Mix (Parte 4)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Era tudo tão insólito que eu já nem ligava.
O que pensar? Estava flutuando através de colunas de concreto e metal, com uma estrela pairando sobre minha mão, à procura de um bebê morto para entregá-lo a uma mulher morta, para levar a ambos para o céu. Simples assim.

Embotei um pouco o raciocínio e foquei em cumprir minha tarefa.

A estrela era uma bússola eficiente. Eu desviava um pouco e seu brilho diminuía, eu virava para a direção certa e seu brilho intensificava. De repente eu lembrei de que não gostaria de ver uma criança morta como vira a mãe... Acho que choraria se o visse...

Como se uma inteligência superior me ouvisse, o cenário mudou. Como se reconstruído, ele voltou a ser o hospital e eu vagava por um dos corredores, agora menos iluminados. Era como um filme sobreposto: o filme bonito rolando sobre o filme feio... eu sabia. Não sei como sabia, mas sabia.

Notei que a surdez fora removida, no entanto, ainda não ouvia outras pessoas. Nem as via. Era como se tivessem fechado meu foco... um objetivo. Faça! E assim avançava.

Virei num corredor e vi a sala onde estariam os bebês. Estava escura. Mesmo assim, quando entrei nela, vi claramente que havia somente bercinhos vazios. Aquilo me confundiu um pouco. Já haviam levado os bebês?

Sim. Os bebês já haviam sido levados... Pelo menos todos aqueles que queriam ser encontrados pelos entes queridos...

...Todos aqueles que queriam ser encontrados pelos entes queridos... Hum... - minha alma gemeu - Elevei a mão que segurava a estrela usando-a como a um candeeiro.

--Vamos pequenino... Ela o quer! Apareça! - disse mentalmente.

De repente a estrela em minha mão fulgurou como um pequeno sol e a sala inteira iluminou-se como o dia. Por um segundo meus olhos foram ofuscados pela claridade e no segundo seguinte consegui ver o solzinho que saíra de minha mão pairar sobre um dos berços descendo suavemente. Fiquei onde estava, um pouco perplexa. Um corpinho começou a se formar em torno da estrela que agora era o coração. A luz foi diminuindo inversamente proporcional aos contornos que apareciam em seu lugar. Alguns momentos depois estava aquela coisinha se mexendo sobre o colchão.

--Você está aí... - disse sorrindo...e quase chorando.

Era o bebê. . Um menino recém-nascido, bem pequeno. Tinha cabelos negros fininhos sobre a cabeça e dedinhos compridos com braços gordinhos. Seus olhos eram grandes e negros. Olhavam-me como se soubessem quem, ou o quê, eu era. Ficou batendo as perninhas e as mãozinhas descoordenadas.

Me aproximei e o peguei do berço... Nunca tive jeito com crianças, ainda mais bebês... e lá estava eu dando uma de anjo... pensei.
Aconcheguei-o a meu peito. Ele não chorou nem por um momento... eu em lágrimas. Flutuamos dali.

A volta foi rápida e nem precisei chamar. A energia dela, a mãe da criança, encontrou-me no caminho.

--¡Mi hijo!- exclamou em júbilo.

Eu não disse nada. Já estava muito emocionada. Passei o bebê para seus braços e ela, carinhosamente, apertou o rosto dele contra o seu. Olhos fechados e sorriso na boca. Lágrimas descendo sobre a face enquanto murmurava frases de afeto.

Fiquei olhando. Segurando a emoção. Já estava chorando, sem soluçar. Nesse momento aquela estranha certeza me voltou e estendi minha mão a ela, que sorrindo a segurou. Flutuei tirando-nos dos escombros como um fantasma. O cenário feio de novo.

--¡Muchas gracías! - balbuciou ela pra mim quando pousamos sobre os escombros.

Sorrindo, senti que não estávamos sós. Senti presenças ao meu lado. Eram adultos. Não me virei para olhar. O clima era bom, então confiei.
Íamos subir. Soube. Sempre saberia. Agora eu era Agnostha...

A moça estava tranquila. Seu bebê ao colo. Ela acenou com a cabeça assentindo para aqueles que eu não vira. Estava pronta agora. Senti um bolsão de energia se formar. Como num elevador, todos subimos juntos: Eu, a moça com o bebê de feição feliz, e os que estavam a meu lado. Olhei pra cima... Ia para o céu também?

A sensação foi estranha... A medida que subia, acordava, caindo em meu corpo. Não dá para explicar isso....

Acordei calmamente, com lágrimas nos olhos. Estava muito feliz. Orgulhosa de mim mesma.
No café da manhã, cheguei a comentar com minha mãe que tivera um sonho bonito naquela noite, mas não entrei em detalhes... iria assustá-la...

