Redentor (Parte 1)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Eu estava com muita raiva, de modo que quando aquele demônio jogou um carro sobre mim, eu nem me dei ao trabalho de desviar dele. Atravessei o carro ao meio - meu corpo denso - e foram pedaços para todos os lados da estrada!

O mesmo corpo denso e a mesma raiva impediam-me de voar, então todo meu esforço não passou de um salto para o outro canto da estrada. Pesada.

Toquei os pés no chão em minha acrobacia perfeita e virei para atacá-lo. Mas já era tarde demais...

Outro carro me atingiu em cheio, dessa vez pela lateral. Fui pega de surpresa.
O carro se arrastou por cima de mim, me arrastando também pelo chão por vários metros. Minha visão se turvou. Não tive psique para suportar a situação, e meu corpo agnosto se tornou humano.

Droga!!! Acordei.

Parecia um feto na cama... pés e mãos recolhidos sob meu abdomen curvado...

Na época, nada fez muito sentido pra mim...
Sonhara que estava numa estrada pouco movimentada, mas muito perigosa. Um ser das trevas representado pela imagem de um homem enorme, marron, e com pernas e chifres de bode, assombrava aquela estrada causando acidentes às almas incautas.

Quando ganhei alguma consciência, quis destruí-lo. Sabe como é... Eu quis expulsar ele de lá na base da porrada mesmo. Não estava com medo da aparência horrenda que ele tinha. Eu queria era baixar o cacete nele. Com raiva de tudo que era desconhecido... tudo que era diferente... tudo que eu não podia controlar...

Nem cogitei levar um papo com ele, mostrar a luz, nem nada louvável...
Acabei por eu levar o cacete! A força bruta se voltando contra mim.

Virei na cama. Chateada. Enfim respirei fundo e tentei voltar a dormir porque ainda era madrugada.

Não foi uma boa ideia...

O vácuo me envolveu e em segundos eu sabia que estava de pé em um local muito alto. Eu digo "sabia", porque eu não o via. Cega. Não consegui abrir os olhos oníricos. A vertigem subia pelas minhas pernas e eu me sentia cega à beira de um precipício... ou algo similar.

-- Eu não consigo! - disse apavorada para o nada.

O vento soprava pelo meu corpo e me fazia balançar. Devia ser algum lugar muito alto mesmo. Mais vertigem.

-- Consegue sim. - respondeu uma voz. Parecia ser masculina.
-- É alto demais... - choraminguei - Eu vou cair! - meus olhos ainda fechados.
-- Você sabe que não vai.
-- Vou sim!

O pavor me dominou e a sensação de queda era iminente.

Acordei com medo.

Esse sonho era repetido. Já era a segunda vez.
Nesse sonho, eu não sabia aonde estava, com quem estava ou porquê.

Desisti de dormir.

Eu tinha uma vaga noção do que estava acontecendo. Eu estava fraca.
Aquelas semanas perto do Lino, desejando e ao mesmo tempo lutando contra esse desejo, acabaram por deprimir-me.

No fundo, eu ainda era muito adolescente. Mas do que a idade, 19, e o corpo, poderiam dizer aos outros.
Sem a experiência de amores platônicos anteriores, eu estava penando com aquele primeiro amor... e o amor quando não é correspondido se torna frustração. A frustração, por sua vez, se manifesta como tristeza ou raiva.

Eu variava entre os dois pólos: uma guerreira desvairada em sonho; uma ostra acordada.

Lá em casa, ninguém estranhou muito... eu costumava ter umas fases assim. Meio ostra.

Li em algum lugar que os Amparadores utilizam-se de projetores encarnados quando precisam de energia humana - como acredito que tenha sido o caso que contei em Mix. Se algum daqueles sonhos foi uma projeção astral... acho que não fui de muito auxílio naquela noite...
Depois de passar um dia mergulhada em meus pensamentos, fazendo minhas coisas como uma autômata, fui na tarde daquele domingo ver minha amiga Deguinha pois um outro amigo iria nos visitar. Albert.

