minha primeira viagem com alguém do sexo oposto sem a supervisão de um adulto.

-- O que é que tem? - dei de ombros - Eu já sou maior de idade e não é nada de mais... estamos indo a trabalho. Além disso, Marconi não me interessa. Nós somos só amigos. Já te disse.- completei antes que ela começasse de novo. Desde que contei que estava no D.A., Deguinha vinha insistindo que eu namorasse com Marconi.

Ela fez uma cara de desapontamento. Tomou um gole de sua caipifruta olhando a multidão. Depois olhou de novo pra mim.

-- Ele sentiu sua falta? - perguntou casualmente.
-- Ele quem? - eu estava boiando.
-- O Kamikaze. - ela sorriu - Ele sentiu sua falta quando você não foi ao estágio?

Me lembrei da terça anterior, quando cheguei ao estágio e o rapaz sorriu do balcão.

-- Você não veio ontem... - ele comentou com a mesma calma de sempre.
-- Tive uma reunião ontem à tarde. - respondi guardando minha mochila - Não ia dar tempo de vir pra cá, então liguei para Nini e avisei que não vinha... - sentei ao lado dele.
-- Isso aqui fica muito quieto sem você... - respondeu olhando de soslaio.

Eu sorri.

-- Mas à tarde você tem o Zé pra fazer companhia...
-- Não é a mesma coisa...

Eu ri vaidosa, e ri de novo voltando ao presente.

-- É. Acho que sim. - eu ainda estava vendo a cena - Ele é um cara legal. - e lembrei de outra cena - Não sei como alguém pode não gostar dele... - murmurei.

Minha visão voltou rapidamente para a segunda-feira em que faltei ao estágio.
Saí reclamando da reunião. Marconi andava ao meu lado enquanto nos dirigíamos à parada de ônibus.

-- Ah, justo hoje que Nini e seu Manoel não vão ao trabalho, eu não vou ao estágio... O povo do IF está em fase de renovação de matrículas... - reclamava e gesticulava - Lino e Zé vão ficar com a biblioteca nas costas!
-- Você fala daquele cara "japa" do primeiro período? - perguntou Marconi.

Marconi estava no terceiro período da noite. Devia ver o Lino vez por outra.

-- Lino? Sim, um altão, de cabelo espetado. - respondi confirmando sua hipótese.

Arqueou as sobrancelhas: -- Você trabalha com aquele cara? Ele parece meio babacão... - falou rindo.

Aquilo me chateou.

-- Ei! Olhe como fala dos meus amigos! - franzi o cenho - Ele não é nada babacão. - puxa, que falta de consideração do Marconi! Eu não deixaria alguém falar assim dele. Por que o deixaria falar assim do Lino?
-- Ah, não!? - debochou - O cara nem fala direito... - gesticulou - Ele ficou isolado num canto, só bebendo sua cerveja na festa que os calouros pagaram pra gente depois da aula...

Eu sabia que Lino, literalmente, pagaria para não "pagar o mico" no pátio... Marconi continuou:

-- O pessoal que puxou assunto com ele, me disse que ele só respondia "Sim", "Não" e "Talvez". - e fez uma cara de débil rindo em seguida.

Enfureci!

-- Isso não é verdade!! - minha mão cortou o ar - Ele é um cara caladão e tudo... Mas ele é um cara inteligente, tá! - respirei e moderei o tom - Ele só é na dele... quieto. - completei. Eu não sei o que me deu naquela hora para me alterar com o Marconi...

Marconi continuou rindo, mas parou de falar.
Seguimos nosso caminho.

Uma turma de super-heróis passou por nós tocando trombetas. Voltei ao presente.

-- Lino é muito gente fina... - lembrava do rosto dele sorrindo.

Dei conta de que Deguinha me encarava.

-- Nós formamos um trio e tanto! - completei rapidamente incluindo o Zé na equação.
-- Você quer dizer 'um casal', né? - provocou ela com uma sobrancelha erguida.
-- Não. Um trio... Tem o Zé também. - ela já sabia quem era o Zé - Nós três somos imbatíveis no balcão de atendimento. - e dei um gole na minha caipifruta de novo.