O mais engraçado é que só fiquei sabendo do terremoto no México dias depois... Eu quase não via TV e era época de provas de quarto bimestre, eu tinha que estudar...

Quando soube fiquei meio confusa, mas não posso relacionar meu sonho com nada que tenha ocorrido lá realmente... Quero dizer... Não pode ser clarividência, nem mediunidade, nem nada disso... Acho que não... Acho que sou só supercriativa.... Eu acho...

O fato é que estar Agnostha só diz respeito a mim. O que significou tornar-me Agnostha?
Sei lá! Quando é que um adolescente toma consciência de sua posição em relação ao mundo que o cerca? Como é que ocorrem os mecanismos do amadurecimento? O cérebro cresce? Nascem neurônios? Eu não sou psicóloga muito menos neurologista, então vocês vão ter que pesquisar isso pela Internet.

De qualquer forma, acho que foi isso que ocorreu comigo naquela noite... Acho que cresci. Entendi minha posição na família, em relação ao problema de meus pais, separei nossas vidas pessoais, desvinculei minha vida da vida amorosa deles. Eu continuaria crescendo e vivendo, eles se separassem ou não. Eu seria forte. Daria todo o apoio necessário aos dois se precisassem de mim, mas teria minha própria vida pra cuidar.

O interessante é que a adolescência passou.. a juventude chegou e...continuei Agnostha. A juventude passou...com seus amores e dores e ... Fato é que sou assim até hoje.
Depois que tive aquele desdobramento astral, já adulta, as coisas pioraram mais um pouco... Fiquei mais maluca?... sei lá.

Se ainda estiver interessado vou lhe contar como a realidade e a ficção começaram, sutilmente, a se misturar.

(prox. Capítulo)

Mix (Parte 3)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Aquele momento foi mágico. Apesar de toda dor em volta, eu senti a magia.

Estávamos de pé, de frente uma para outra sobre aquele monturo de cascalho. Eu era mais baixa uns 40 centímetros que ela, com seus 2 metros de altura.
Olhei pra cima com determinação:

-- Estou pronta. - respirei

Entrelaçamos as mãos como duas amigas a brincar de roda.
Eu e você somos uma só. Somos a mesma. Entendi.

Ela me deu um olhar carinhoso e imediatamente vi. Vi quando sua cor foi lentamente mudando de grafite para prateada. Mas ela não estava ficando prateada, era só uma impressão. Na verdade era uma luz que emanava de seu corpo, deixando tudo claro em volta.

A claridade foi aumentando e não conseguia mais ver sua expressão.

A luz, agora ofuscante, começou a fluir para meus braços. Como se fosse água. Como se eu tivesse posto minhas mãos num riacho de luz.
A luz escorreu pelos meus braços, subindo pelos meus ombros e, num lampejo branco, todo o meu corpo se iluminou também. Eu era luz!!!

Em volta, tudo estava branco também. Eu não via mais aonde estava... nem Agnostha.

Comecei a ouvir um acorde pulsante e por segundos vi-me de volta a meu quarto. Cadê a luz? Não sentia a cama... O quarto parecia balançar (Ou era eu tendo um espasmo?).

Um calor agradável banhou meu corpo e me esforcei por não despertar daquilo... Era bom. Eu me sentia morna. Pareceu-me que eu estava girando sobre meu próprio eixo, solta no espaço como um astronauta vagando fora de sua nave.

Sonhava de novo. Estava mesmo no espaço. Enquanto flutuava girando, raios de luz vinham do infinito e, atingindo minha pele, metalizavam-me. Tornava a brilhar.

Eu me sentia estranha. Já não era estranho o bastante?

O som castigava meus ouvidos e eu podia sentir a luz sendo gravada sobre meu corpo. Aquilo foi aumentando... aumentando..., meu corpo todo coberto, tudo era luz... Já não conseguia pensar direito... Girando, girando, queimando, queimando, brilhando, brilhando... Até que, como se fosse uma montagem de mil pecinhas de lego, eu estava reconstruída, de pé sobre o monturo de cascalho do sonho. O mesmo sonho.

Dessa vez estranhei pra valer... Diferente. Respirei ofegante (Será que meu corpo estava ofegante também em meu quarto?). Olhei em volta e estava só. Mas não sentia-me sozinha. A escuridão pesava e no entanto enxergava perfeitamente os contornos do que restara do prédio. Levei um segundo para perceber a diferença em mim.

Eu não via mais minha personagem... Eu era ela!

Cara!!! Que coisa incrível!!!