Deguinha parecia interessada no Albert. Ele era um moreninho muito lindinho. Quase um índio, com sua pele cor de jambo. Eu aproveitaria sua visita para dar uma força aos dois, ou como dizem, colocar o cara "na fita" dela.

Albert e eu compartilhávamos um segredo. Ele também era agnosto... estranho.
Um dia, quando nos encontramos numa festa, ficamos conversando e acabamos por descobrir nossa natureza em comum.

Éramos parecidos em sonho. Não que ele tivesse um avatar como no meu caso, mas alguns de seus sonhos se manifestavam na vida real. As vezes, mesmo acordado, ele entrava em transe espontâneo... Médium, por assim dizer...

Infelizmente, não nos viámos com muita frequência de modo que não pudemos aprofundar nossas descobertas juntos. Mas mesmo assim, era ótimo quando tínhamos a oportunidade de nos encontrar.

Quando cheguei à casa de Deguinha, ele já havia chegado e encontrei os dois sentados na calçada. Velhos costumes adolescentes demoravam para sumir...

Sentei também e abracei os amigos. Começamos a conversar. Eu havia levado as fotos que havia tirado na última quinta-feira no IF.

Naquele tempo, ainda usávamos câmeras fotográficas de filme.
Como haviam sobrado exposições do filme comprado para o Carnaval, meu pai me perguntara se eu não queria utilizá-las para ele poder levar a câmera para revelar no dia seguinte. Não pensei duas vezes. A levei para o IF e tirei várias fotos dos amigos. Incluindo o Lino, claro! Foi uma tarde bem legal.

Eu gostava em especial de uma em que eu, o Zé e o Lino fazíamos pose de gangsters em frente a porta da copa.

Deguinha, ao olhar para as fotos, intuiu que eu finalmente havia admitido meu interesse pelo Lino. Quando confirmei - conformada - ela se inclinou, começou a rir e a me dar tapinhas.

-- Eu sabia!!! - se gabava ela - Eu sabia!!! - e estapeava meu ombro - Tá apaixonada!!!

Albert estava entre nós duas e sofria os tapinhas também.

-- Ei! Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? - reclamou ele.

Narrei os fatos rapidamente e acrescentei as ocorrências da semana (Deguinha riu muito com a estória do fantasma). Contei como me sentia e como estava sendo difícil lidar com aqueles sentimentos. Os amigos me ouviam com benevolência.

Quando pausei, Albert comentou:

-- Você tem que se declarar pra ele.

Franzi a testa e resmunguei:

-- Ai, Albert... Eu sou moderna, mas nem tanto. - olhei para o chão - Não tenho coragem pra isso... - balancei a cabeça - Não consigo...
-- Consegue sim. - disse o Albert num tom incisivo.
-- Que nada... - gesticulei - Eu vou acabar levando um fora do cara...

Albert se abaixou para achar meu olhos e declarou:

-- Você sabe que não vai.

Hum... - pensei. - Entonação e frase familiar... - me deu um estalo e foi aí que eu lembrei do sonho. Minha cabeça foi se erguendo devagar na mesma proporção em que a ficha caía.

Eu olhei dentro de seus olhos. Estava suspresa. Ele deve ter estranhado a minha cara, mas mesmo assim sorriu.

-- Que foi? - perguntou.

Eu estava sem ação e ele interpretou isso como incredulidade:

-- Você acha que vai levar um fora. Pois eu te digo que não vai. - sorriu e pôs a mão em meu ombro - Depois de tudo que você me contou, eu posso afirmar que esse cara tá a fim de você também. Vai por mim! - deu uma piscadinha.
-- Eu concordo! - exultou Deguinha

Eu olhei para a cara de Deguinha e de novo para a dele. Meus olhos sorriram. Os dois estavam ali me dando a maior força. Como bons amigos, estavam me dizendo o que eu queria ouvir... o que eu precisava ouvir. Mas não era só isso. Pra mim, Deus..., os anjos... os Amparadores... - o que quer que fosse de bom que me guiava - estava usando o Albert para dar um recado: eu não devia desistir.