-- Mas você não está apaixonada pelo Zé... - sentenciou Deguinha.

Eu quase me engasguei.

-- Que isso, Deguinha! - disse tocando os dedos na boca pra ver se não tinha babado - Tá doida!? - respirei - Eu não te disse que estava até com medo do cara!?
-- Esse medo tem outro nome... - fez uma cara presunçosa - "Amor à primeira vista". - afirmou com teimosia, parecia uma garotinha.

Eu fiquei púrpura! "Amor a primeira vista"!?
Isso que dava eu ter uma confidente. Ainda bem que eu não falava de Agnostha. Se tivesse falado, ela iria achar que eu era uma E.T. Da onde ela tirou aquilo? Pra que é que eu fui fofocar sobre o IF com ela? Deguinha tinha uma imaginação muito fértil mesmo... Imagine só: o cara mais quieto da universidade namorando a garota mais agitada do curso!? Que mistura!...
Isso que dava ficar dois meses sem pegar ninguém... Era só aparecer algum comentário sobre meninos e já estavam me arranjando namorado... Ai, se o garoto fica sabendo disso! Que vergonha! - meus pensamentos viraram um turbilhão.

-- Que amor o quê, Deguinha!? Para de graça! - ordenei.
-- Você está gostando dele, sim! - insistiu, com a mão na cintura - Olha só como você fica alterada quando fala nele... - fez uma cara de sabichona.

Aquilo me irritou.

-- Alterada!? Quem está alterada aqui!? - bufei.

Cada uma olhou para um lado fazendo bico. Depois, ela cruzou os braços e olhou para o povo que passava.

-- Tá, Lia. Vamos fingir que eu não disse nada, está bem? - resignou-se.

Eu cruzei meus braços também e quase amassei meu copo plástico. Olhei para a multidão. Eu tinha que mostrar para ela que eu não estava interessada em ninguém. Nem no Marconi e muito menos no Lino. Chamei ela para darmos outra volta.

Deguinha conhecia milhões de pessoas. Não demorou muito até encontrarmos um colega dela, que por acaso, estava acompanhado de outro colega.
O outro rapaz, Rafael, devia ter minha idade. Um moreno lindinho: mais ou menos da minha altura, cabelos negros ondulados. Hum... Nada mal... - pensei.

Papo vai, papo vem... Você sabe como é... Depois de meia hora eu estava beijando um e Deguinha o outro. (Eu sou agnosta mas não sou santa! )

Ficamos namorando e papeando até meia-noite mais ou menos.
Os meninos foram bonzinhos e nos levaram em casa... Quer dizer, até nosso quarteirão. O pai da Deguinha não poderia saber que ela estava namorando - e que a amiga mais velha, e supostamente responsável, estava dando cobertura - e eu não queria que o rapazinho soubesse exatamente onde eu morava... Duas fugitivas...

Na despedida, combinamos de nos encontrar de novo no domingo de Carnaval.

Eu e Deguinha fomos caminhando e fazendo comentários acerca de nossa sorte.
Nenhuma das duas estava entusiasmada. Era só passatempo. Mas era Carnaval, era festa, éramos jovens e ter companhia era bom.

Eu não me sentia muito bem quando deitei em minha cama.

As palavras de Deguinha misturavam-se com flashes dos meus dias com Lino reprisando em minha memória.
As conversas no balcão sobre cinema e trabalho; na copa, sobre música (ele adorava os Scorpions e eu Roxette); no caminho, sobre família; o jeito que ele ficava quando eu e o Zé zoávamos ele; os risos quando ele tomava parte da zoação parecendo mais leve; os olhos orientais misteriosos quando o silêncio dele dava o tom do dia...

Ai, meu Deus... - eu me sentia confusa. Puxei o lençol.
Eu sabia que ele era meu amigo. Disso eu tinha certeza. E eu não queria estragar nossa amizade com aquelas especulações bobas.
Por que fui falar do Lino pra Deguinha?...Será que foi o meu tom de preocupação que a alertou erradamente quando fiz o comentário sobre o amigo que sonhava que era um kamikaze?
Aliás... quem está preocupada aqui? ...Por mim, ele pode ser o próprio Dom Quixote que eu não estou nem aí...

