Cérbero (Parte 1)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Era o primeiro dia de volta às aulas.

Foi muito bom ver as amigas de novo.
Cumprimentei Lú e Diva com alegria, feliz também por ver Lili - mas ela eu via a semana toda.
Trocamos comentários sobre as férias, o que fizemos e onde fomos.

Eu estava feliz. Tinham sido ótimas férias.
Não viajara, mas tinha ido a festas de aniversário, casamento, praia, campo e rio. Fora ao parque e à boate com as amigas. Meus pais, em fase de paz, nos levaram, eu e meus irmãos, ao Corcovado. Foi muito legal.

E ainda tinha o estágio. Estágio este que me ocupava os dias da semana, me livrando dos trabalhos domésticos, e adicionando algo ao meu aprendizado.
Agora teria que ir ao estágio à tarde, mas estava tudo bem pois não tinha mais compromissos depois da aula.

No intervalo do lanche dei uma passadinha na sala do Diretório Acadêmico que ficava no mesmo campus.
Era uma salinha de tamanho médio, mais comprida que larga, e ficava sobre a entrada daquela bendita rampa de acesso aos elevadores. Era conjugada com outra sala que fora cedida a uma microempresa de xerox. Os donos da microempresa nos pagavam em forma de quotas de xerox que era bastante utilizada.

Ao chegar lá, o mocinho que trabalhava nas máquinas, já sabendo quem eu era, avisou que Marconi havia confirmado a reunião da noite - naquele tempo não havia celular...

Retornando à cantina encontrei as amigas e comentei que teria que voltar à faculdade à tarde, como já desconfiava que o faria desde a semana anterior.

-- Nossa... - comentou Diva enquanto lanchávamos - mal você volta às aulas e já tem reunião? - e completou referindo-se a Marconi - Esse cara está nos seus calcanhares, hein!?

Foi só uma fração de segundo, imperceptível para minhas amigas, mas eu me arrepiei quando a frase dela quicou no meu cérebro fazendo-me rememorar o sonho daquela noite.

Eu corria por ruas estreitas - ou um corredor largo - limitadas por paredes altas cobertas por heras.

As quadras faziam ângulos de 90 graus com outras quadras. Era noite e somente a lua cheia iluminava o caminho. A mesma lua dava às folhas um aspecto prateado que contrastava com as penumbras. Eu corria descalça, com medo de olhar para trás. Usava um vestido de cor clara, diáfano - eu vi as saias - similar a uma toga. Os braços nus. Me sentia vulnerável. De som, só ouvia meus passos batendo no chão de terra e minha respiração indo e vindo muito rápido.

Estava aflita. Avançava a cada esquina esperançosa.
Olhava para um lado e para o outro buscando a saída, mas tudo era igual. Todas as esquinas iguais, verdes. Um labirinto!

Eu entrava nas ruas sem noção de para onde ir, atravessando zonas claras e escuras. Respirava e corria. Sabia que algo estava no meu encalço... nos meus calcanhares... Não havia tempo para decidir. Eu só podia correr.

Naquele momento eu não me lembrava da minha força... não agia. Só reagia. Semi-consciente.
Me sentindo desamparada e só, ainda tive cabeça para lembrar que na mitologia grega, era o Minotauro quem perseguia e devorava aqueles que entravam em seu labirinto. Aturdida com o pensamento, eu corria ainda mais rápido, imaginando que aquele monstro poderia me alcançar.

De repente parei estupefata numa rua sem saída. As heras indo alto demais para eu tentar pular. Não! - gemi. Tateei o muro procurando desesperadamente por uma passagem. Agarrei-me às trepadeiras. Foi quando ouvi passos vindo do corredor pelo qual passara. Horrorizei-me. As paredes altas faziam sombra à lua justo naquela esquina. Um breu total! Virei assustada pressionando meu corpo contra as heras e esperei que o Minotauro aparecesse no beco em que estava.

Seria o fim.