Eu sorri.

Meu humor mudou drasticamente. Em alguns minutos eu estava brincando e zoando como sempre. Acabei por fazer meu papel de cupido, e ajudei Deguinha. Saí de lá estrategicamente após meia hora, deixando-os sozinhos.... Não queria segurar vela...

Naquela noite em minha cama peguei o envelope com as fotos e as olhei de novo.
Da primeira vez que as olhara, elas me causaram uma dorzinha no peito - Pra quê eu teria uma foto daquele garoto? Pra sofrer mais?- e eu já estava arrependida de tê-las tirado.

Mas agora era diferente. O IF e os amigos retratados ali eram um aspecto muito querido da minha vida. Eram meu aprendizado. De trabalho e de amor. Me faziam feliz.

E o Lino? Ah, o Lino...
Esse... - eu poderia até quebrar a cara depois... - mas ele seria meu!!!

Dormi bem naquela noite.

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Na segunda-feira resolvi botar minha decisão em prática.

Não tinha a menor ideia de como faria aquilo, mas tinha resolvido deixar o garoto perceber meu interesse por ele. Eu não conseguiria esconder aquilo de qualquer modo mesmo... Eu sabia que parecia patética aos olhos mais espertos.

Estava ciente também que o momento não era o mais oportuno para falar de namoro com ele, posto que ele tinha desmanchado um relacionamento recentemente.

Mas eu não queria pensar muito naquilo.

Eu queria era acabar com aquele sentimento platônico. Queria acabar com aquela sensação de limbo... Ou ele diria que sentia algo por mim ou me punha pra escanteio de vez... (Eu iria ficar com o coração partido - pela primeira vez - mas ainda era melhor do que ficar suspirando aqui e ali por ele.)

Assim, quando cheguei ao IF, a primeira coisa que perguntei quando me acomodei em minha cadeira foi como tinha sido o fim de semana dos rapazes. Usei um tom bem casual.
Não me lembro o que ambos responderam, mas a frase seguinte foi:

-- E você Lino? Voltou pra namorada? - perguntei sem olhar pra ele.

Eu tinha que me certificar de que o caminho ainda estava livre. Sabia que um fim de semana era tudo o que uma garota precisava para voltar para um namorado reticente. Basta um bilhetinho, um recado, uma ligação, um charme, e um cara interessado volta correndo.

Os meninos estavam dando baixa numa leva de livros acumulados da última sexta. Zé anotava a estatística, Lino carimbava. Peguei um livro ao acaso. A resposta do Lino me agradou tanto quanto me confundiu:

-- Não... - disse muito tranquilamente - As coisas são mais complicadas do que parecem...

Sorriu com o canto da boca, pegou mais um livro e, com aquela calma peculiar, retrucou:

-- E você? Ficou com alguém?

Caraca... ele pensava rápido. Por que ele queria saber? Abri o livro e tirei a ficha para carimbar.

-- Não... Fiquei só. - repondi ainda casual. Carimbei a ficha e joguei o livro na pilha dele - As coisas são mais complicadas do que parecem. - alfinetei.

Na outra cadeira, Zé parecia alheio ao nosso diálogo.

Peguei outros livros e tirei as fichas para carimbar a devolução, - naquele tempo era tudo na base manual... Hoje essa atividade é automatizada - minha cabeça processava o que ele havia dito.
Ele ainda estava só. Mas o que isso significava na verdade?

Se ele fosse um tipo expansivo, ele poderia comentar com os amigos que estava sofrendo, que queria que ela voltasse, que o tempo longe dela estava sendo difícil, ou, ao contrário - e para minha alegria - que ela era uma galinha, que ele tinha ódio dela, que não queria vê-la nunca mais e que estava procurando um novo amor.

... Isso se ele fosse um tipo expansivo. Mas ele era o Lino.

Estava distraída com esses pensamentos quando notei a pequena adição à decoração de nossa bancada de trabalho.