Ai, meu Deus! - me virei na cama.

Não! Nada de se interessar pelo Lino! Não mesmo!
Ele já deixou bem claro que ele tem problemas demais na vida dele... não iria precisar de uma namorada maluca...

Suspirei.

Ah, Puxa!!! - veio aquele desconforto - Será que ele já tinha namorada!? Eu o conhecia há dois meses e nem sabia se ele tinha namorada ou não... Nós nunca havíamos falado sobre essa parte antes... Não mesmo...

Virei de novo. E se tinha? Que isso me importava? - humf! - Será que ele tinha? - fechei os olhos - Esquece!!! Você não está apaixonada por ele! Para de fantasiar as coisas!

Pisei duro por entre a multidão. Sem fantasias! - coloquei as mãos na cintura, olhei para um lado e para o outro achando o que queria. Sorri.

Rafael! Sim!... Rafael beija bem. É um ótimo passatempo!!!

As pessoas sambavam e brincavam se movendo em câmera lenta. Luzes piscavam assíncronas e o samba retumbava também em slow motion.

Caminhei por entre os arlequins e as colombinas hipercoloridos ficando frente a frente com ele.

Rafael enlaçou minha cintura e me apertou contra seu peito. Fechei os olhos e me pendurei em seu pescoço beijando-o.
Meus dedos se entrelaçaram nos cabelos espetados em sua nuca... Era bom beijar alguém tão mais alto que eu... Meu beijo se tornou mais ávido.... Deslizei uma das mãos pelas costas dele... Eu não queria fugir dos seus braços... Ele me envolveu mais. Sorri. Deslizei meus lábios pelo rosto imberbe encontrando aquela marquinha no queixo e a beijei.

Os tambores repercutiam no rítimo do meu coração... O abracei forte. Pousei minha face em seu ombro e, apesar da festa continuar ruidosa a nossa volta, senti uma imensa paz.
"Tarde demais..." - murmurou ele enquanto passava os lábios em meu pescoço.

Reconheci a voz.
Consciência.
Ai, meu Deus!!!
Acordei ofegante. Meu coração martelava.

Sentei na cama e me recostei na guarda. Meu quarto em silêncio.
Respirei tentando entender. O Rafael de meu sonho... que beijara entre arlequins e colombinas... se tornara Lino e eu... eu... Eu gostei!
Abracei as pernas e apoiei o queixo nos joelhos. Suspirei confusa.

"Tarde demais", ele dissera... Tarde demais?
Minha cabeça dava voltas.

Não. É melhor esquecer isso.... Melhor esquecer...

Nem me lembro se dormi de novo naquela noite.

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O resto daquele feriado prolongado passou como uma tortura chinesa.
Eu e Deguinha saímos com os meninos à noite, brincamos, lanchamos e namoramos, mas minha cabeça estava no IF. Me distraí o máximo que pude, mas sempre que ficava um minuto em silêncio, lembrava do sonho...

Eu não queria sucumbir àquela hipótese e toda vez que Deguinha tocava no assunto eu saía com evasivas. Fugi do assunto durante todo o feriado.

Na quarta-feira de cinzas, quando o garoto, Rafael, disse que iria lá em casa para continuar me vendo eu o cortei.
Dei a desculpa de ter uma vida muito agitada e ocupada e que não queria me amarrar. Não era exatamente uma mentira.
Ele também não se fez de rogado. "Quem eu estava pensando que era?" - era a cara dele quando se despediu de mim. Eu nem liguei.

Na quinta fui à praia, na sexta a um churrasco e no sábado à casa de parentes.
Quando Deguinha foi me ver para papear no domingo, eu mantive o plano e fugi de qualquer assunto que me fizesse falar sobre o IF. Preferi ouví-la.
Ela não era tola e percebeu que eu estava me forçando a não falar... mas era uma boa amiga e me deu espaço.
Me dispus a esquecer aquela bobagem toda. Eu gostava do Lino sim, mas como amigo e pronto.

