Riyuniyana (Parte 1)

domingo, 14 de março de 2010

-- Er... Bom dia. - declarei com um sorriso tímido quando entrei no hall.
-- Bom dia. - respondeu o estranho rapaz sentado por detrás do balcão.

Eu estava atrasada, ofegava um pouco, e para piorar, suava - já que não esperara pelo elevador e havia subido os três andares até o Instituto de Física pelas escadas.

-- Você deve ser a Alya, não é? - ele sorria educado. A voz calma.
-- Sou sim. - sorri dando a volta no balcão e colocando a mochila na gaveta do armário.

Respirei fundo para recuperar o fôlego porém tentando parecer discreta.

-- ... E você deve ser o Lino. - expeculei. Caminhei para minha cadeira - Nini falou que havia mais um funcionário na casa... - completei, agora mais coordenada.

O normal numa situação destas é apertar as mãos e dar beijinhos no rosto se você é jovem. Mas não foi o que aconteceu.

Naquele pequeno corredor que era o espaço que tínhamos atrás do balcão de atendimento daquela biblioteca, eu sentei em minha cadeira fazendo o possível para não esbarrar na cadeira do rapaz. Sem sequer roçar nele. Na verdade, eu me afastei o máximo que eu pude.

-- É. Eu mesmo. Eu estava de férias. - respondeu rabiscando algo no bloquinho.
-- Ãh... Legal. - dei outro sorriso que se apagou em seguida. Ajeitei-me na cadeira. Inibida.

Olhei para a bancada procurando o que fazer. Não sabia onde pôr as mãos. O que eu tinha? Eu não era assim. Normalmente sou mais efusiva quando conheço gente nova.

Aquela sensação era sem sentido: quando entrei no salão e vi o moço sentado lá, eu tive a estranha sensação de medo. Isso mesmo. Medo do rapaz.

Estávamos no balcão de empréstimo que fica no hall da Biblioteca Setorial do Instituto de Física da UFRJ. Além deste hall - que não era mais do que uma sala, estreita e comprida, com look de anos 70, um portal de folha dupla para entrada dos usuários, uma máquina de xerox, e outro portal que dava para o acervo do instituto -, a biblioteca dispunha de uma pequenina copa, duas saletas - uma para a bibliotecária e os arquivos topográficos, e outra que funcionava como oficina de encadernação - e é claro, o salão do acervo, esse bem maior, com suas estantes de ferro sisudas dispostas em fileiras.

Um silêncio cortante tomou conta do lugar e, a aquela hora do almoço, a biblioteca vazia não ajudava em nada. Levantei e comecei a ordenar as fichas do arquivo de empréstimos, só para não ficar ali parada com um cara estranho e que parecia indiferente à minha presença.

Naqueles breves minutos eu tentei inutilmente parecer natural. Mas meu medo continuava ali. A presença do moço me incomodava. Incomodava de uma maneira que eu não conseguia compreender. Era ilógico.

Perdi a contagem alfabética dos nomes... Recomecei. Tudo bem... Respire, Alya. Você ainda está sob efeito da noite mal dormida. - pensei com meus botões. Naquele dia nada parecia natural... Lembrei-me do sonho deprimente que tive naquela noite e da reunião chata da qual participara na faculdade mesmo eu estando de férias.

Olhei de soslaio para o moço que continuava tranquilão rabiscando seu bloco, alheio a mim. Medo? Não... Não poderia ser...
Mas o que era agora? Seria cansaço? Seria aquele sentimento chato do sonho? Sentimento esse que eu ruminava ao longo do dia?

Eu não poderia dizer... Não havia nada tátil ali para eu temer. Verdadeiramente, não havia. Quer dizer... O rapaz ao meu lado não tinha culpa de nada. Ele não me olhara de cara feia, nem me intimidara com alguma paquera inconveniente, nem dissera nada de mais... Então o que seria?

Enquanto mexia nas fichas, dei uma segunda olhada discreta para ele, vasculhando as possíveis razões para aquele sentimento:
O rapaz era bem alto. 1,85m? Talvez 1,90. Parecia forte, mas não um atleta. Usava uma camisa de botões azul-marinho e calça jeans... Hum, normal... Jovem... Uns 22 anos? - continuei olhando - Os cabelos grossos, negros e lisos, bem curto dos lados e espetados no alto com entradas nas têmporas. O rosto ligeiramente quadrado, lábios definidos, e o queixo marcado por um furinho... - Hum, uh... Sexy...

