Não faço ideia de quanto tempo já dormia, ou já sonhava, quando ganhei alguma consciência.
Estava de pé com os olhos fechados... no meu quarto?
--Ah, não!
Minha consciência clareou um pouco mais na mesma proporção em que meu corpo tencionou quando a escuridão ganhou novo significado. Estava de pé em algum lugar que não meu quarto - concluí. Os sons indistintos vinham de muito longe, como ecos. Me lembrei do sonho do abismo. Um frio percorreu minha espinha.
Como se fosse para confirmar minha situação de perigo, uma brisa suave soprou pelo meu corpo. Eu devia estar nua.
Ótimo! - pensei sarcasticamente. Agora me sentia apavorada e frágil.
Os segundos se arrastavam. Apertei os olhos me forçando a acordar. Sabia que acordaria assustada.
-- Não seja infantil... - me disseram.
-- Pra você é fácil falar... - repliquei ainda tentando acordar.
Isso foi estranho.
No sonho, parecia normal que houvesse alguém ali para falar comigo. A impressão que tinha, era de que já estávamos conversando há algum tempo antes de eu ganhar alguma consciência de que sonhava; entretanto, o que escrevo aqui é tudo de que me lembro. Foi um encontro, não sei com quem - apesar de imaginar hoje, por tudo que me aconteceu depois, qual foi o teor da conversa.
-- Sem medo. - continuou a voz complacente - Você é forte. O que tiver que ser, será... Agnostha... - a última sílaba ecoou até sumir.
Meu coração palpitou. Eu me lembrei. A menção à Agnostha lembrou-me quem eu era em sonho. A minha força! Mas minha força, eu sei, vinha de meu Deus. Eu não sou nada sem Ele.
Inspirei o ar pesadamente.
Munida dessa força que brota dentro da gente quando se pensa em Deus, suspirei, ergui a cabeça devagar olhando para o céu e.... abri os olhos!
Eis-me aqui, Senhor!!!
Foi como se eu mandasse um sinal aos Céus e este me enviasse a minha armadura.
No mesmo segundo, fui inundada por uma sensação maravilhosa de força, paz e amor.
Se antes meu corpo vacilava ao sabor do vento, agora estava firme como uma rocha sobre meu ponto de apoio. Se antes estava nua, agora me sentia vestida. Forte!
Eu estava Agnostha. Eu sabia.
Sorri sem medo. Trouxe a cabeça de volta e olhei para o horizonte. A visão restabelecida. Quase de frente para mim, um pouco a direita, o halo do sol surgia no horizonte.
Respirei. -- Fascinante!
O céu variava do cinza-noite, passando pelo turquesa até o laranja-amanhecer. Ia ser um lindo dia...
Apreciei a paisagem: a Urca, a enseada, a baía, a ponte... uma tênue neblina em torno de tudo.
Maravilhoso!!!
E tão feliz eu fiquei, que imitei o gesto mais evidente do cenário: abri meus braços!
Eu estava de pé sobre o ombro direito da gigantesca estátua do Cristo Redentor!!!
Ri um pouco do momento incrível e de toda aquela situação.
Que lugar mais absurdo para um encontro! No ombro!? - pensei - Deixa pra lá... isso aqui é muito lindo!!!
Quando o sol despontou azulando o céu, e seus primeiros raios me atingiram, meu corpo resplandeceu em sua superfície espelhada. Que sensação! Permiti-me sorver aquilo!
Fechei os olhos e inspirei.
Algo acontecia... Agora eu podia sentir tudo a minha volta. Tudo...
Era como se o cenário estivesse envolto numa bolha de ar, mas eu era eu, e o ar ao mesmo tempo... Difícil explicar.
Eu podia sentir o granito sob meus pés, o grande formato da cabeça ao meu lado, a base da montanha, a pedra, a vegetação, os pássaros... Poderia dizer aonde estavam as pessoas que cuidavam do mirante, e mesmo a temperatura, a velocidade e a direção do vento eu sabia. Eu sabia tudo!
Aquela altitude seria vertiginosa se eu estivesse lá na vida real.
No ponto estreito em que pisava, havia uma dobra do panejamento que cobre o ombro do Cristo, assim meu apoio era quase um plié - algo inadmissível, se estivesse acordada. (Eu, mal e mal, consigo trocar uma lâmpada numa escada...).
O nó na garganta que sentia agora, era de felicidade! Deus sempre foi muito bom pra mim. Sempre me senti amada por Ele.
Sorri. Era hora de ir. Minha vida seguiria.
Eu estava forte e me sentia preparada para a alegria e para a dor, e estranhamente feliz por ter os dois. Não me pergunte como sabia disso... só sabia.
Ainda de braços abertos, olhei para a frente e deixei meu corpo se inclinar lentamente....
... e caí!!!
UAU!!!
Meu voo rasante passou rente à mureta da sacada principal e no outro segundo via o verde da montanha. Juntei os braços ao longo do corpo e, como um míssil, ganhei mais velocidade! Direcionei meu impulso para a direita e já via o morro da Urca. Os prédios passando como borrões sob mim. Mais um segundo e o morro ficou para trás. Ganhei a Baía de Guanabara - um borrão azul. Vi a Praia de Icaraí. Entrando pelo continente estaria em casa em segundos. Deixei a velocidade do pensamento me dominar; meu corpo me atraindo como um imã.
Arfei. Nossa!!!
Havia acordado. Me sentia maravilhosamente bem! O sorriso estampado no rosto. Meu corpo quente. A superfície da pele formigando ligeiramente. Não incomodava.
Espreguicei e a sensação parecia estar colada em mim. Eu devia estar irradiando energia.
Lembrei que estivera no Corcovado num dia de férias com meus pais - é claro que estivera no mirante... não no ombro, claro. E foi um dia muito legal em família. É provável que isso tenha sido gravado em meu inconsciente e daí o sonho. Não me detive neste pensamento. Estava feliz.
