Mix (Parte 3)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Aquele momento foi mágico. Apesar de toda dor em volta, eu senti a magia.

Estávamos de pé, de frente uma para outra sobre aquele monturo de cascalho. Eu era mais baixa uns 40 centímetros que ela, com seus 2 metros de altura.
Olhei pra cima com determinação:

-- Estou pronta. - respirei

Entrelaçamos as mãos como duas amigas a brincar de roda.
Eu e você somos uma só. Somos a mesma. Entendi.

Ela me deu um olhar carinhoso e imediatamente vi. Vi quando sua cor foi lentamente mudando de grafite para prateada. Mas ela não estava ficando prateada, era só uma impressão. Na verdade era uma luz que emanava de seu corpo, deixando tudo claro em volta.

A claridade foi aumentando e não conseguia mais ver sua expressão.

A luz, agora ofuscante, começou a fluir para meus braços. Como se fosse água. Como se eu tivesse posto minhas mãos num riacho de luz.
A luz escorreu pelos meus braços, subindo pelos meus ombros e, num lampejo branco, todo o meu corpo se iluminou também. Eu era luz!!!

Em volta, tudo estava branco também. Eu não via mais aonde estava... nem Agnostha.

Comecei a ouvir um acorde pulsante e por segundos vi-me de volta a meu quarto. Cadê a luz? Não sentia a cama... O quarto parecia balançar (Ou era eu tendo um espasmo?).

Um calor agradável banhou meu corpo e me esforcei por não despertar daquilo... Era bom. Eu me sentia morna. Pareceu-me que eu estava girando sobre meu próprio eixo, solta no espaço como um astronauta vagando fora de sua nave.

Sonhava de novo. Estava mesmo no espaço. Enquanto flutuava girando, raios de luz vinham do infinito e, atingindo minha pele, metalizavam-me. Tornava a brilhar.

Eu me sentia estranha. Já não era estranho o bastante?

O som castigava meus ouvidos e eu podia sentir a luz sendo gravada sobre meu corpo. Aquilo foi aumentando... aumentando..., meu corpo todo coberto, tudo era luz... Já não conseguia pensar direito... Girando, girando, queimando, queimando, brilhando, brilhando... Até que, como se fosse uma montagem de mil pecinhas de lego, eu estava reconstruída, de pé sobre o monturo de cascalho do sonho. O mesmo sonho.

Dessa vez estranhei pra valer... Diferente. Respirei ofegante (Será que meu corpo estava ofegante também em meu quarto?). Olhei em volta e estava só. Mas não sentia-me sozinha. A escuridão pesava e no entanto enxergava perfeitamente os contornos do que restara do prédio. Levei um segundo para perceber a diferença em mim.

Eu não via mais minha personagem... Eu era ela!

Cara!!! Que coisa incrível!!!

Desde quando tinha começado a sonhar com Agnostha eu passara a idolatrá-la como minha heroína... Achava que ela seria minha personal superherói para sempre... Nunca tinha pensado em me tornar heroína de mim mesma... Agora estava ali.

Olhei meus braços e eles estavam espelhados e negros... Grafite-escuro. Virei as palmas para cima e para baixo tentando imaginar como metal poderia ter movimento... Olhei meu corpo e assustei-me com a altura (até hoje me assusto. Não cresci muito depois daquilo, apesar de ter um 1,71m hoje...). Sorri... só os lábios se moveram. Me sentia incrivelmente forte e segura.

Meu Deus! Meu Deus! Como!? Caraca!

Suspirei - Dezencana, Alya! - Não tinha tempo para ficar me admirando. Uma certeza aguda de que tinha trabalho a fazer tirou-me daquele momento de surpresa.

Tornei a minha forma humana. Como fiz isso? Apenas desejei e pronto. Sabia que a moça iria assustar-se em ver um ser tão estranho como Agnostha. Ela não estranharia uma garota.
Como sabia? Não sei como sabia... só sei que sabia.

Era eu mesma de novo. Usava vestes brancas. Ainda sentia Agnostha dentro de mim - como até hoje sinto - sabia que podia invocá-la a qualquer hora. Então não me preocupei. Não tive medo.

Flutuei para dentro dos escombros. Era um sentimento estranho... Podia sentir as pedras e o aço das colunas retorcidas, mas elas não resistiam a mim. Via através delas como se fossem um raio-x colorido. Simplesmente as atravessava - posso, por assim dizer, que sei exatamente como um fantasma se sente.

Caminhei(?) por dentro dos escombros e vi um corpo a uns metros de mim. Parei. A moça.
Sabia que veria aquilo. Era um trapo roxo-escuro, esmagado, contorcido e ensanguentado por sobre os metais da cama também retorcida. Para qualquer um, ver aquilo seria motivo para acordar gritando em desespero... Respirei e chamei calmamente.

-- Senhora?
-- ¿Quién és? - ela respondeu em espanhol. Eu ainda não falava espanhol na época, mas entendi.
-- Vim ajudar.... Vou encontrar seu filho. - acho que fui compreendida...

Subitamente ela materializou-se diante de mim. Era a mesma moça de antes do desabamento. O corpo ficou lá.
Sua expressão era triste.

-- Pobre niña... ¿También estás muerta? - sua cabeça de lado ao olhar pra mim. Para todos os efeitos, eu era uma adolescente, mais jovem que ela. Ela me tomou por uma fantasma também.

Bem... ao menos ela já tinha consciência de que estava morta... Acho que Agnostha já havia falado com ela antes de nós... Meu pensamento foi interrompido:

-- Yo tuve una hija como tú... tendría tu edad se no tuviera abortado.... - falou tocando meu cabelo maternalmente.

Estremeci, mas entendi.

Ela sabia que a hora de seu julgamento - ou o que quer que nos esperasse no "céu" - havia chegado. Ela havia negado a primeira criança abortando-a há muitos anos atrás quando a vida em sua vila estava difícil. Pedro vivia na guerrilha... Ela tinha que vender doces aos andarilhos. Eventualmente teve que se prostituir para conseguir dinheiro para comer... E agora que a vida melhorava, veio o segundo filho. Ela ia entregá-lo a uma família americana. Seria bom para o pequenino. Com o dinheiro, ela poderia se mudar de vez para o centro e trabalhar com a... Ai! Que jorro de informações entravam na minha cabeça!!! Bem... agora estava arrependida. Queria a criança. Ia subir - ou descer- com ela! Nada mais interessava! Então poderia curtir sua maternidade afinal... Criar a criança no "céu"... sei lá. - levei a mão à testa - Ai!!! Devagar!!! Eu não falo espanhol!!! - Balancei a cabeça tentando me livrar daquela confusão. Aquele jorro de informações. Eu já tinha entendido. Olhei nos olhos dela e tentei transmitir conforto.

-- Você queria mesmo ter sido mãe? - falei/pensei pra ela com um toque bem doce na "voz".
-- Sí... lo quería.... - e baixou a cabeça tristonha. Ela pensou em seu filho com amor.

Vi claramente quando uma pequena estrela brilhou em seu peito... e flutuou para fora dela...
Estendi a mão instintivamente e ela pairou a centímetros de mim, flutuando sobre minha palma. Soube de imediato que aquele pequeno ponto de luz seria minha bússola.

-- Aguarda-me. - disse a ela e flutuei dali.

(Continua)

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