Cérbero (Parte 2)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Fomos para o jardim.

Pseudo-jardim. Tudo era mal cuidado e estava cheio de ervas daninhas. Apesar disso, por detrás do banco de cimento, capitães-do-mato e margaridas de jardim floriam desordenadamente pintando aquela massa verde com alguma cor.

Do ângulo em que vim, encarando o cenário, tive uma sensação estranha.... Eu já estivera ali? Era um déjà vu: o banco cinza, o verde salpicado de laranja, amarelo e branco, o entardecer em volta, lembravam algo que eu já tinha visto....familiar.... Mas o quê? Meu Deus... aonde vi um jardim assim?- a resposta estava na ponta da língua, mas não saía.

Obviamente, tentei não transparecer nada da surpresa e frustração que se convulsionavam dentro de mim para o rapaz que caminhava ao meu lado. Mas acho que algo me escapuliu...

Sentei insegura, esticando a coluna para não parecer uma velha corcunda. Ele sentou-se ao meu lado e também parecia inseguro, como se tivesse cometido uma gafe ao me convidar para ali. Imagino que ele interpretara mal a minha reação... De qualquer forma achei melhor não comentar. Vai que ele acha que sou uma esquisita?... Pensando em esquisitices, lembrei-me que sonhara com ele. Não comentaria nada sobre aquilo. Claro. Vai que ele acha que sou uma louca?

De tanta coisa acontecendo mentalmente, fiquei sem assunto.

-- Er... bacaninha aqui, né? - falei já me sentindo uma idiota só por abrir a boca.
-- É. - respondeu no mesmo tom - Está pouco movimentado porque é a primeira semana de aula... os alojamentos estão vazios...
-- Ah, é.

Silêncio.

Cruzei as pernas e pousei as mãos nos joelhos.

-- Será que esse ônibus vai demorar muito? - olhei o meu pequeno relógio de pulso - Meus pais vão ficar preocupados...

O vento jogou meus cabelos em meu rosto. Uma samambaia de cachos longos e encaracolados. Ele apoiou os cotovelos em seus joelhos, juntando as mãos e se inclinando para frente para achar meus olhos.

-- Você mora com seus pais?

Achei legal ele entabular o início de uma conversa.

-- Eu e meus irmãos. - respondi. Joguei o cabelo para trás. - Tenho dois. Um irmão e uma irmã mais novos. - respondi mais do que ele perguntara. Acho que era ansiedade. - E você? Tem irmãos? - Eu tinha que puxar assunto, ou então aquele clima iria ficar mais estranho...
-- Ãh... Tenho três irmãs.... Uma de sangue que mora conosco, quer dizer, eu e minha mãe; e duas por parte de pai que moram com ele e sua esposa.
-- Ãh... - pisquei - Faz muito tempo que... - deixei a frase morrer. Intrometida! IntrometidaSerá que pisei em campo minado?

Ele se ajeitou no banco:

-- Faz sim. - desviou o olhar - Eu tinha sete e minha irmã quatro, quando ele deixou a gente. - e olhou para longe vendo o passado.

É. Era um campo minado. Eu notei o uso da palavra "ele" ao invés de "meu pai". Eu não devia ter perguntado. Apesar disso, naquele momento eu senti uma afinidade muito grande com aquele rapaz, já um homem.

Famílias complicadas existiam em toda parte. A minha mesmo, por exemplo, apesar de ser e estar unida, tinha seus altos e baixos de vez em quando. Eu já tinha tido minha quota de confusão quando pré-adolescente devido às brigas de meus pais. Da quase-separação. E tinha sido bem difícil... Imagine passar por aquilo na infância... Achei que naquele pequeno comentário dele estariam subentendidas muitas mágoas, ressentimentos e dor.