Ainda era cedo, então fiquei na cama por alguns minutos. Rememorava o sonho e sorria.
Não me aguentei por muito tempo. Levantei saltitante como uma gazela e fui pegar minhas roupas. Estava muito ansiosa por começar o dia.
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O dia na faculdade foi ótimo. Ou era meu estado de espírito?
Recebi minha nota em História da Arte e era boa. Em outra disciplina, eu e as amigas Diva, Lili e Lú conseguimos todos os textos para compor o seminário da semana seguinte.
No intervalo corri até a sala do DA. Havia recado pra mim. O rapaz da xerox me entregou um papelzinho com a caligrafia conhecida:
"Grande Alya, temos que nos ver hoje à noite. Te ligo mais tarde. Marconi".
Ai, que bom! - pensei. Voltaria à Unirio. Quem sabe Lino me acompanhava?
Marconi tinha o telefone da sala de Nini. Ficaria esperando - o ramal do balcão só seria instalado mais tarde junto com as reformas da biblioteca. Corri de volta a sala.
Na saída, eu e Lili passamos pela agência bancária que ficava nos fundos da faculdade. Sacamos parte do nosso maravilhoso ordenado de estagiária. Era 1º de abril. Eu tinha que reservar algum para ir a BH, mas ainda daria para eu e Lili almoçarmos no Hamburgão - era o restaurante mais caro do Fundão e só nos dias do pagamento é que comíamos por lá.
Corremos para o ônibus quase perdido. Viajando em pé - como de costume - Lili me pergunta - também de costume - como vai meu quase-romance.
-- Ah, Lili... na mesma... - respondi balançando a cabeça.
-- E você não falou nada pra ele? Nem uma pista? - perguntou com um sorriso maroto.
-- Já dei pistas demais. - fiz uma cara desapontada - Sabe o que me aconteceu ontem?
E contei o flagra do usuário. Ela riu e comentou:
-- É, amiga. Não queria estar em sua pele. Você foi escolher o cara mais isolado da faculdade, isso é o que dá.
Revirei meus olhos. O que eu podia fazer? Ninguém escolhe a quem amar...
"Isolado". Termo interessante... Por que será que Lino fazia questão de parecer "isolado" aos olhos dos outros? Ou seria "invisível" a palavra certa? - hoje, imagino que minha curiosidade em torno dele, foi um dos ingredientes dessa paixão...
-- Pra você ver a minha sorte... - comentei.
Ela riu.
-- Vai voltar à faculdade hoje? - perguntou
-- Talvez... Marconi ficou de me ligar.
-- Humm... - fez com malícia - Vai estar coladinha com o Lino... - e me empurrou com o ombro.
Eu devolvi o empurrão, sem jeito:
-- Ai, Lili, não me ponha nervosa!
E mudei de assunto. Minha cabeça já estava cheia daquele cara.
Depois de almoçar no Hamburgão e dar uma passadinha nos toaletes, nos despedimos e corri para o IF. Ao chegar, deparei com uma moça bem baixinha, de cabelos encaracolados e cheios sentada ao balcão. Era a Vallery.
Trocamos um "boa tarde", assinei meu ponto, guardei a mochila e sentei.
-- Cadê todo mundo? - perguntei.
Vallery era uma moça que trabalhava na biblioteca do CCMN.
Quando as coisas ficavam muito atribuladas no IF, Nini a pedia "emprestada" à Madalena, gestora do Centro. Nos conhecemos na semana das matrículas. Ela fazia Serviço Social na UFRJ. Eu gostava dela por seu ar maternal.
-- Nini pediu ao Lino e ao Zé que fossem ao CCMN ver o espaço para alojar parte do acervo. Daqui a pouco eles estão por aí... Você sabe que as reformas vão começar, não sabe? - lembrou-me ela.
-- Ah, é.
-- Olhe, a Nini quer falar com você. Dê um pulinho lá.
-- Ok.
Levantei e fui até a sala da bibliotecária-chefe.
Nini me recebeu com um sorriso e me explicou que devido às reformas, a biblioteca só funcionaria dois dias por semana. Assim sendo, ela concluiu que não seria necessário que todos viessem nestes dias e que por isso, passaríamos a trabalhar em sistema de plantão, apenas três de cada vez.
-- Seu estágio acabaria na primeira semana do mês que vem, mas com isso e mais sua viagem à BH, receio que teremos que adiar sua saída, quem sabe, para junho. - concluiu ela.
Eu não me opus tendo em vista que ela fora muito compreensiva em permitir que eu viajasse no meio do mês e compensasse depois. Compensar mais um mês não seria um sacrifício. Não mesmo.
Antes de eu sair, ela disse que Marconi ligara e que eu poderia usar seu telefone. Disquei o número que ela anotou e do outro lado da linha Marconi atendeu:
-- Graaande, Alya! Salve, Salve!
-- E aí, Marconi? Tudo certinho!? Que manda? Nos veremos hoje?
-- Olhe, querida, - começou ele - amanhã é o último dia para enviarmos os currículos dos palestrantes à banca da Executiva Nacional para avaliação. O Leandro trabalha com dois dos palestrantes e havia se comprometido a levar o currículo deles lá para a nossa reunião. Só que ele teve um imprevisto e não irá. Como ele estará aí no Fundão para um seminário, eu pedi a ele que os entregasse a você para que os trouxesse para mim hoje. Eu tenho fax no trabalho e passarei os currículos amanhã pela manhã. - (naquele tempo, nada de e-mails; e fax era uma coisa corporativa) - Ele deve passar por aí lá pelas 15h, ok?
-- Tá ok, Marconi. Ficarei esperando. Até a noite, então.
-- Beijo!
-- Beijo.
Desliguei.
Ah, puxa, logo o convencido do Leandro? - pensei - Bah! Deixa pra lá.
Agradeci à Nini, voltei ao balcão e aproveitei para papear com a Vallery.