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Na segunda-feira fui para a faculdade feliz.
Encontrei as amigas e passamos a manhã toda, entre uma aula e outra, falando em como fora o feriadão.
Ri, brinquei, me gabei um pouco por ter ficado com alguém... foi legal. Mas me sentia diferente.

Quando eu e Lili conseguimos - por um milagre - ir sentadas no ônibus que ia para o Fundão, ela começou:

-- Então o Carnaval foi bom, hein? - comentou - Por que não ficou namorando o rapaz? Você está só, não está?

Dei a mesma desculpa que dera ao Rafael. E após ouvir, ela respondeu: "Sei." - e olhou pela janela.

Eu já estava com aqueles "Sei's" dela meio que atravessados na garganta, e naquele dia em particular, eu estava mais propensa a discutir:

-- Qual é, Lili? - incitei - Não estou entendendo esses "Sei" seus... - sorri sem graça - Está querendo insinuar alguma coisa?

Ela riu, segura de si.

-- Qual é você, Alya? Não vê que só existe um motivo pra você não querer se ocupar com outro alguém nesse momento?

Eu perguntei, imaginando a resposta.

-- Que motivo?
-- Lino.

Aquilo me doeu. Era o assunto que me incomodara todo o feriado. Parecia que estava escrito em minha testa. Eu tentara inutilmente disfarçar rindo e brincando com todos, mas as pessoas que me conheciam bem, como Deguinha e Lili, viam a confusão em mim.

Minha máscara de onipotente caiu. Um misto de vergonha, frustração e surpresa passaram por mim.

Juntei as mãos sobre a mochila pousada em meu colo e olhei pro corredor. O ônibus chacoalhava em seu caminho.

-- Já está tão na cara assim? - perguntei com uma pontada de tristeza.

O sorriso dela se ampliou, satisfeita por eu ter praticamente admitido.

-- Pô! É tarde demais, minha querida... Você já está apaixonada pelo cara... e não é de agora...

"Tarde demais".

Me senti como um cubo Rubik sendo finalizado. Todas as faces de uma só cor. Tudo se encaixava.
O misto de medo, ansiedade e desejo de ficar perto dele... com ele. O sonho, o beijo e a sensação boa que vinha junto... e o sentimento novo e desconhecido que se somava àquilo tudo.
Era fato. Eu devia mesmo estar gostando do cara. Não podia mais ignorar esse sentimento.

E agora?
Eu não sabia como lidar com aquilo. Quer dizer, eu nunca tinha gostado de alguém antes - claro que já tinha me apaixonado por cantores de rock e ídolos do cinema, mas aquilo era diferente...
Todas as vezes em que namorei, eu estava gostando do cara; mas não daquele jeito... Eu nunca havia passado por uma amizade que se transformasse em algo mais. Pra mim, amigo era amigo, e paquera era paquera. Coisas bem distintas. Tanto que eu não sentia nada semelhante em relação ao Marconi...

Passei a mão pelos cabelos lentamente, olhei pra ela e soltei o ar que não sabia que estava segurando.

-- Como deixei isso acontecer...? - balancei a cabeça - E agora? - perguntei impotente.

Ela sorriu torto.

-- E agora nada, amiga. Você vai lá e diz pra ele que esta gostando dele e pronto! - respondeu.
-- Nem pensar!!! - disse enfática - Ele não gosta de mim desse jeito e eu não quero acabar com nossa amizade! Além disso, acho ele não iria ficar com uma garota amalucada como eu... - suspirei - Ele deve preferir as mais quietinhas. - e ri sem graça.

Ela franziu a testa.

-- Que isso, Alya? - comentou - Você é animada, e não "amalucada". E você é quieta. Você é mais reservada do que aparenta.

Nossa... Lili era tão observadora. Tanto quanto Deguinha. Tão sensíveis.

Sem conhecer as motivações, elas conseguiram captar minhas máscaras e meus sentimentos em relação ao Lino, antes até do que eu mesma percebera... E eu me achando "A perceptiva", "A sonhadora"... Só tenho a agradecer aos céus por ter me dado amigas como elas...