Desde quando tinha começado a sonhar com Agnostha eu passara a idolatrá-la como minha heroína... Achava que ela seria minha personal superherói para sempre... Nunca tinha pensado em me tornar heroína de mim mesma... Agora estava ali.

Olhei meus braços e eles estavam espelhados e negros... Grafite-escuro. Virei as palmas para cima e para baixo tentando imaginar como metal poderia ter movimento... Olhei meu corpo e assustei-me com a altura (até hoje me assusto. Não cresci muito depois daquilo, apesar de ter um 1,71m hoje...). Sorri... só os lábios se moveram. Me sentia incrivelmente forte e segura.

Meu Deus! Meu Deus! Como!? Caraca!

Suspirei - Dezencana, Alya! - Não tinha tempo para ficar me admirando. Uma certeza aguda de que tinha trabalho a fazer tirou-me daquele momento de surpresa.

Tornei a minha forma humana. Como fiz isso? Apenas desejei e pronto. Sabia que a moça iria assustar-se em ver um ser tão estranho como Agnostha. Ela não estranharia uma garota.
Como sabia? Não sei como sabia... só sei que sabia.

Era eu mesma de novo. Usava vestes brancas. Ainda sentia Agnostha dentro de mim - como até hoje sinto - sabia que podia invocá-la a qualquer hora. Então não me preocupei. Não tive medo.

Flutuei para dentro dos escombros. Era um sentimento estranho... Podia sentir as pedras e o aço das colunas retorcidas, mas elas não resistiam a mim. Via através delas como se fossem um raio-x colorido. Simplesmente as atravessava - posso, por assim dizer, que sei exatamente como um fantasma se sente.

Caminhei(?) por dentro dos escombros e vi um corpo a uns metros de mim. Parei. A moça.
Sabia que veria aquilo. Era um trapo roxo-escuro, esmagado, contorcido e ensanguentado por sobre os metais da cama também retorcida. Para qualquer um, ver aquilo seria motivo para acordar gritando em desespero... Respirei e chamei calmamente.

-- Senhora?
-- ¿Quién és? - ela respondeu em espanhol. Eu ainda não falava espanhol na época, mas entendi.
-- Vim ajudar.... Vou encontrar seu filho. - acho que fui compreendida...

Subitamente ela materializou-se diante de mim. Era a mesma moça de antes do desabamento. O corpo ficou lá.
Sua expressão era triste.

-- Pobre niña... ¿También estás muerta? - sua cabeça de lado ao olhar pra mim. Para todos os efeitos, eu era uma adolescente, mais jovem que ela. Ela me tomou por uma fantasma também.

Bem... ao menos ela já tinha consciência de que estava morta... Acho que Agnostha já havia falado com ela antes de nós... Meu pensamento foi interrompido:

-- Yo tuve una hija como tú... tendría tu edad se no tuviera abortado.... - falou tocando meu cabelo maternalmente.

Estremeci, mas entendi.

Ela sabia que a hora de seu julgamento - ou o que quer que nos esperasse no "céu" - havia chegado. Ela havia negado a primeira criança abortando-a há muitos anos atrás quando a vida em sua vila estava difícil. Pedro vivia na guerrilha... Ela tinha que vender doces aos andarilhos. Eventualmente teve que se prostituir para conseguir dinheiro para comer... E agora que a vida melhorava, veio o segundo filho. Ela ia entregá-lo a uma família americana. Seria bom para o pequenino. Com o dinheiro, ela poderia se mudar de vez para o centro e trabalhar com a... Ai! Que jorro de informações entravam na minha cabeça!!! Bem... agora estava arrependida. Queria a criança. Ia subir - ou descer- com ela! Nada mais interessava! Então poderia curtir sua maternidade afinal... Criar a criança no "céu"... sei lá. - levei a mão à testa - Ai!!! Devagar!!! Eu não falo espanhol!!! - Balancei a cabeça tentando me livrar daquela confusão. Aquele jorro de informações. Eu já tinha entendido. Olhei nos olhos dela e tentei transmitir conforto.

-- Você queria mesmo ter sido mãe? - falei/pensei pra ela com um toque bem doce na "voz".
-- Sí... lo quería.... - e baixou a cabeça tristonha. Ela pensou em seu filho com amor.

Vi claramente quando uma pequena estrela brilhou em seu peito... e flutuou para fora dela...
Estendi a mão instintivamente e ela pairou a centímetros de mim, flutuando sobre minha palma. Soube de imediato que aquele pequeno ponto de luz seria minha bússola.

-- Aguarda-me. - disse a ela e flutuei dali.

(Continua)