Ela me parecia uma moça tímida, mas com meu talento pra puxar assuntos - que funciona bem com quem quer falar - ela se soltou mais, e em pouco estávamos rindo enquanto trabalhávamos.
Durante nossa animação, ela começou contar seu sonho daquela noite. Ela sonhara que tinha uma espinha no rosto e que ao espremê-la, ela ia ficando maior, e maior, até que uma cabeça caía no chão. Ela acordava horrorizada.
Fiquei surpresa por ela me escolher para contar aquilo. A gente se via pouco.
Isso ocorre de vez em quando. As pessoas, do nada, começam a me contar seus sonhos... Devo ter cara de "confessionário onírico"...
-- Acho que você deve procurar um médico. - disse em tom moderado - Você comentou que está com gastrite. Talvez a coisa seja um pouco mais séria e seu corpo esteja querendo avisá-la...
Não sei de onde me veio aquilo, mas a menção à "cabeça" me lembrou algo que tem vontade própria, que pensa sozinho, vivendo dentro dela... sei lá.
-- É. Vou procurar. - respondeu ela de um jeito anticlimático, frio, me olhando de cima abaixo e acima de novo.
É justamente aquele tipo de olhar que eu evitava - e evito - ao máximo. Ela me olhou daquele jeito que tenho medo que as pessoas me olhem se eu contar minhas aventuras oníricas. Me achando uma esquisita. Estranha.
Dei um sorrizinho sem graça e voltamos ao trabalho. O papo continuou, claro, mas senti que agora ela tateava para falar comigo. Ainda bem que minha tarde melhorou quando meus afetos entraram pela porta.
-- Olá, meninas! - saudou o Zé.
-- Boa tarde. - saudou Lino.
Eles passaram direto pelo corredor.
-- E aí, rapazes? Como foi lá? - perguntei animada.
-- Foi tranquilo. - disse o Zé ao passar - Vimos os espaços para acondicionamento do acervo. Depois a gente conversa...
E seguiram direto para a sala da Nini para prestar seu relatório.
Uns dez minutos depois, tão logo eles estavam de volta, Vallery falou com Nini, se despediu de nós e saiu na sequência. Será que eu a havia assustado? Até hoje não sei.
Os rapazes tomaram seus lugares de costume e ficamos a falar sobre as reformas e em como poderíamos aproveitar o tempo livre do plantão. Todos tinham em mente pôr os estudos em dia.
É claro que nem tudo era seriedade... Fizemos piadas sobre o 1º de abril - Dia da Mentira.
O tempo foi passando e conforme chegavam, avisávamos aos alunos que a biblioteca entraria em reformas e que só ficaria aberta dois dias por semana. Nini preparava uns panfletos para divulgar aquilo.
Lá pelas três horas, haviam poucos livros a serem arquivados de modo que o Zé se oferecera para realizar a tarefa sozinho. Ele saiu empurrando o carrinho, mas antes, e só para mim, ele deu uma piscadinha.
Quando entendi suas intenções, eu travei um sorriso e meneei a cabeça. Zé estava nos deixando sozinhos de propósito.... Eu tinha mais um torcedor.
Depois que ele saiu, ainda debruçada sobre o livro em que trabalhava, comentei casualmente:
-- Vou voltar a Unirio hoje, Lino. Você vai à aula?
-- Vou sim.
-- Podemos ir juntos?
-- Sempre.
Eu olhei para ele que sorria. Eu sorri por dentro e por fora, mas voltei a dar atenção ao meu livro.
Quando achei que Lino iria me dirigir a palavra para falar alguma coisa, Leandro entra hall a dentro fazendo barulho.
-- Achei você!!! - sorria ele - E aí, gata!!!
Ele se aproximou e se inclinou por sobre o balcão na minha frente.
-- Oi, Leandro. Tudo bom? - disse educada.
-- Qual é, Alya? Nem um beijinho? Nós somos companheiros de causa ou não somos? - e sorriu.
Rolei meus olhos à hipérbole e tive que rir. Ele era tão espontâneo.
-- Ah... Desculpe...
Levantei-me, apoiei as mãos na bancada, inclinei sobre o balcão e beijei-lhe as faces.
Leandro tinha aquele jeito chato de cumprimentar. Ele virava um pouco o rosto para dar beijinhos estalados, sua mão segurava a nuca da pessoa beijada e ele fazia isso mais lentamente do que a amizade permitia. Ele fazia isso com todas as garotas. Todas.
Ao me afastar dele, me senti um pouco constrangida porque Lino estava ali e certamente observara a cena.
-- E aí, Lino? Tudo jóia? - saudou Leandro estendendo sua mão para ele.
Leandro e Lino eram da mesma turma. Se conheciam.
-- Tudo bem, e você? - respondeu levantando-se e apertando sua mão.
Leandro riu.
-- Cara! Você trabalha com a Alya, - gesticulou para mim - e nunca falou nada! Pôxa!
-- Pois é...
-- Puxa, essa garota não para! Fala pra chuchu, resolve tudo e reclama a beça! Como tu aguenta!? - ele ria de mim.
Comecei a corar e tive que me intrometer.
-- Ei! Vê lá como fala de mim! - disse brincando - Vai assustar o Lino! - eu sorria... mas estava falando sério.
Lino deu um sorriso presunçoso e respondeu a ele:
-- Eu já me acostumei.
Eu murmurei alguma coisa contra os dois que estavam me zoando.
Lino e Leandro ficaram mais alguns minutos conversando sobre qualquer coisa referente a um trabalho acadêmico. Era contrastante ver os dois falando. Um com a voz modulada e gestos contidos e o outro tagarelando e gesticulando.
-- Olha, gata. - disse Leandro quando se virou e pousou uma pasta plástica azul sobre o balcão - Aqui estão os currículos e as cartas de apresentação dos palestrantes. Tenho que voltar pro seminário.
-- Ah, sim. Obrigada. - respondi pousando a mão sobre a pasta para puxá-la para mim.