-- Tá Lili. - concordei - Mas vamos deixar tudo como está, ok? - gesticulei. Me lembrei que eu os tinha apresentado - Nem uma palavra Lili... Por favor. - pedi.

Ela sorriu complacente.

-- Tá bom. Tá bom. Eu quase não vejo ele mesmo... Mas acho que você deveria falar dos seus sentimentos pra ele...
-- Vamos ver como as coisas ficam... - suspirei e sorri - Eu lido com o que vier... - estava tentando me convencer.

Lili me empurrou com seu ombro num gesto carinhoso.

-- Torço por você, amiga. - e me sorriu fraternalmente.
Eu retribui.

O ônibus seguia chacoalhando.
O meu coração era uma passarela pisoteada pelos sentimentos que desfilavam nele enquanto eu me aproximava do Fundão.

(Próximo Capítulo)

Cérbero (Parte 2)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fomos para o jardim.

Pseudo-jardim. Tudo era mal cuidado e estava cheio de ervas daninhas. Apesar disso, por detrás do banco de cimento, capitães-do-mato e margaridas de jardim floriam desordenadamente pintando aquela massa verde com alguma cor.

Do ângulo em que vim, encarando o cenário, tive uma sensação estranha.... Eu já estivera ali? Era um déjà vu: o banco cinza, o verde salpicado de laranja, amarelo e branco, o entardecer em volta, lembravam algo que eu já tinha visto....familiar.... Mas o quê? Meu Deus... aonde vi um jardim assim?- a resposta estava na ponta da língua, mas não saía.

Obviamente, tentei não transparecer nada da surpresa e frustração que se convulsionavam dentro de mim para o rapaz que caminhava ao meu lado. Mas acho que algo me escapuliu...

Sentei insegura, esticando a coluna para não parecer uma velha corcunda. Ele sentou-se ao meu lado e também parecia inseguro, como se tivesse cometido uma gafe ao me convidar para ali. Imagino que ele interpretara mal a minha reação... De qualquer forma achei melhor não comentar. Vai que ele acha que sou uma esquisita?... Pensando em esquisitices, lembrei-me que sonhara com ele. Não comentaria nada sobre aquilo. Claro. Vai que ele acha que sou uma louca?

De tanta coisa acontecendo mentalmente, fiquei sem assunto.

-- Er... bacaninha aqui, né? - falei já me sentindo uma idiota só por abrir a boca.
-- É. - respondeu no mesmo tom - Está pouco movimentado porque é a primeira semana de aula... os alojamentos estão vazios...
-- Ah, é.

Silêncio.

Cruzei as pernas e pousei as mãos nos joelhos.

-- Será que esse ônibus vai demorar muito? - olhei o meu pequeno relógio de pulso - Meus pais vão ficar preocupados...

O vento jogou meus cabelos em meu rosto. Uma samambaia de cachos longos e encaracolados. Ele apoiou os cotovelos em seus joelhos, juntando as mãos e se inclinando para frente para achar meus olhos.

-- Você mora com seus pais?

Achei legal ele entabular o início de uma conversa.

-- Eu e meus irmãos. - respondi. Joguei o cabelo para trás. - Tenho dois. Um irmão e uma irmã mais novos. - respondi mais do que ele perguntara. Acho que era ansiedade. - E você? Tem irmãos? - Eu tinha que puxar assunto, ou então aquele clima iria ficar mais estranho...
-- Ãh... Tenho três irmãs.... Uma de sangue que mora conosco, quer dizer, eu e minha mãe; e duas por parte de pai que moram com ele e sua esposa.
-- Ãh... - pisquei - Faz muito tempo que... - deixei a frase morrer. Intrometida! IntrometidaSerá que pisei em campo minado?

Ele se ajeitou no banco:

-- Faz sim. - desviou o olhar - Eu tinha sete e minha irmã quatro, quando ele deixou a gente. - e olhou para longe vendo o passado.

É. Era um campo minado. Eu notei o uso da palavra "ele" ao invés de "meu pai". Eu não devia ter perguntado. Apesar disso, naquele momento eu senti uma afinidade muito grande com aquele rapaz, já um homem.