Na última sexta-feira, num momento solitário na recepção - os rapazes arquivando - eu, entediada e deprimida, senti necessidade de rabiscar e resolvi ampliar a imagem da onça-pintada que figurava na capa da minha agenda.

Fiz à lápiz para dar os efeitos de luz e sombra, e acrescentei alguma vegetação ao desenho original. Eu gostava muito de desenhar e o fazia razoavelmente bem quando minha paciência estava em alta. Quando terminei, deixei o desenho sobre o balcão. Já era hora de ir e não tinha dado muita importância àquela pequena obra de arte... até ali.

Peguei o quadrinho nas mãos e olhei o que tinham feito.
Meu desenho havia sido colado num papel cartão grosso com apoio atrás para ficar em pé; adornado com papel silueta laranja nas bordas, formando uma moldura, e plastificado em toda superfície com papel contact.

-- Ai... Que fofo! - falei sorrindo - Quem fez isso?

Eles olharam pra mim também sorrindo.

-- Foi feito a quatro mãos. - respondeu o Zé - Eu fiz a estrutura e Lino, a moldura e a plastificação.

Eu olhei para os dois com ternura. Eu tinha largado a folha por lá. Eles poderiam, simplesmente, tê-la jogado no lixo...

-- Obrigada pela consideração... Tô até me sentindo uma artista. - brinquei emocionada.

Baixei o quadrinho de volta à bancada baixando também os olhos:

-- Vou sentir falta daqui quando meu estágio acabar... - completei com uma pontinha de tristeza na voz.

Essa era outra questão que estava me deprimindo. O fim do estágio.
O mês de abril se iniciaria ainda naquela semana. Meu estágio no IF iria até a primeira semana de maio. Assim, aquele seria meu último mês por lá. Penso que a sensação de tempo se esgotando contribuíra também para meus pesadelos.

-- Mas você pode renovar, não pode? - perguntou Lino, e ele se inclinou para achar meus olhos quando fez isso.

Eu olhei pro lado, admirando aqueles olhos puxadinhos, mas estava triste. Eu não renovaria o estágio no IF. Poderia até não sair do Fundão, indo para outra biblioteca por ali. Mas não ficaria mais quatro meses no IF. Eu ainda tinha meu "glorioso plano", lembra?

Ficar no IF não seria bom para minha carreira, e mesmo o que eu sentia por Lino não seria o suficiente para me demover de minhas metas. Eu ia limitar meu aprendizado ficando ali. Eu precisava conhecer outros centros de pesquisa e outras bibliotecas. Tinha que variar minhas experiências.

-- A Unirio não costuma renovar com a mesma biblioteca... É bom que tenhamos outras experiências... - respondi. Não queria falar de minhas prioridades ali...
-- Ah... Tem razão. - Ele se virou e continou fazendo seu trabalho, mas seu semblante parecia... preocupado?

Eu não queria pensar muito em minha saída do IF - ficar longe do Lino - então voltei ao trabalho também, meu semblante refletia o dele agora.

Enquanto dávamos baixa e ordenávamos os livros no carrinho para serem levados ao acervo, um grupo de alunos entrou e Lino foi dar-lhes atenção. Eu e Zé ficamos organizando o restante.

Peguei a folha de estatísticas e fui contabilizar as somas anotadas por ele. Meus cabelos cairam em meus olhos quando me inclinei. Os joguei para trás. Notei que haviam mais números na planilha do que livros no carrinho e estranhei.

-- Zé? Você já havia guardado alguns livros dessa leva? -perguntei.
-- Não... estão todos ainda no carrinho... Por quê?
-- Estão faltando livros... - eu olhava a folha e recalculava. Não era um gênio da matemática, mas qualquer um notaria que a soma não batia...

Os cabelos me incomodaram de novo. Juntei tudo com as mãos, embolei e joguei para o lado esquerdo. Se continuassem atrapalhando meu raciocínio pegaria uma caneta e, à moda oriental, daria um nó naquela juba!

Nesse momento Lino voltou ao balcão.

-- Lino... - perguntei sem olhar pra ele - Você guardou algum livro antes de anotá-los aqui? - e quiquei a caneta no papel.