Quando vi o corpo se mover nas sombras fiz menção de gritar, mas como, para minha surpresa, não era nada do que eu esperava, me contive.

Ele se aproximou caminhando calmamente aparecendo sob a luz da lua que iluminava o ponto onde eu estava.

-- Esta perdida? - perguntou ele educadamente.
-- Lino? - eu estava incrédula a e ao mesmo tempo aliviada. - Sim... Você me ajuda a sair daqui? - implorei desacelerando a respiração.
-- Venha. - gesticulou com a cabeça - Eu te ajudo. - e ofereceu sua mão.

Eu a segurei e voltando ao corredor, começamos a caminhar.
O alívio era enorme, mas eu ainda estava assustada. Ele usava as mesmas roupas de sempre, jeans e camisa de botão escuros, e parecia calmo demais.

-- O que está fazendo aqui? Não tem medo do Minotauro? - perguntei. Eu devia estar sonambula mesmo...
-- Não. O Minotauro não vive aqui. - respondeu tranquilo.
-- Não!? - franzi a testa. Mas eu tinha certeza que algo me perseguia, algo assustador. Eu o sentia - Quem me perseguia então? - perguntei confusa.
-- Cérbero. - disse ele com toda naturalidade. - Ele mora aqui.
Ihrrc! - lembrei do cão monstruoso de três cabeças que guardava as portas de Hades. -- Minha nossa!

Quando tirei meu olhos do rosto dele, vi que já estávamos sob o grande portão do labirinto.
Era um portão duplo de ferro pesado, com lanças também de ferro decorando a parte superior. Com a mão que estava livre, ele pegou a grande argola e puxou uma das pesadas faces que cedeu sem resistência. Era o suficiente para passarmos. Pude ver que do lado de fora era tudo muito comum. Uma rua cheia de casas comuns, iluminadas, seguia alheia à entrada sinistra. Ninguém à vista.

Avancei pelo portal e fiz menção de seguir pela calçada em que pisei, feliz por saber que estava livre, mas senti a trava. Ele não soltara minha mão. Ficou parado sob o portal do labirinto, me olhando. Estranhei aquilo. Me reaproximei.

-- Anda! - urgi - Vamos sair daqui! - disse puxando sua mão para a calçada também.
-- Não. - respondeu soltando-a gentilmente.

Eu olhei pra ele surpresa. Ele deu um passo para trás voltando para as sombras, seu rosto frio, e disse:

-- Eu moro aqui.

E acordei.

-- Hein, Alya? Vai ter que voltar mesmo? - insistiu Lili.
-- Hã?... Ah, sim, sim. Vou. - respondi voltando ao cenário real. - Tenho que ligar para meus pais...

Raramente sonho com gente conhecida. Mesmo pais, amigos e parentes... raramente sonho com eles. Sonhar com conhecidos, da faculdade ou do trabalho, era mais raro ainda.

O que é que aquela figura fazia no meu sonho? Putz.

O segundo tempo acabou muito rápido. Ou era eu que estava muito esbaforida? Nos intervalos de cada aula, eu corri todas as turmas para coletar sugestões e pedidos para encaminhar em nossa reunião da noite, além de me apresentar à turma do primeiro período. Afinal, eu era a representante do D.A. no período da manhã. Ao sair, no caminho, liguei de um orelhão para o trabalho dos meus pais avisando que demoraria. Depois, eu e Lili corremos para não perder o conexão - o ônibus da UFRJ que fazia a linha gratuita entre o campus Praia Vermelha na Urca, e o campus Ilha do Fundão. Ele saía ao meio-dia, e ai de nós se o perdêssemos... teríamos que pegar o convencional - pago - que levava milhares de anos para passar...

Ônibus lotado, ficamos em pé. Estava cansada mas aproveitei para verificar a lista que trouxera. Tentava ver se não tinha me esquecido de passar em alguma turma.