Leandro travou meu movimento ao segurar minha mão e de repente ficou sério:
-- A gente se vê na próxima reunião, Alya. - e soltou todo o poder de seus olhos verdes sobre mim.
Pega de surpresa, como uma passarinho mesmerizado por uma cobra, fiquei alguns segundos perdida nos olhos dele. Emudeci.
É claro que ele gostou da minha expressão...
-- Tchau, Lino! - disse ele ainda com os olhos em mim - A gente se vê amanhã. - só aí me soltou quebrando o link.
Virou-se, acenou e saiu sem mais.
Eu e Lino murmuramos um "tchau" mudo e quando a porta se fechou atrás dele a biblioteca ficou em total silêncio.
Ainda desconcertada, soltei a respiração que prendia e peguei a pasta. A guardei junto de minhas coisas e me sentei. Lino já estava em seu lugar.
-- Ele é um cara legal... - comentei para quebrar o gelo - É meio chatinho, mas é legal... - e me lembrei dos olhos verdes - ... Além de ser um tremendo gato! - completei em tom de brincadeira.
Lino não fez expressão alguma. Apenas levantou-se.
-- Vou ver se Nini quer que eu leve as cartas para os escaninhos agora. - disse com indiferença. Passou por mim e saiu pelas portas duplas.
Eu fiquei no vácuo.
!?!?
Me virei, abri o armário e peguei algumas fichas para ordenar. Bati a gaveta com força.
Droga!
Essa era, basicamente, a diferença entre Lino e eu: ele falava de menos e eu demais.
Será que lhe provoquei ciúmes? Eu nunca saberia. Eu não tinha material o suficiente para analisar a situação. E era também isso que atrapalhava aquele romance. Eu nunca conseguia ter uma certeza razoável sobre se ele gostava de mim do mesmo jeito que eu gostava dele. Para cada palavra ou expressão que me dizia que sim; havia uma dúzia, que não me diziam que não, mas me deixavam no limbo...
Estava eu xingando mentalmente quando o Zé voltou ao balcão e Lino passou pelo hall com as cartas porta à fora.
-- Aconteceu alguma coisa? Vocês brigaram? - perguntou Zé ao sentar-se.
-- Não. Por que? - me surpreendi.
Zé deu de ombros:
-- Ah... Por nada... É que ele estava com uma cara...
Ah, Droga... O que ele estaria pensando? Argh! Vou mandar esse garoto às favas! Já não aguento mais esse "estica e puxa" de sentimentos. Saco!
-- Dez para as quatro, Alya. - cortou o Zé - Você não tem que voltar à Unirio?
-- Ãh? Ah, é.
Parei o que fazia e comecei a recolher minhas coisas. Depois peguei a mochila e a tal pasta azul e as pousei sobre o balcão.
-- Ia partir sem mim? - Lino perguntou ao entrar pelas portas da biblioteca.
Eu sorri quando o vi, sinceramente feliz por ele parecer estar de bom humor de novo. Minha raiva se esvaindo.
-- Eu estava te esperando... - mentira. Àquela altura eu já achava que teria que ir sozinha - Vamos? - controlei o sorriso.
O Zé sempre ficava mais meia-hora para pagar suas faltas com seminários e cursos, então nunca saía conosco. Lino pegou suas coisas, nos despedimos de todos e saímos.
Fizemos o conhecido trajeto falando pouco.
Falamos sobre as reformas na biblioteca - Vão instalar computadores? Puxa! -, da situação política do país, em duas palavras: Era Collor -, das greves e dos salários.
Nos alojamentos, nos dirigimos automaticamente para nosso jardim e, mais uma vez, senti a timidez pairar no ar.
-- Vão ter que esticar meu estágio, sabia? - comentei - Com essas reformas e minha viagem à BH, eu vou acabar tendo que compensar até junho.
-- Junho? - sorriu ele - Até quando? ...Até meu aniversário?
Eu olhei.
-- Você faz aniversário em junho?
-- 19 de junho.
-- Hum... Um geminiano... - disse num tom de mistério. Cruzei as pernas e pousei as mãos nos joelhos.
Conhecer as fases dos signos solares não era algo recente para mim. Eu sempre me interessei por Astrologia. No entanto, eu sabia pouco sobre Gêmeos. Sabia que mudavam de humor rapidamente e que a dualidade é um traço marcante na personalidade dos geminianos, e só. ( Hoje eu sei bem mais que isso...)
Ele perguntou curioso sobre o que eu sabia e eu lhe respondi o comentado acima. Ele me olhou incrédulo.
-- Eu não acredito nessas coisas. - afirmou com um sorriso zombador.
Eu olhei presunçosa:
-- Você sabia que o signo de Virgem é o único que consegue mudar o humor de um geminiano tanto para o bom quanto para o mau?
Ele sorriu apertando os lábios, olhou para longe e de volta para mim.
-- E você é virgiriana. - o sorriso se abriu.
-- De 28 de agosto.
Ele se inclinou e apoiou os cotovelos nos joelhos, juntou as mãos e olhou de novo para longe.
-- Então, neste caso, estou começando a acreditar... - e me olhou com o canto dos olhos - Só você consegue me fazer sorrir e também me irritar ultimamente...
Meu coração palpitou. Ele queria dizer o quê? Que eu era a dona do humor dele?
Resolvi manter o diálogo leve.
-- Eu te irrito? - sorri e bati com meu ombro no dele - Eu não sou nada irritante, tá! - disse como uma garotinha. E mudando o tom completei - Eu gosto de mexer com você... Provocar você... É diferente.
Ai, meu Deus... o que eu estava dizendo? "Provocar" poderia ter diversas interpretações... Mais um pouco e eu estaria me declarando. Calei e virei o rosto encabulada.
Silêncio.
-- ...nosso ônibus. - ele disse. Pareceu-me que ele fizera um esforço para falar.
Soltei o ar pesadamente. Ainda sem olhar, ajeitei a mochila no ombro e me levantei. Nem tinha notado que o ônibus chegara.