Fui interrompida.

-- Está frio aqui... - disse ele com a mesma voz baixa e calma quando reparou que eu sustentara meu olhar por mais tempo que a educação permitia - Esse ar-condicionado nunca está regulado... - completou com um discreto sorriso no canto da boca.

Ah... Os olhos.
Aquele olhar oriental, definitivamente, me confundia. Os olhos puxados com sobrancelhas cheias e retas não me deixavam ver os limites entre a pupila, a íris e a esclera. Era tudo indefinido. Escuro. Hum... Ele devia ter alguma descendência japonesa ou chinesa... A julgar pela altura e peso, acho que era japonesa. Ele lembrava um lutador de sumô... - ri internamente - Só que bem mais magro...

Todo esse pensamento levou um segundo.

-- Ah, é! Está frio mesmo... - respondi sorrindo sem graça e esfregando os braços.

O silêncio voltou. Os minutos passavam. Incomodava.
Voltei às fichas mas a sensação estranha no ar continuava ali. Medo...
Medo?

O sr. Manoel adentra à biblioteca dando "bons dias" a nós dois. Que alívio! Não estaria mais sozinha naquele lugar com um rapaz estranho. Estranho porque eu acabara de conhecer. Estranho porque eu achara ele estranho à primeira vista.

Seu Manoel não ficaria conosco no balcão; ele seguia para a salinha da encadernação. Ainda assim, era bom saber que havia mais alguém por ali. Ele trocou mais algumas palavras gentis, comentou com alegria sobre a volta do tal Lino e foi para sua sala.

Finalizei meu trabalho. Tornei a sentar. Olhei pro lado.
Bah! Que ridícula! - pensei. - Medo de quê? Vamos quebrar o gelo!

-- E então? O que você faz, além de trabalhar aqui? - perguntei tentando ser simpática. Será que ele me acharia intrometida?
-- Acabei de entrar para a faculdade. - sorriu me olhando por debaixo dos cílios - Estou no primeiro período. Minhas aulas começam em fevereiro próximo.
--Puxa! Legal! - juntei as mãos e as repousei sobre o balcão. - Qual universidade? - Tô forçando muito?
-- Unirio. - respondeu repetindo meu gesto.
-- Ora! É a mesma que a minha! - agora me sentia mais leve - Que curso?
-- Biblioteconomia... - sorriu quase como se pedisse desculpas - À noite...

Meu rosto se iluminou.
Esse gancho foi o suficiente para que eu me soltasse, afinal Biblioteconomia era o meu curso também. Eu poderia falar como uma veterana se comparada a ele.

Como numa montanha russa, subindo devagar, comecei a falar sobre a faculdade; que tinha ingressado no meio do ano anterior e que estava indo para o segundo período no próximo semestre. Falei das amigas; que uma delas - a Lili - também fazia estágio na UFRJ, ali no outro prédio. Falei dos professores, falei dos outros cursos, falei das matérias chatas e das boas. Depois, já descendo a ladeira, isto é, tagarelando, contei toda a história de como me tornara representante do Diretório Acadêmico - o DA - e de como minha vida havia ficado atarefada com as atividades de representação acadêmica.

Pois é. Deixa eu contar isso.
Logo depois que ir para a faculdade (e diga-se de passagem, sonhar com ela) se tornou algo cotidiano e normal, passou pela minha sala um rapaz branquelo, um pouco acima do peso e com jeitão de alemão.

Ele pedia ajuda para organizar um pedido de compra de novos códigos (CDD) para os alunos usarem em nossa biblioteca durante o curso. Ele já tinha a petição para encaminhar à reitoria, só faltavam as assinaturas.

Ele era da turma da noite e havia coletado as assinaturas do pessoal de lá. Faltava a galera da manhã endossar o tal pedido, mas ele trabalhava de manhã e não podia deter-se no trabalho de coletá-las.

Marconi - esse era seu nome - lembrava-me um querubim. Redondos olhos azuis, cabelos encaracolados loiros, bochechas rosadas e boca pequena. Apesar dos traços, o rapaz não era tão jovem. Devia ter quase 30 anos, o que para mim, com 18, já era considerado quase um "coroa". Otimista e eloquente, ele falava sempre sorrindo. Carismático, ele explicava que se nos uníssemos, conseguiríamos chamar a atenção da decania e do reitor para nosso pedido.