Estava distraída tentando ver a solução na planilha quando senti a respiração do lado exposto de meu pescoço. Gelei.

-- Você contou com aqueles que foram direto para a sala da Nini? - falou ele devagar. A voz rouca - Quando cheguei, a Nini me pediu para...

Eu já não estava ouvindo a explicação. Tinha me perdido.

Lino apoiara o braço esquerdo no encosto de minha cadeira num quase-abraço se inclinado para ver a folha por sobre meu ombro direito. Muuuito perto. Aquela voz de locutor de rádio fluindo ao pé do meu ouvido, seu calor irradiando em minha face... O que ele estava querendo? Me provocar!? ...Conseguiu!

Prendi a respiração, girei a cabeça devagar e olhei pra ele por baixo dos cílios. Ele ainda falava. Seu rosto estava a milímetros do meu. Se ele se virasse, me beijaria. Emudeci, absorta.

-- Êeeeh! Com um olhar desses eu entregava os pontos, mermão! - exclamou o usuário que se materializou ali na bancada para devolver um livro.

Eu praticamente pulei na cadeira! Meu rosto vermelho de imediato!

Nós nos ajeitamos. E apesar de eu achar que a vergonha era só minha, notei que ele também se sentiu flagrado. Seu rosto corou também. Disfarçávamos.

-- Qual é, cara!? Que isso!? Para de palhaçada!!! - eu exagerei gesticulando e rindo sem graça.
-- Imagina se... - disse Lino ao mesmo tempo em que eu falava.

Zé riu da nossa reação e levantou-se para atender ao usuário que sorria.

-- É... Esses dois aí não se decidem. Ficam nesse chove-não-molha. - comentou ele pegando os livros do moço.

Eu murmurei alguma coisa em minha defesa mas deve ter soado como a mentira que era. Constrangida. Eu queria que o Lino notasse que eu estava interessada nele, mas não assim... tão rápido... e não todo mundo!

Estava surpresa com o Zé também. "Esses dois", ele dissera. Será que ele sabia de alguma coisa que eu não sabia?

Era melhor eu sair dali... Eu era patética mesmo... Ridícula! Idiota!
Peguei a planílha e fui para a sala de Nini ver se os benditos livros estavam mesmo por lá.

Passei "batida" pelo acervo - seria assim até o fim do estágio - e entrei na sala de Nini. Ela me mostrou os livros e eu os contei. É. Completavam os cálculos. Ainda bem que hoje isso tudo é feito por computador...

Voltei para o balcão. Meu ânimo normal o suficiente para dar as caras. Pensei ter ouvido algum burburinho antes de entrar na recepção, mas os meninos estavam quietos quando cheguei... ou se calaram na minha presença. Desconfiei mas deixei essa passar.

O tempo passou normal - se é que éramos um trio normal... - e no final do dia o Zé me convidou para tomar um café, no que aceitei.

Entramos na copa. A porta entreaberta. Nos servimos e sentamos.
Depois dos comentários sobre os biscoitos moles e o café ralo, achei que o ambiente seria seguro o suficiente para sondar o Zé.

--Zé... - comecei casualmente.
--Hum... - sua boca mastigava uma bolacha.
-- Zé... Você acha que o Lino está sofrendo muito pela ex-namorada? - olhei para a xícara e para ele.

Ele me olhou, sorriu travando os lábios e respondeu no mesmo tom:

-- Pelo que ele me disse, ele está lidando bem com a situação... Eles brigavam muito... - e pegou outra bolacha.

Zé não era do tipo fofoqueiro. Eu mesma o teria classificado como "tímido" se não tivesse conhecido alguém mais quieto que ele.

Tomei um gole do meu café. Quando pousei a xícara continuei.

-- Você acha que ele quer voltar pra ela? - ainda casual.
-- Não sei. - pausou - Ele não me disse nada...

Ele bebeu mais um gole de seu café e sorriu:

-- Você gosta dele, não é!? - perguntou à queima-roupa.