Caminhei sem falar nada e o rapaz ao meu lado também estava quieto.
Como de costume, ele parou à porta e fez sinal para eu subir. Havia um banco vazio no meio do ônibus e me sentei à janela.
Tão logo ele se recostou ao meu lado percebi seu calor. Era bom. Olhei discretamente. Lado a lado, seu ombro era um palmo mais alto que o meu. Ele estava usando uma camisa de botões negra com as mangas dobradas até o cotovelo e calça jeans escura. Lhe caíam muito bem. Eu gostava daquele porte físico dele. Me atraía... Na verdade eu achava ele lindo.
O ônibus deu partida.
-- Ai, meu Deus! Minha pasta! Onde a deixei!? - me alarmei tateando em volta quando me libertei do devaneio.
-- Calma... está aqui. - e me passou ela.
Que alívio! Eu vivia esquecendo as coisas... Se não fosse ele...
-- Ah... Obrigada. - disse me recompondo. Sorri um pouco. - Eu ando meio distraída... Essa distração vive atrapalhando meus planos... - afirmei resignada.
-- E quais são seus planos? - me encarava agora.
Hum... Essa me pegou... Ele estava me dando assunto para uma hora inteira de viagem até a Urca.
-- Ah... Bem... - comecei entrando em modo palestra - Primeiro preciso me formar; conseguir um emprego... - gesticulei - Neste caso, essa viagem à BH será uma boa experiência profissional porque, você sabe, nossa área...
-- Nós já falamos sobre nossa vida profissional... - me cortou ele - Eu falo da vida pessoal... - engoliu. Corava? - Quais são seus planos?
Senti aquele friozinho no estômago. Para onde ele estava levando aquela conversa?
Sinceridade, Agnostha.
-- Bem... No nível pessoal as coisas estão meio confusas... - eu moderava a voz agora - Ainda não sei bem o que quero. - meus olhos vagaram - Tenho milhões de tarefas e responsabilidades comigo, com minha família, os estudos e o DA. - balancei a cabeça - As vezes é bem difícil fazer um plano coerente, sabe? - e olhei pra ele.
-- E os pretendentes? - perguntou casualmente.
Comecei a corar. Olhei para a frente. Apertei as mãos no o colo sobre a mochila.
-- Ah... Tenho alguns, você sabe... - gesticulei - Mas eles não se encaixam nos meus planos... Não que eu não queira... A vida é que está confusa mesmo...
Notei que ele puxou o ar antes de falar:
-- Você tem planos com o Leandro?
Leandro? Como Leandro entrou nessa conversa?
Perseverança, Agnostha.
-- Não... eu não tenho planos com o Leandro... - suspirei - Tenho planos com outra pessoa... - e olhei furtivamente para ele.
Ele girou um pouco no banco, virando-se pra mim, e procurou meus olhos:
-- Outra pessoa? - hesitou - Posso saber quem?
Minha respiração suspendeu. Eu pisquei confusa e me olhei para a frente. Dois segundos e soltei o ar de maneira audível. Senti seus olhos ainda sobre mim. Tão perto...
O que faço!? Falo? Digo que gosto dele? Mudo de assunto? Ajo?
Meu coração martelava forte enquanto meu sangue fervia.
Coragem, Agnostha.
Agi.
Solenemente, me virei pra ele, puxei seu queixo para baixo e, delicadamente, dei um, dois, três selinhos em seus lábios.
-- Você, idiota! - completei olhando em seus olhos.
Olhei pra frente de novo. Desnorteada com o que tinha feito, continuei falando.
-- Bem... como ia te dizendo...
... e não faço a menor ideia do que disse naquela hora!
Meu coração palpitava como louco e meus ouvidos zuniam! Minhas mãos pareciam picolés e meu rosto estava ardendo de vergonha e - por que não? - de alegria também!
Ele estava congelado - ou chocado - na mesma posição... Eu não sei... eu ainda não tinha coragem para olhar. Eu falava sem parar para respirar e devo ter falado por um minuto inteiro!
Vendo que a situação era insustentável, eu finalmente pausei e inspirei fundo.
O que fiz!? Será que ele estava chateado comigo? Toda nossa amizade perdida?
Expirei relaxando os ombros e olhei pra ele sem encarar seus olhos.
-- Ai, ai... Me desculpe... - disse sem jeito - Eu sou maluca... Eu sou doida... eu... - e balancei a cabeça - Eu não queria te forçar... eu...
Sua mão segurou meu queixo e levantou meu rosto.
-- Ainda bem que você falou... - seus olhos nos meus. Sorriu - ...Eu estava juntando coragem pra me declarar...
E aí sua boca colou na minha e eu não vi mais nada!
Não vi o ônibus cheio de gente, não senti seu saculejar, não vi em que ponto do trajeto estávamos... Nada!
O primeiro beijo com alguém que se ama é sempre o melhor de todos! Não dá para descrever!
Seus lábios eram macios, úmidos e quentes. Eles se encaixavam perfeitamente nos meus... e o gosto... e a língua... Ah!
Nos últimos dois meses minha vida tinha sido uma eterna dúvida ...e desejo. Aquele beijo era um alívio e ao mesmo tempo uma guinada em minhas emoções.
Quando nos desvencilhamos olhamos nos olhos e sorrimos. Nossa respiração indo e vindo muito rápido. Sua mão afagou meu rosto e eu retribuí o gesto. Como era bom finalmente poder tocá-lo! Tocá-lo com carinho.
Naquele segundo eu senti como se fosse um reencontro... Eu não sei explicar... Era como uma saudade enorme... que morria ali!
Ainda não havia espaço para palavras então nos beijamos de novo... e de novo... Até que tive que fazer um esforço consciente para lembrar que estávamos num ônibus acadêmico cheio de gente e me comportar.
Éramos todo sorriso. Agora nossas mãos dadas pousavam sobre a mochila em seu colo.