Gostei dele de cara. Do Marconi. Gostei dele. Sem segundas intenções... Gostei de ver uma pessoa guerreira tomar a frente de sua comunidade. Em tempos em que a internet não existia, mobilizar companheiros para qualquer atividade era um grande desafio, e eu admirei sua coragem e iniciativa. Daí me apresentei e ofereci ajuda.

Não demorou muito e ele me convidou para participar do Diretório Acadêmico - a união dos representantes de turma. Com o tempo de sobra que tinha, acabei aceitando. Junto com outros colegas reativamos o diretório, retomamos os trabalhos de representatividade da Escola de Biblioteconomia e o direito de participar das decisões da faculdade. Isso foi bom. Conheci muita gente, fiz amigos docentes e discentes.

-- Então você é popular... - comentou Lino quando cheguei neste ponto. Sorria com o canto da boca.

Eu dei de ombros:

-- Hum... Acho que sim... Talvez. - admiti.

Continuei contando a ele que em nossa luta para fazer o curso ser representativo, conseguimos passagens de ônibus para uma pequena delegação ir a Aracaju naquele junho próximo, e participar do Encontro de Estudantes de Biblioteconomia e Documentação - o ENEBD. E fora por conta disso que tivera uma reunião pela manhã - mesmo eu estando de férias - o que atrasou minha chegada ao estágio naquele dia.

Eu já tinha falado um bocado. Falado pra caramba, na verdade. O rapaz ao meu lado se mostrava receptivo - sorrindo nas partes em que eu exagerava, tecendo comentários inteligentes - então eu não parava de falar.
Entusiasmada contei como fui parar ali, naquele estágio, na biblioteca setorial do IF:

Com o mundo profissional se apresentando diante de mim e tanta coisa legal me acontecendo eu estava quase com raiva do semestre estar acabando.

Férias? Puxa! Ficaria janeiro inteiro sem ver os amigos da faculdade... Sem fazer nada, logo quando estava aprendendo tanto!

-- Por que vocês não aproveitam para fazer estágio? A UFRJ esta recrutando... - comentou Diva naquele dia.

Era dezembro e, na época, a cantina estava bastante vazia. Muitas turmas haviam sido liberadas com o fim daquele semestre. Havia pouca gente na faculdade. Era nossa última semana. Nos lugares que sobejavam, escolhemos a mesinha próxima à árvore. Três amigas e três latinhas de guaraná.

-- Sério? - respondi surpresa - Mas ainda estamos no primeiro período...
-- Isso não é problema! Eles estão precisando de gente novinha assim, como vocês. É só meio expediente. - completou Diva girando o canudinho da lata com a ponta dos dedos.
-- Vamos, Alya, vamos! A gente pode ir de manhã e voltar juntas ao meio-dia. - disse Liliane. Ela sorria entusiasmada.

Liliane - a nossa Lili - era a evangélica do grupo. Sua religião transparecia nas suas atitudes. Uma pessoa justa, correta e amiga. Suas palavras sempre eram um conforto e incentivo. Logo na primeira semana de aula colei com ela. Além de bonita por dentro, ela também era muito bonita por fora. Como boa taurina, era uma moça grande, na altura e nos traços. Tinha um cabelão aloirado que ia até a cintura e adornava seu rosto ligeiramente quadrado. Olhos cor-de-mel.
Nós morávamos na mesma cidade, o que fortalecia nossa amizade. Assim, éramos inseparáveis - mesmo ela não sendo do DA. As pessoas da faculdade comentavam que a dupla chamava a atenção por onde passava pois ambas éramos altas para a média brasileira.

Resumindo, naquele dia eu tinha uma espírita de um lado e uma evangélica do outro. Agradeço muito a Deus por ter um leque de amizades tão eclético…

-- Poderemos aprender novas técnicas e de quebra ganhar algum dinheiro. Que tal? - continuou Lili balançando as sobrancelhas.
-- Hum... É. - comecei a calcular o custo-benefício mentalmente - Parece bom... Tá certo. Vamos ver como é esse estágio. - me animei.

Depois de pegarmos as últimas notas (Ufa! Passei em tudo!) fomos até a Biblioteca Central da UFRJ para ver o tal estágio.

O Sibi funcionava no campus vizinho ao nosso. Caminhamos até lá.
Era verdade. Realmente estavam recrutando. Fomos bem recebidas, mas Diva não quis se inscrever pois já tinha estágio numa empresa. Ela se foi e ficamos Lili e eu.