-- Relaxa, Alya! - censurou Lili - Você é sempre tão elétrica! Pô! Até no ônibus!

Eu ri e guardei a papelada como pude. O ônibus balançava a beça. Lili sempre cuidava de mim...

-- Você já tem como voltar? - perguntou-me depois.
-- Já. O Lino vai me mostrar o ponto final desse ônibus aqui lá na Ilha e vamos voltar juntos pra Urca. - respondi passando a mochila a uma boa alma que se oferecera para segurá-la.
-- Sei.

Era a terceira ou quarta vez que Lili respondia dizendo "Sei" e fazendo aquela cara de paisagem toda vez que eu falava no Lino ou no estágio. Aquilo já estava me dando nos nervos, mas deixei essa passar. Na semana anterior fora a vez dela me encontrar na biblioteca e eu apresentei o povo de lá para ela. Ela deu uma boa olhada no Lino. Será que estava interessada nele? Ela era tão bonita...

Chegando no Fundão eu almocei num trailer barato. Lili havia trazido marmita e seguiu para o IGEO.

Estava de ótimo humor quando entrei na biblioteca. Dei "bom dia" a todos e fui para o balcão. A biblioteca estava movimentada com o primeiro dia de aulas também no Fundão. Vários alunos faziam seu cadastro e Nini Brantes pediu que eu esquecesse o inventário e ficasse no balcão para ajudar. Eu concordei.

Vi que havia mais gente naquele espaço estreito. Era o outro estagiário, o Zé. Era um jovem negro, entre 20 e 22 anos, mais ou menos de minha altura e bem magrinho. Depois das apresentações e beijinhos no rosto já estávamos nos entrosando. Ele era estudante da UFF e vivia na minha cidade. Foi fácil simpatizar com ele apesar de que ele parecia também ser um rapaz tímido, mas não caladão como o outro companheiro de balcão. Era fácil falar com o Zé.

Estávamos os três meio atolados com tanta gente na biblioteca. Pessoas entravam e saíam. As fichas de cadastro pareciam multiplicar-se sozinhas. Finalmente tivemos um momento de folga. Começamos a conversar. Lembrei que este seria o primeiro dia de aula do Lino e comentei com o novo amigo.

--Hi, coitado! É calouro, é? Vão pintar ele! É dia de trote! - brincou Zé.

Eu que estava sentada entre os dois, sabia que esse tipo de trote não ocorria na Unirio - ao menos não na minha época - mas quis provocar Lino e botei pilha:

-- Nossa! É mesmo! Vão pintar ele de rosa-choque! - disse enfática e ri debochada - Vai ficar uma "fofa"!!!

O rapaz ficou de todas as cores possíveis, mas vi que estava levando tudo na brincadeira. De onde estava, ele esticou o braço e segurou o meu próximo ao ombro, me sacudiu, querendo parecer feroz:

-- Você está querendo insinuar o quê, hein!? - disse rindo com uma voz pseudo-ameaçadora.
-- Brincadeirinha! Brincadeirinha! - fingi pedir clemência. Caraca! O caladão estava me agarrando! Acho que aquela era a primeira vez que ele me tocava intencionalmente...
-- Cuidado, Alya! Acho que vão pintar ele de verde! Ele parece o Incrível Hulk! - completou o Zé.

E ríamos mais ainda...

Não me deixei intimidar. Provoquei mais, falando em como iam ficar o cabelo e as roupas dele. O Zé fazia coro. Eu era uma palhaça mesmo...

Eu não sei porque fazer aquilo me deu prazer... Acho que eu queria acabar com aquela fachada calma dele. Ver a superfície borbulhar um pouco... Sentia-me motivada com a presença do Zé ali. Sem medo. Sem dúvida, o Zé foi uma ótima adição ao círculo de minhas amizades.