-- Ainda bem que isso aconteceu. Eu não aguentava mais essa situação... - comentou ele timidamente.
-- Você não aguentava!? - eu controlava minha euforia - Eu é que não aguentava mais!!! Você tem noção do que passei!?
-- Você passou? - e riu - E o que eu passei? Sem saber se o que percebia era interesse, ou mais uma brincadeira sua...
-- Brincadeira!? - bufei teatral - E você que tem a mesma cara para todas as emoções!? Como eu ia saber!?
-- A mesma cara? - e riu.
E começamos a brincar um com o outro sobre nossas inseguranças naqueles meses.
Foi divertido. Fiquei sabendo que ele estava interessado em mim desde a primeira ida à Unirio, que ele pensava que eu namorava o Marconi, que ele se segurava pra não me beijar na biblioteca...
Fiquei feliz. Em troca falei de como me sentia quando ele chegava perto demais ou quando estávamos sozinhos no balcão, e da vergonha que senti quando peguei ele sem camisa...
Nós rimos muito.
A situação toda era engraçada porque parecíamos dois amigos que se beijavam.
Apesar da brincadeira, eu ainda estava alerta. Sabia que ele tinha terminado um namoro recentemente e o que acontecera ali, podia ser algo de momento.
Mas não queria falar sobre nada sério naquela hora. Não queria perguntar se estávamos namorando de verdade ou não. Não queria saber da ex dele e em que pé estava aquela situação.
Eu queria aproveitar o agora... Deixar toda minha ansiedade acumulada se esvair na felicidade daquele momento.
Fomos nesse clima até a Urca. De vez em quando um beijo interrompia o diálogo.
Quando ele segurou minha mão para descer do ônibus, não a largou mais.
Quem passava, via um casal feliz.
Eu me sentia meio idiota com um sorriso estampado no rosto que não desmanchava. Não conseguia encará-lo diretamente, com vergonha de parecer uma boba infantil. Eu era, literalmente, uma adolescente de com seu primeiro amor.
Caminhamos pelo pátio - ou era o céu? - e só me dei conta que já estava em frente a escada da sala do DA porque ele parou. Olhei e vi que tinha gente lá.
Ficamos de frente um para o outro. Ele me passou a pasta azul - que eu já nem me lembrava dela (de novo) - e sorriu.
Me demorei em seus olhos negros.
É. Brilhavam... como os meus...
-- E então... - era sempre eu quem quebrava o gelo... naquele caso, o calor - ... nos vemos amanhã?
-- Espero que sim. - e sorriu torto - Vou te esperar...
Ele se inclinou e me beijou de novo.
Ele apenas pousou sua mão em minha cintura, mas eu tive que me esforçar para fazer daquele beijo, só um beijinho de despedida...
Com o coração palpitando, eu sorri e me afastei dele.
Foi difícil dar-lhe as costas e subir as escadas. Estabanada como era, não sei como consegui.
Do topo olhei pra ele e sorri. Ele inclinou a cabeça e sorriu também.
Fiquei olhando até ele sumir na rampa dos elevadores.
Suspirei e entrei saltitante na sala do DA. Feliz da vida!
terça-feira, 14 de setembro de 2010
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
Eu estava com muita raiva, de modo que quando aquele demônio jogou um carro sobre mim, eu nem me dei ao trabalho de desviar dele. Atravessei o carro ao meio - meu corpo denso - e foram pedaços para todos os lados da estrada!
O mesmo corpo denso e a mesma raiva impediam-me de voar, então todo meu esforço não passou de um salto para o outro canto da estrada. Pesada.
Toquei os pés no chão em minha acrobacia perfeita e virei para atacá-lo. Mas já era tarde demais...
Outro carro me atingiu em cheio, dessa vez pela lateral. Fui pega de surpresa.
O carro se arrastou por cima de mim, me arrastando também pelo chão por vários metros. Minha visão se turvou. Não tive psique para suportar a situação, e meu corpo agnosto se tornou humano.
Droga!!! Acordei.
Parecia um feto na cama... pés e mãos recolhidos sob meu abdomen curvado...
Na época, nada fez muito sentido pra mim...
Sonhara que estava numa estrada pouco movimentada, mas muito perigosa. Um ser das trevas representado pela imagem de um homem enorme, marron, e com pernas e chifres de bode, assombrava aquela estrada causando acidentes às almas incautas.
Quando ganhei alguma consciência, quis destruí-lo. Sabe como é... Eu quis expulsar ele de lá na base da porrada mesmo. Não estava com medo da aparência horrenda que ele tinha. Eu queria era baixar o cacete nele. Com raiva de tudo que era desconhecido... tudo que era diferente... tudo que eu não podia controlar...
Nem cogitei levar um papo com ele, mostrar a luz, nem nada louvável...
Acabei por eu levar o cacete! A força bruta se voltando contra mim.
Virei na cama. Chateada. Enfim respirei fundo e tentei voltar a dormir porque ainda era madrugada.
Não foi uma boa ideia...
O vácuo me envolveu e em segundos eu sabia que estava de pé em um local muito alto. Eu digo "sabia", porque eu não o via. Cega. Não consegui abrir os olhos oníricos. A vertigem subia pelas minhas pernas e eu me sentia cega à beira de um precipício... ou algo similar.
-- Eu não consigo! - disse apavorada para o nada.
O vento soprava pelo meu corpo e me fazia balançar. Devia ser algum lugar muito alto mesmo. Mais vertigem.
-- Consegue sim. - respondeu uma voz. Parecia ser masculina.
-- É alto demais... - choraminguei - Eu vou cair! - meus olhos ainda fechados.
-- Você sabe que não vai.
-- Vou sim!
O pavor me dominou e a sensação de queda era iminente.
Acordei com medo.
Esse sonho era repetido. Já era a segunda vez.
Nesse sonho, eu não sabia aonde estava, com quem estava ou porquê.
Desisti de dormir.
Eu tinha uma vaga noção do que estava acontecendo. Eu estava fraca.