Famílias complicadas existiam em toda parte. A minha mesmo, por exemplo, apesar de ser e estar unida, tinha seus altos e baixos de vez em quando. Eu já tinha tido minha quota de confusão quando pré-adolescente devido às brigas de meus pais. Da quase-separação. E tinha sido bem difícil... Imagine passar por aquilo na infância... Achei que naquele pequeno comentário dele estariam subentendidas muitas mágoas, ressentimentos e dor.

Será que teríamos outras coisas em comum? Quer dizer... a dor tinha me ensinado a ser forte, claro... graças a Agnostha, de certa forma... Mas e ele? O que teria ele encontrado em sua jornada? Era essa a razão de ele ser tão tímido? Preferia se calar para esconder sua dor? Fiquei curiosa. Mas achei melhor lhe dar uma perspectiva similar... mostrar minha empatia:

-- Deve ter sido difícil... - eu olhava pra ele, e ele para longe. - As coisas já foram muito difíceis lá em casa também... De vez em quando ainda são...

Ele tornou a me olhar, me dando atenção. Falei um pouco da minha história, dos ciúmes da minha mãe, e dos vacilos do meu pai. Falei da quase separação e da fase de paz em que estávamos agora. É claro que não entreguei toooda a roupa suja... seria constrangedor...

-- É engraçado... - iniciou ele. Eu olhei. - Você é sempre tão expressiva e alegre... Está sempre de alto astral... Não parece alguém que tenha tido qualquer tipo de sofrimento nesta vida...

O quê? Ele tava pensando que minha vida era um mar-de-rosas? Que eu era uma "patricinha"?

-- Todo mundo sofre, garoto... - e olhei pra frente sorrindo.
-- Garoto... - sorriu franzindo a testa - Eu já tenho 23, garota.

Eu sorri ao ver que ele não gostara do substantivo.

Nessa hora o ônibus chegou. Nos levantamos e entramos no fim da fila. Como antes, ele ficou à porta e me deixou passar. Por sorte havia um banco vazio. Sentamos. Eu à janela. Olhei a paisagem e suspirei.

-- Foi muito difícil para minha mãe criar a gente... - começou Lino do nada, captando minha atenção - Ela teve que fazer muitos sacrifícios. - olhou para a frente, de novo vendo o passado - Meu pai não pagava a pensão regularmente... e minha mãe teve que se virar em vários empregos, nem sempre bons... - ele olhou para suas próprias mãos pousadas na mochila em seu colo. Havia algo mais em sua expressão... Vergonha? - Nós levávamos uma vida bastante humilde a até bem pouco tempo. - me encarou - Nestes 3 últimos anos, comigo e minha irmã trabalhando, pudemos dar um descanso a minha mãe... Estamos estabilizando nossa vida.

Uau. Ele tinha tomado a iniciativa de falar... isso era novidade. Foi o discurso mais longo que eu já o tinha ouvido expressar desde que o conhecera. Mais uma vez senti afinidade. Ele também estava se dedicando a ser independente - não da família, neste caso; mas independente de um passado ruim. Estruturando sua vida. Corajoso.

-- ... E agora que você passou para a faculdade, terá mais oportunidades de dar conforto a sua mãe e irmã. - completei - Muito legal isso.

Ele gostou do meu raciocínio. Trocamos um sorriso de camaradagem. O ônibus seguia seu caminho.

-- Você está indo se encontrar com o Marconi... É esse o nome dele? - perguntou mudando de assunto.
-- Ah, sim. - e completei - Com ele e com todo o D.A.
-- Por que você se importa com os alunos? Quer dizer... por que você pegou essa responsabilidade para si? - gesticulou - Não tinha ocupação o bastante? - e riu.

Ainda me achando patricinha...

-- Achei que seria uma oportunidade de crescer profissionalmente, conhecer gente... Sabe... pegar os macetes... - me ajeitei no banco e fiz um ar presunçoso - Além disso... gosto de ver as coisas acontecerem. Se algo tem de ser feito, precisar ser feito, e eu achar que posso fazê-lo, eu vou lá e faço.
-- Huh! - ele sorriu e deu aquele olhar de como quem diz "corajosa!".