Minha máscara caiu e acho que meu rosto ficou mais quente que o café.
Tirei as mãos da xícara e apoiei no colo. Ia esconder o quê? Suspirei.

-- É. Estou gostando dele. - respondi retorcendo os dedos. Eu tinha dificuldade de assumir sentimentos. Meu leitor já deve ter notado isso. Devo ser assim até hoje...

Ele riu baixo.

-- Eu já desconfiava. - apontou com o biscoito pra mim. Eu olhei. - Eu acho que ele gosta de você também.
-- Você acha? - eu fiquei feliz... mas pensei que ele tinha alguma certeza pra me dar...
-- Você sabe que ele não é de falar muito... - e mordeu o biscoito.

Rolei meus olhos. Isso, todo mundo já sabia...
Zé continuou:

-- ... Mas peguei ele olhando comprido pra você algumas vezes quando você estava distraída... e teve o dia em que você faltou e ele ficou resmungando toda hora em como o dia estava chato... e depois de hoje cedo... - sorriu com malícia - ...quando ele quase beijou seu pescoço... - e riu.

Eu ri também, meio envergonhada.

-- Quando você saiu da sala, - continuou - ele veio reclamar comigo de que você não ia gostar de piadinhas envolvendo vocês dois... Pra mim ele gosta de você mas tem medo de levar um fora. - apoiou os braços na mesa.
-- Levar um fora? - fiz uma pergunta afirmativa, não estava entendendo bem.
-- É, Alya. - ele gesticulou - Você tem esse jeito brincalhão... tá sempre zoando... - sorriu - E ele é caladão. Você sabe... Fica difícil saber quando a coisa é séria ou quando é brincadeira... por parte dos dois.

Eu não tinha pensado naquilo. Meu jeito de levar as coisas. Como eu me mostrava aos outros. Acho que tinha ido muito bem na intenção de disfarçar meus sentimentos, afinal... E eu achando que já dava muita bandeira sobre o que sentia. Ou eu era uma boa atriz... ou ele era muito lerdo... ou as duas coisas.

Bem... o Zé sabia tanto quanto eu... Nada muito novo...
Suspirei, balancei a cabeça e olhei de novo pra ele.

-- Zé... Eu gostaria que você não comentasse nada disso com ele... - como eu ia explicar minha confusão? - As coisas estão muito nebulosas... E eu queria que ele... quer dizer.... eu queria que eu...
-- Ei, ei... - me interrompeu - Tudo bem, tudo bem! - sua mão tocou meu braço e me acalmou - "Eu não sei de nada". Está bom assim?

Sorri e assenti. Zé era um cara muito legal.

Quando voltamos para o balcão, Lino estava ocupado com um usuário. Pensei ter visto um olhar desconfiado pairando no rosto dele quando nos sentamos mas nessa hora entrou mais gente na biblioteca e nos distraiu.

Não encontrei Lili na saída daquele dia. Então minha viagem de volta pra casa foi um ruminar de pensamentos incessantes.

Puxa... Como tudo aquilo era estranho... Em outros tempos eu simplesmente namorava ou não com alguém.

Se o cara não desse sinais de interesse por mim, eu mudava de objetivo e pronto. Não me importava em não ser correspondida... Sem dor. Ficava chateada e tal, mas sem dor. Nenhuma. O mesmo ocorria ao contrário. Se um garoto gostasse de mim e eu não tinha interesse nele, problema do cara... Eu não estava nem aí!

Agora tudo parecia um drama. Um melodrama. Uma novela mexicana! Daquelas bem piegas...
À noite, os pensamentos ainda estavam borbulhando, mas meu coração estava mais alentado.
Eu sabia o que queria. Eu havia me decidido. Graças a ajuda de meus amigos. Meus redentores.

Balancei a cabeça e suspirei. O que fazer então...?

Tentei dormir. O sono chegando. Fechei os olhos e pedi a Deus para me ajudar a lidar com aqueles sentimentos.

... e meu Senhor respondeu.

Permitam-me contar...

(Continua)

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