Aquelas semanas perto do Lino, desejando e ao mesmo tempo lutando contra esse desejo, acabaram por deprimir-me.
No fundo, eu ainda era muito adolescente. Mas do que a idade, 19, e o corpo, poderiam dizer aos outros.
Sem a experiência de amores platônicos anteriores, eu estava penando com aquele primeiro amor... e o amor quando não é correspondido se torna frustração. A frustração, por sua vez, se manifesta como tristeza ou raiva.
Eu variava entre os dois pólos: uma guerreira desvairada em sonho; uma ostra acordada.
Lá em casa, ninguém estranhou muito... eu costumava ter umas fases assim. Meio ostra.
Li em algum lugar que os Amparadores utilizam-se de projetores encarnados quando precisam de energia humana - como acredito que tenha sido o caso que contei em Mix. Se algum daqueles sonhos foi uma projeção astral... acho que não fui de muito auxílio naquela noite...
Depois de passar um dia mergulhada em meus pensamentos, fazendo minhas coisas como uma autômata, fui na tarde daquele domingo ver minha amiga Deguinha pois um outro amigo iria nos visitar. Albert.
Deguinha parecia interessada no Albert. Ele era um moreninho muito lindinho. Quase um índio, com sua pele cor de jambo. Eu aproveitaria sua visita para dar uma força aos dois, ou como dizem, colocar o cara "na fita" dela.
Albert e eu compartilhávamos um segredo. Ele também era agnosto... estranho.
Um dia, quando nos encontramos numa festa, ficamos conversando e acabamos por descobrir nossa natureza em comum.
Éramos parecidos em sonho. Não que ele tivesse um avatar como no meu caso, mas alguns de seus sonhos se manifestavam na vida real. As vezes, mesmo acordado, ele entrava em transe espontâneo... Médium, por assim dizer...
Infelizmente, não nos viámos com muita frequência de modo que não pudemos aprofundar nossas descobertas juntos. Mas mesmo assim, era ótimo quando tínhamos a oportunidade de nos encontrar.
Quando cheguei à casa de Deguinha, ele já havia chegado e encontrei os dois sentados na calçada. Velhos costumes adolescentes demoravam para sumir...
Sentei também e abracei os amigos. Começamos a conversar. Eu havia levado as fotos que havia tirado na última quinta-feira no IF.
Naquele tempo, ainda usávamos câmeras fotográficas de filme.
Como haviam sobrado exposições do filme comprado para o Carnaval, meu pai me perguntara se eu não queria utilizá-las para ele poder levar a câmera para revelar no dia seguinte. Não pensei duas vezes. A levei para o IF e tirei várias fotos dos amigos. Incluindo o Lino, claro! Foi uma tarde bem legal.
Eu gostava em especial de uma em que eu, o Zé e o Lino fazíamos pose de gangsters em frente a porta da copa.
Deguinha, ao olhar para as fotos, intuiu que eu finalmente havia admitido meu interesse pelo Lino. Quando confirmei - conformada - ela se inclinou, começou a rir e a me dar tapinhas.
-- Eu sabia!!! - se gabava ela - Eu sabia!!! - e estapeava meu ombro - Tá apaixonada!!!
Albert estava entre nós duas e sofria os tapinhas também.
-- Ei! Será que alguém pode me explicar o que está acontecendo? - reclamou ele.
Narrei os fatos rapidamente e acrescentei as ocorrências da semana (Deguinha riu muito com a estória do fantasma). Contei como me sentia e como estava sendo difícil lidar com aqueles sentimentos. Os amigos me ouviam com benevolência.
Quando pausei, Albert comentou:
-- Você tem que se declarar pra ele.
Franzi a testa e resmunguei:
-- Ai, Albert... Eu sou moderna, mas nem tanto. - olhei para o chão - Não tenho coragem pra isso... - balancei a cabeça - Não consigo...
-- Consegue sim. - disse o Albert num tom incisivo.
-- Que nada... - gesticulei - Eu vou acabar levando um fora do cara...
Albert se abaixou para achar meu olhos e declarou:
-- Você sabe que não vai.
Hum... - pensei. - Entonação e frase familiar... - me deu um estalo e foi aí que eu lembrei do sonho. Minha cabeça foi se erguendo devagar na mesma proporção em que a ficha caía.
Eu olhei dentro de seus olhos. Estava suspresa. Ele deve ter estranhado a minha cara, mas mesmo assim sorriu.
-- Que foi? - perguntou.
Eu estava sem ação e ele interpretou isso como incredulidade:
-- Você acha que vai levar um fora. Pois eu te digo que não vai. - sorriu e pôs a mão em meu ombro - Depois de tudo que você me contou, eu posso afirmar que esse cara tá a fim de você também. Vai por mim! - deu uma piscadinha.
-- Eu concordo! - exultou Deguinha
Eu olhei para a cara de Deguinha e de novo para a dele. Meus olhos sorriram. Os dois estavam ali me dando a maior força. Como bons amigos, estavam me dizendo o que eu queria ouvir... o que eu precisava ouvir. Mas não era só isso. Pra mim, Deus..., os anjos... os Amparadores... - o que quer que fosse de bom que me guiava - estava usando o Albert para dar um recado: eu não devia desistir.
Eu sorri.
Meu humor mudou drasticamente. Em alguns minutos eu estava brincando e zoando como sempre. Acabei por fazer meu papel de cupido, e ajudei Deguinha. Saí de lá estrategicamente após meia hora, deixando-os sozinhos.... Não queria segurar vela...
Naquela noite em minha cama peguei o envelope com as fotos e as olhei de novo.
Da primeira vez que as olhara, elas me causaram uma dorzinha no peito - Pra quê eu teria uma foto daquele garoto? Pra sofrer mais?- e eu já estava arrependida de tê-las tirado.
Mas agora era diferente. O IF e os amigos retratados ali eram um aspecto muito querido da minha vida. Eram meu aprendizado. De trabalho e de amor. Me faziam feliz.