A viagem seguiu e eu aproveitei o gancho para falar de Belo Horizonte e Aracaju. O Sol já não era visível quando atravessamos o pátio naquela tarde. Perto do CCH Marconi nos avista e aparece na janela da salinha do D.A.

-- Graaande Alya! - saudou-me lá de cima - Bem-vinda! Sobe aí... - gesticulou chamando.

Olhei para o janelão de vidro e vi que haviam outros na sala com ele. Paramos. Lino tinha que descer a rampa e eu subir para o D.A.

-- Bem... - comecei eu. A timidez voltando. - Obrigada por me ensinar a chegar aqui... e pela companhia... - ajeitei a mochila no ombro.
-- Não foi nada. Precisando, é só pedir... - os olhos orientais sorriram, mas os lábios estavam comprimidos.

Pensei em beijar-lhe o rosto. Como forma de agradecimento e despedida. Mas ele era tão sério, tão na dele... Fiquei sem ação. Simplesmente sorri, dei-lhe as costas e subi as escadas. Lino se foi.

Era hora de pensar em trabalho.

Na salinha cumprimentei a todos. Alguns à moda carioca. Éramos sete. Quatro rapazes e três moças. Da turma da manhã, só eu. Havia uma adição ao grupo e me apresentaram Leandro. Era um calouro que sabendo de nossa reunião, queria conhecer o D.A. e quem sabe, se engajar. Era um rapaz de fisionomia interessante. Alto, magro, de tez muito clara e a característica marcante de ter os cabelos grisalhos apesar de não ter mais de 20 anos. Quando olhei para ele, lembrei-me do cantor Ritchie dos anos 80. Mesmo corte de cabelo, mesmos olhos verdes. Atraente.

Mas eu não estava ali para apreciar a beleza de ninguém. Minha cabeça entrou em modo de trabalho quando a reunião começou e eu me abstraí. Levamos quase duas horas discutindo os preparativos da viagem: quem gerenciava as listas de temas, quem ia até a decania acompanhar a liberação das passagens, que ônibus pegaríamos, o que levar, quem fazia o quê e quando.

Olhei o relógio.

-- Ai, Marconi! Já são quase nove... Eu moro longe, você sabe... - comentei.
-- Tudo bem, Alya. Já acabamos aqui. - respondeu levantando-se - Mas antes, vamos nos apresentar às turmas, certo? Hoje é o primeiro dia. É nossa obrigação...

Olhei o relógio de novo. Ah...puxa! Já estava tarde. Eles, ao saírem dali, voltariam as suas classes. Eu teria que atravessar todo o campus da UFRJ para chegar até a parada de ônibus no Pinel...

-- Tem que ser hoje, Marconi? - reclamei juntando as canetas - Eu terei que andar até a parada...
-- Não liga não, gata. Eu te deixo lá. - falou o tal Leandro.

Eu olhei pra ele. Ele sorria... pretensioso?
Eu não gostei de ele ter me chamado de "gata". Primeiro que eu o tinha conhecido naquele dia. Segundo que eu mal tinha falado com ele. E terceiro que eu não me achava uma "gata". Mas o povo era jovem... deixa pra lá. E quanto a oferta, como negar? Eu sabia que não haveria perigo ao longo de um percurso cheio de estudantes, mas andar acompanhada era sempre melhor. Era a primeira vez que eu andava na Urca à noite...

-- Valeu. - disse simplesmente.

Saímos todos juntos e entramos no CCH.
Caminhamos pelos corredores. Marconi batia de porta em porta, pedia licença ao professor e fazia as presentações formais às turmas.

-- Essa aqui é meu braço direito pela manhã. - dizia ele quando chegava na minha vez - Precisando de algo do D.A. pelo turno da manhã, procurem Alya.

Eu me limitava a fazer um "Oi" com os dedos unidos ao polegar e o mínimo levantado (Libras. Lili havia me ensinado. Ela falava linguagem dos sinais).