-- Tome. Preencha este formulário, por favor. Você vai para a biblioteca setorial do CCH na Geografia e você vai para a do CT na Química. - disse-nos a senhora que nos entregou o papel.

Eu gostei. Sair da área de Ciências Humanas e atender ao público de Química seria uma experiência nova. Gente diferente.

Preenchemos tudo e entregamos. Ela nos deu uma guia para abrirmos uma conta bancária e receber a bolsa-auxílio. Nos dias atuais seria algo em torno de um salário mínimo. Era pouco. Mas pra quem não fazia nada, além de estudar, estava muito bom.

Ela acabara de nos liberar. Lili levantou-se e eu, estabanada, estava tendo dificuldades para guardar minhas canetas.

-- Anda, Alya! - falou Lili da porta.
-- Tô indo! - respondi finalmente fechando o zíper da mochila.

Senti um toque no braço.

-- Espere! Cometi um erro! - era a senhora que nos atendeu. Eu olhei. - É... - continuou ela - Acho que serve você mesmo... - disse me olhando - Eu tinha prometido o próximo estagiário para o Instituto de Física e não para o Instituto de Química... - abriu a gaveta - Se importa de preencher o formulário de novo? - e me estendeu o papel.

Olhei para Lili que tinha voltado para meu lado. Ela olhou pra mim e deu de ombros.

-- Tudo bem. - bufei, e abrindo o zíper peguei a caneta de novo. 
Mal sabia eu que era o destino se intromentendo...

Na mesma semana resolvemos tudo.
Abrimos a conta e nos apresentamos por telefone. Iríamos começar na primeira semana de janeiro.

"Pode vir pela manhã, sim! Abrimos às oito. O seu Manoel chega às sete e meia, com exceção das segundas, e eu chego às nove. Nosso outro funcionário, o Lino, está de férias. Você vai ajudar seu Manoel com o inventário, ok?"

A voz simpática da mulher ao telefone era de Elanir Brantes, minha primeira chefe. Só fui conhecê-la pessoalmente na segunda semana de estágio - uma jovem senhora em torno dos 40 anos, magra, bonitona, com cabelos encaracolados, cheios e armados à altura dos ombros.

-- Sim, obrigada. Logo após as festas estarei aí. Feliz Natal e Feliz Ano Novo! - respondi.
"Feliz Natal e Ano Novo pra você também. Até janeiro então!" - sorria ela.
-- Até! - e coloquei o fone no gancho do orelhão.

Bem... E foi assim que já fazia uns 20 dias que eu estava lá no Instituto de Física. A nova estagiária em Biblioteconomia.

Eu era uma tagarela num monólogo. E o rapaz, Lino, ouvia com muita paciência.
A essa altura, eu já era eu mesma. Gesticulava, ria, e falava como se tivesse uma plateia assistindo. O medo esquecido.

Você pode até achar "estranho" uma pessoa que se considera "estranha" ser assim, tão expansiva. Mas eu faço isso para, justamente, esconder a minha verdadeira natureza...

Como já disse, o Lino não se alterou muito. Perguntava e respondia educadamente, sorrindo e me olhando com aqueles olhos oblíquos. Sua voz calma tinha um timbre firme, aveludado... Bonito.

As horas - tão arrastadas pela manhã - repentinamente, passaram. E entre um atendimento e outro, um comentário e outro, quando vi, já era tarde. Hora de ir para casa.

Dentro do ônibus - estava só pois a Lili tinha saido do estágio dela mais cedo - acabei por concluir que o carinha estranho, o tal Lino, era simpático. Tímido, mas simpático. Acho que tive uma impressão inicial errada sobre ele... - pensei.

Olhei a paisagem. Saía da ilha. Suspirei. - Também pudera... Eu não estava bem naquele dia. Depois de acordar deprimida, eu poderia até dizer que o papo com aquele rapaz havia me ajudado a mudar de foco. Realmente funcionara.

É claro que não contei a ele sobre o sonho daquela noite. Ele acharia que eu era doida. Eu não costumo mesmo a contar pra ninguém...

O ônibus atravessava a ponte Rio-Niterói enquanto as imagens do sonho misturavam-se na minha cabeça, impregnadas por ondas de doçura e amargor. A doçura de ter o primeiro amor. E o amargor de perder a ele... E a vida...

Permitam-me contar...

(Continua)

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