Será que teríamos outras coisas em comum? Quer dizer... a dor tinha me ensinado a ser forte, claro... graças a Agnostha, de certa forma... Mas e ele? O que teria ele encontrado em sua jornada? Era essa a razão de ele ser tão tímido? Preferia se calar para esconder sua dor? Fiquei curiosa. Mas achei melhor lhe dar uma perspectiva similar... mostrar minha empatia:

-- Deve ter sido difícil... - eu olhava pra ele, e ele para longe. - As coisas já foram muito difíceis lá em casa também... De vez em quando ainda são...

Ele tornou a me olhar, me dando atenção. Falei um pouco da minha história, dos ciúmes da minha mãe, e dos vacilos do meu pai. Falei da quase separação e da fase de paz em que estávamos agora. É claro que não entreguei toooda a roupa suja... seria constrangedor...

-- É engraçado... - iniciou ele. Eu olhei. - Você é sempre tão expressiva e alegre... Está sempre de alto astral... Não parece alguém que tenha tido qualquer tipo de sofrimento nesta vida...

O quê? Ele tava pensando que minha vida era um mar-de-rosas? Que eu era uma "patricinha"?

-- Todo mundo sofre, garoto... - e olhei pra frente sorrindo.
-- Garoto... - sorriu franzindo a testa - Eu já tenho 23, garota.

Eu sorri ao ver que ele não gostara do substantivo.

Nessa hora o ônibus chegou. Nos levantamos e entramos no fim da fila. Como antes, ele ficou à porta e me deixou passar. Por sorte havia um banco vazio. Sentamos. Eu à janela. Olhei a paisagem e suspirei.

-- Foi muito difícil para minha mãe criar a gente... - começou Lino do nada, captando minha atenção - Ela teve que fazer muitos sacrifícios. - olhou para a frente, de novo vendo o passado - Meu pai não pagava a pensão regularmente... e minha mãe teve que se virar em vários empregos, nem sempre bons... - ele olhou para suas próprias mãos pousadas na mochila em seu colo. Havia algo mais em sua expressão... Vergonha? - Nós levávamos uma vida bastante humilde a até bem pouco tempo. - me encarou - Nestes 3 últimos anos, comigo e minha irmã trabalhando, pudemos dar um descanso a minha mãe... Estamos estabilizando nossa vida.

Uau. Ele tinha tomado a iniciativa de falar... isso era novidade. Foi o discurso mais longo que eu já o tinha ouvido expressar desde que o conhecera. Mais uma vez senti afinidade. Ele também estava se dedicando a ser independente - não da família, neste caso; mas independente de um passado ruim. Estruturando sua vida. Corajoso.

-- ... E agora que você passou para a faculdade, terá mais oportunidades de dar conforto a sua mãe e irmã. - completei - Muito legal isso.

Ele gostou do meu raciocínio. Trocamos um sorriso de camaradagem. O ônibus seguia seu caminho.

-- Você está indo se encontrar com o Marconi... É esse o nome dele? - perguntou mudando de assunto.
-- Ah, sim. - e completei - Com ele e com todo o D.A.
-- Por que você se importa com os alunos? Quer dizer... por que você pegou essa responsabilidade para si? - gesticulou - Não tinha ocupação o bastante? - e riu.

Ainda me achando patricinha...

-- Achei que seria uma oportunidade de crescer profissionalmente, conhecer gente... Sabe... pegar os macetes... - me ajeitei no banco e fiz um ar presunçoso - Além disso... gosto de ver as coisas acontecerem. Se algo tem de ser feito, precisar ser feito, e eu achar que posso fazê-lo, eu vou lá e faço.
-- Huh! - ele sorriu e deu aquele olhar de como quem diz "corajosa!".

A viagem seguiu e eu aproveitei o gancho para falar de Belo Horizonte e Aracaju. O Sol já não era visível quando atravessamos o pátio naquela tarde. Perto do CCH Marconi nos avista e aparece na janela da salinha do D.A.

-- Graaande Alya! - saudou-me lá de cima - Bem-vinda! Sobe aí... - gesticulou chamando.