Quando chegamos à turma do primeiro período, vi Lino. Ele sentara no fundo da sala... claro. Marconi repetiu a fala e eu o gesto. Mas antes de sair eu pisquei um olho para ele... para provocá-lo perante a turma. A-ha... Eu sabia que ele ia ruborizar! Que figura!

Após a última sala, nos despedimos no corredor rapidamente. Cada um tinha que voltar a sua classe.

-- Quer que eu te leve até a parada, Alya? - ofereceu Marconi.

Leandro se adiantou:

-- Pode deixar que eu levo ela. Eu tô indo para casa. Primeiro dia de aula é um saco...

Marconi me olhou e eu assenti. Se o cara estava indo para casa, para quê Marconi matar aula? Marconi olhou para o rapaz e fez uma cara:

-- Olha lá, hein, "rapá"!... Essa aí é minha amiga... Cuidado! - ameaçou brincando.
-- Qual é, Marconi? - Leandro fez uma cara inocente e brincalhona.

Eu girei meus olhos à hipérbole e bufei. Qual era desses dois? Eu era algum bebê?

Eu e Leandro descemos. Fizemos comentários sobre a reunião e a faculdade. Ele começou a falar de si, dizendo que morava na Barra, que tinha um belo carro mas o deixara em casa para economizar, que aquela era sua segunda tentativa de fazer faculdade, que tinha um irmão, que adoravam pescar, que gostava de viver ao ar livre, e que era muito bom no futebol e blá, blá, blá, blá... Atravessamos todo o campus com ele falando sem parar. Eu estava cansada, mas fiz o possível para parecer simpática.

Chegamos no ponto do ônibus, próximo ao Instituto Pinel e paramos. Eu estava até achando graça no rapaz que falava mais do que eu, mas meu ônibus apontou na rua. Eu olhei e fiz sinal, e então me virei para despedir e agradecer a gentileza do moço.

No segundo em que me aproximei, ele enlaçou minha cintura com um dos braços e puxou meu corpo para si com força. Se eu não viro o rosto, ele teria me dado aquele selinho na boca. Foi muito rápido e eu já estava livre. Petulante!Folgado!

-- Palhaço! - falei ultrajada, mas não arrogante. Ele era um cara muito confiante de sua beleza. Com certeza, a maioria das garotas deviam deixa-lo beijá-las...

Não havia mais tempo para discutir. Constrangida, dei-lhe as costas e entrei no ônibus. Em outra ocasião eu conversaria com ele.

Paguei a passagem e sentei sem olhar para a parada enquanto o ônibus saía. A enseada de Botafogo ficando para trás. Recostei e respirei um pouco. Minha cabeça parecia um trailer de cinema. As cenas misturavam-se.

Filho da mãe... Quem ele pensa que é, pra sair beijando uma moça assim... Sem mais nem menos? - pensei e depois ri - Até que ele seria um cara interessante... Se não fosse tãaaao convencido! ... - balancei a cabeça - ... Mais essa agora.

Eu estava muito cansada. Cansada demais para ficar ruminando sobre um rapaz inconsequente e superficial.

Lembrei do meu dia, mais cedo. Sorri. Lino, ao contrário, era bem mais centrado... e mais complexo também, tendo em vista nosso papo no alojamento.

Talvez mais que complexo... - ergui uma sobrancelha nessa linha de pensamento - Complicado mesmo. Um cara complicado: família complicada, personalidade complicada... Praticamente um "bicho de sete cabeças". - e senti um friozinho no estômago quando a lampadinha se acendeu - ... Ou um bicho de três cabeças... no labirinto da vida... E ri sussurrando a conclusão maluca:
-- Cérbero!

Olhei pela janela mas não via nada além do meu reflexo espelhado. O ônibus avançava pelo Aterro. Isso é doidera sua, Alya... Essa sua psicologia barata está ficando mais pobre a cada dia. Deixa o garoto em paz... - falei pra mim mesma. Lembrei também do déjà vu. Mais um motivo para não me levar muito a sério.

O ônibus seguia sua viagem. Olhei de novo para a moça no reflexo e fiquei imaginando se ela poderia ficar mais estranha.... Mais Agnostha.

(Continua)