Depois de zoar, controlei os risos e moderei os ânimos tratando de acalmar o rapaz. Disse a ele o que esperar do trote da Unirio: uma festa patrocinada pelos calouros ou uma "pagação de mico" no pátio, como foi meu caso. Todos riram bastante enquanto era minha vez de ficar vermelha ao contar minha cena de amor com aquela estátua do pátio. Foi hilário.

Contar o caso fora uma forma também de não constranger o Lino. Não que me sentisse obrigada... mas não queria que ele pensasse que eu o provocava por algum motivo obtuso ou sei-la-o-quê.

Passamos o dia assim. Rindo e trabalhando. Sempre lembrarei daquelas tardes desse jeito. Nós três rindo e trabalhando. Um trio de amigos. Estudantes. Aprendendo a viver.

Já pelo final da tarde, eu lembrei que teria que voltar para a Urca. Comecei a arrumar minha bolsa. Lino reconheceu o gesto e começou a juntar suas coisas também.

-- Vamos? - chamou-me enquanto eu levantava.
-- Vai me levar ao ponto final? - quis certificar.
-- É meu caminho. Não me custa nada... - seus olhos orientais sorriram.

Aquilo me deu um frio no estômago. Ficaria sozinha com ele. Não absolutamente sozinha, claro. Mas sozinha no sentido de que estaria fora do ambiente de trabalho, na rua, com o rapaz. Eu não sabia porque ele me fazia sentir assim...

Saímos da biblioteca caminhando lado a lado. O silêncio era algo natural para ele. Em pouco tempo estávamos andando pelo campus. Os alojamentos ficavam a uma boa distância do IF então paramos no ponto de ônibus para pegar uma conexão interna.

De vez em quando eu fazia um comentário - somente os assuntos seguros: o tempo, a demora do ônibus, o trabalho cansativo do dia... Ele respondia com monossílabos de modo que eu também não falava muito. Grupos de pessoas se movimentavam aqui e ali, mas no ponto onde paramos não havia ninguém. Devia ser quase umas cinco horas, mas com o horário de verão, o céu ainda estava claro. Ainda bem.

Eu estava meio sem jeito de ficar em pé ali com ele. Me balançava nos calcanhares de vez em quando, correndo os olhos pelo perímetro. Aquele mesmo sentimento de medo do primeiro dia crescia dentro de mim. Tinha vontade de correr dele.

Ridícula! Para de palhaçada! É mais fácil você atacar esse cara pacato do que ele a ti! - pensava comigo - E depois ri com a imagem mental de eu pulando no pescoço dele... Ridícula!

Meu sorriso não passou desapercebido quando olhei para o outro lado, mas o ônibus para o alojamento finalmente chegara. Ele se adiantou e na porta do ônibus fez uma mesura para que eu entrasse. Hum... Educado. Sentamos juntos. Tentei não tocá-lo. Mas era difícil. O banco era estreito. Ignorei a situação. Poucos alunos no ônibus. Mantivemos o mesmo padrão de assunto durante a curta viagem. Em 10 minutos estávamos no ponto final do alojamento. Ao descer ele se adiantou novamente e me deu a mão para me ajudar a pisar nos degraus da condução. Muito fofo da parte dele - pensei. Eu não estava acostumada a tanto cavalheirismo. Sempre fiz tudo sozinha...

O campus dos alojamentos era um lugar bastante feio. Chego a dizer, sinistro.
Eram dois prédios de 3 ou 4 andares com cara de anos 70, de cor cinza, um ao lado do outro; um deles destacado, mais próximo à rua. Nesta endentação entre os prédios havia uma área verde com árvores, plantas, mato e dois banquinhos de cimento com um pequeno jardim mal cuidado entre ambos - uma tentativa mal-resolvida de fazer o lugar parecer mais bonito, eu diria.

Algumas pessoas começavam a juntar-se ali na calçada formando uma pequena fila informal. Todos esperando o Urca.

-- Quer se sentar enquanto espera? - ele apontou os banquinhos solitários adiante.

Olhei pra ele. E porque não?
Sem jeito, concordei.

(Continua)

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