Olhei para o janelão de vidro e vi que haviam outros na sala com ele. Paramos. Lino tinha que descer a rampa e eu subir para o D.A.

-- Bem... - comecei eu. A timidez voltando. - Obrigada por me ensinar a chegar aqui... e pela companhia... - ajeitei a mochila no ombro.
-- Não foi nada. Precisando, é só pedir... - os olhos orientais sorriram, mas os lábios estavam comprimidos.

Pensei em beijar-lhe o rosto. Como forma de agradecimento e despedida. Mas ele era tão sério, tão na dele... Fiquei sem ação. Simplesmente sorri, dei-lhe as costas e subi as escadas. Lino se foi.

Era hora de pensar em trabalho.

Na salinha cumprimentei a todos. Alguns à moda carioca. Éramos sete. Quatro rapazes e três moças. Da turma da manhã, só eu. Havia uma adição ao grupo e me apresentaram Leandro. Era um calouro que sabendo de nossa reunião, queria conhecer o D.A. e quem sabe, se engajar. Era um rapaz de fisionomia interessante. Alto, magro, de tez muito clara e a característica marcante de ter os cabelos grisalhos apesar de não ter mais de 20 anos. Quando olhei para ele, lembrei-me do cantor Ritchie dos anos 80. Mesmo corte de cabelo, mesmos olhos verdes. Atraente.

Mas eu não estava ali para apreciar a beleza de ninguém. Minha cabeça entrou em modo de trabalho quando a reunião começou e eu me abstraí. Levamos quase duas horas discutindo os preparativos da viagem: quem gerenciava as listas de temas, quem ia até a decania acompanhar a liberação das passagens, que ônibus pegaríamos, o que levar, quem fazia o quê e quando.

Olhei o relógio.

-- Ai, Marconi! Já são quase nove... Eu moro longe, você sabe... - comentei.
-- Tudo bem, Alya. Já acabamos aqui. - respondeu levantando-se - Mas antes, vamos nos apresentar às turmas, certo? Hoje é o primeiro dia. É nossa obrigação...

Olhei o relógio de novo. Ah...puxa! Já estava tarde. Eles, ao saírem dali, voltariam as suas classes. Eu teria que atravessar todo o campus da UFRJ para chegar até a parada de ônibus no Pinel...

-- Tem que ser hoje, Marconi? - reclamei juntando as canetas - Eu terei que andar até a parada...
-- Não liga não, gata. Eu te deixo lá. - falou o tal Leandro.

Eu olhei pra ele. Ele sorria... pretensioso?
Eu não gostei de ele ter me chamado de "gata". Primeiro que eu o tinha conhecido naquele dia. Segundo que eu mal tinha falado com ele. E terceiro que eu não me achava uma "gata". Mas o povo era jovem... deixa pra lá. E quanto a oferta, como negar? Eu sabia que não haveria perigo ao longo de um percurso cheio de estudantes, mas andar acompanhada era sempre melhor. Era a primeira vez que eu andava na Urca à noite...

-- Valeu. - disse simplesmente.

Saímos todos juntos e entramos no CCH.
Caminhamos pelos corredores. Marconi batia de porta em porta, pedia licença ao professor e fazia as presentações formais às turmas.

-- Essa aqui é meu braço direito pela manhã. - dizia ele quando chegava na minha vez - Precisando de algo do D.A. pelo turno da manhã, procurem Alya.

Eu me limitava a fazer um "Oi" com os dedos unidos ao polegar e o mínimo levantado (Libras. Lili havia me ensinado. Ela falava linguagem dos sinais).

Quando chegamos à turma do primeiro período, vi Lino. Ele sentara no fundo da sala... claro. Marconi repetiu a fala e eu o gesto. Mas antes de sair eu pisquei um olho para ele... para provocá-lo perante a turma. A-ha... Eu sabia que ele ia ruborizar! Que figura!

Após a última sala, nos despedimos no corredor rapidamente. Cada um tinha que voltar a sua classe.

-- Quer que eu te leve até a parada, Alya? - ofereceu Marconi.

Leandro se adiantou:

-- Pode deixar que eu levo ela. Eu tô indo para casa. Primeiro dia de aula é um saco...

Marconi me olhou e eu assenti. Se o cara estava indo para casa, para quê Marconi matar aula? Marconi olhou para o rapaz e fez uma cara:

-- Olha lá, hein, "rapá"!... Essa aí é minha amiga... Cuidado! - ameaçou brincando.
-- Qual é, Marconi? - Leandro fez uma cara inocente e brincalhona.

Eu girei meus olhos à hipérbole e bufei. Qual era desses dois? Eu era algum bebê?

Eu e Leandro descemos. Fizemos comentários sobre a reunião e a faculdade. Ele começou a falar de si, dizendo que morava na Barra, que tinha um belo carro mas o deixara em casa para economizar, que aquela era sua segunda tentativa de fazer faculdade, que tinha um irmão, que adoravam pescar, que gostava de viver ao ar livre, e que era muito bom no futebol e blá, blá, blá, blá... Atravessamos todo o campus com ele falando sem parar. Eu estava cansada, mas fiz o possível para parecer simpática.

Chegamos no ponto do ônibus, próximo ao Instituto Pinel e paramos. Eu estava até achando graça no rapaz que falava mais do que eu, mas meu ônibus apontou na rua. Eu olhei e fiz sinal, e então me virei para despedir e agradecer a gentileza do moço.

No segundo em que me aproximei, ele enlaçou minha cintura com um dos braços e puxou meu corpo para si com força. Se eu não viro o rosto, ele teria me dado aquele selinho na boca. Foi muito rápido e eu já estava livre. Petulante!Folgado!

-- Palhaço! - falei ultrajada, mas não arrogante. Ele era um cara muito confiante de sua beleza. Com certeza, a maioria das garotas deviam deixa-lo beijá-las...

Não havia mais tempo para discutir. Constrangida, dei-lhe as costas e entrei no ônibus. Em outra ocasião eu conversaria com ele.

Paguei a passagem e sentei sem olhar para a parada enquanto o ônibus saía. A enseada de Botafogo ficando para trás. Recostei e respirei um pouco. Minha cabeça parecia um trailer de cinema. As cenas misturavam-se.

Filho da mãe... Quem ele pensa que é, pra sair beijando uma moça assim... Sem mais nem menos? - pensei e depois ri - Até que ele seria um cara interessante... Se não fosse tãaaao convencido! ... - balancei a cabeça - ... Mais essa agora.

Eu estava muito cansada. Cansada demais para ficar ruminando sobre um rapaz inconsequente e superficial.

Lembrei do meu dia, mais cedo. Sorri. Lino, ao contrário, era bem mais centrado... e mais complexo também, tendo em vista nosso papo no alojamento.

Talvez mais que complexo... - ergui uma sobrancelha nessa linha de pensamento - Complicado mesmo. Um cara complicado: família complicada, personalidade complicada... Praticamente um "bicho de sete cabeças". - e senti um friozinho no estômago quando a lampadinha se acendeu - ... Ou um bicho de três cabeças... no labirinto da vida... E ri sussurrando a conclusão maluca:
-- Cérbero!

Olhei pela janela mas não via nada além do meu reflexo espelhado. O ônibus avançava pelo Aterro. Isso é doidera sua, Alya... Essa sua psicologia barata está ficando mais pobre a cada dia. Deixa o garoto em paz... - falei pra mim mesma. Lembrei também do déjà vu. Mais um motivo para não me levar muito a sério.

O ônibus seguia sua viagem. Olhei de novo para a moça no reflexo e fiquei imaginando se ela poderia ficar mais estranha.... Mais Agnostha.

(Continua)

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