E o Lino? Ah, o Lino...
Esse... - eu poderia até quebrar a cara depois... - mas ele seria meu!!!
Dormi bem naquela noite.
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Na segunda-feira resolvi botar minha decisão em prática.
Não tinha a menor ideia de como faria aquilo, mas tinha resolvido deixar o garoto perceber meu interesse por ele. Eu não conseguiria esconder aquilo de qualquer modo mesmo... Eu sabia que parecia patética aos olhos mais espertos.
Estava ciente também que o momento não era o mais oportuno para falar de namoro com ele, posto que ele tinha desmanchado um relacionamento recentemente.
Mas eu não queria pensar muito naquilo.
Eu queria era acabar com aquele sentimento platônico. Queria acabar com aquela sensação de limbo... Ou ele diria que sentia algo por mim ou me punha pra escanteio de vez... (Eu iria ficar com o coração partido - pela primeira vez - mas ainda era melhor do que ficar suspirando aqui e ali por ele.)
Assim, quando cheguei ao IF, a primeira coisa que perguntei quando me acomodei em minha cadeira foi como tinha sido o fim de semana dos rapazes. Usei um tom bem casual.
Não me lembro o que ambos responderam, mas a frase seguinte foi:
-- E você Lino? Voltou pra namorada? - perguntei sem olhar pra ele.
Eu tinha que me certificar de que o caminho ainda estava livre. Sabia que um fim de semana era tudo o que uma garota precisava para voltar para um namorado reticente. Basta um bilhetinho, um recado, uma ligação, um charme, e um cara interessado volta correndo.
Os meninos estavam dando baixa numa leva de livros acumulados da última sexta. Zé anotava a estatística, Lino carimbava. Peguei um livro ao acaso. A resposta do Lino me agradou tanto quanto me confundiu:
-- Não... - disse muito tranquilamente - As coisas são mais complicadas do que parecem...
Sorriu com o canto da boca, pegou mais um livro e, com aquela calma peculiar, retrucou:
-- E você? Ficou com alguém?
Caraca... ele pensava rápido. Por que ele queria saber? Abri o livro e tirei a ficha para carimbar.
-- Não... Fiquei só. - repondi ainda casual. Carimbei a ficha e joguei o livro na pilha dele - As coisas são mais complicadas do que parecem. - alfinetei.
Na outra cadeira, Zé parecia alheio ao nosso diálogo.
Peguei outros livros e tirei as fichas para carimbar a devolução, - naquele tempo era tudo na base manual... Hoje essa atividade é automatizada - minha cabeça processava o que ele havia dito.
Ele ainda estava só. Mas o que isso significava na verdade?
Se ele fosse um tipo expansivo, ele poderia comentar com os amigos que estava sofrendo, que queria que ela voltasse, que o tempo longe dela estava sendo difícil, ou, ao contrário - e para minha alegria - que ela era uma galinha, que ele tinha ódio dela, que não queria vê-la nunca mais e que estava procurando um novo amor.
... Isso se ele fosse um tipo expansivo. Mas ele era o Lino.
Estava distraída com esses pensamentos quando notei a pequena adição à decoração de nossa bancada de trabalho.
Na última sexta-feira, num momento solitário na recepção - os rapazes arquivando - eu, entediada e deprimida, senti necessidade de rabiscar e resolvi ampliar a imagem da onça-pintada que figurava na capa da minha agenda.
Fiz à lápiz para dar os efeitos de luz e sombra, e acrescentei alguma vegetação ao desenho original. Eu gostava muito de desenhar e o fazia razoavelmente bem quando minha paciência estava em alta. Quando terminei, deixei o desenho sobre o balcão. Já era hora de ir e não tinha dado muita importância àquela pequena obra de arte... até ali.
Peguei o quadrinho nas mãos e olhei o que tinham feito.
Meu desenho havia sido colado num papel cartão grosso com apoio atrás para ficar em pé; adornado com papel silueta laranja nas bordas, formando uma moldura, e plastificado em toda superfície com papel contact.
-- Ai... Que fofo! - falei sorrindo - Quem fez isso?
Eles olharam pra mim também sorrindo.
-- Foi feito a quatro mãos. - respondeu o Zé - Eu fiz a estrutura e Lino, a moldura e a plastificação.
Eu olhei para os dois com ternura. Eu tinha largado a folha por lá. Eles poderiam, simplesmente, tê-la jogado no lixo...
-- Obrigada pela consideração... Tô até me sentindo uma artista. - brinquei emocionada.
Baixei o quadrinho de volta à bancada baixando também os olhos:
-- Vou sentir falta daqui quando meu estágio acabar... - completei com uma pontinha de tristeza na voz.
Essa era outra questão que estava me deprimindo. O fim do estágio.
O mês de abril se iniciaria ainda naquela semana. Meu estágio no IF iria até a primeira semana de maio. Assim, aquele seria meu último mês por lá. Penso que a sensação de tempo se esgotando contribuíra também para meus pesadelos.
-- Mas você pode renovar, não pode? - perguntou Lino, e ele se inclinou para achar meus olhos quando fez isso.
Eu olhei pro lado, admirando aqueles olhos puxadinhos, mas estava triste. Eu não renovaria o estágio no IF. Poderia até não sair do Fundão, indo para outra biblioteca por ali. Mas não ficaria mais quatro meses no IF. Eu ainda tinha meu "glorioso plano", lembra?
Ficar no IF não seria bom para minha carreira, e mesmo o que eu sentia por Lino não seria o suficiente para me demover de minhas metas. Eu ia limitar meu aprendizado ficando ali. Eu precisava conhecer outros centros de pesquisa e outras bibliotecas. Tinha que variar minhas experiências.
-- A Unirio não costuma renovar com a mesma biblioteca... É bom que tenhamos outras experiências... - respondi. Não queria falar de minhas prioridades ali...
-- Ah... Tem razão. - Ele se virou e continou fazendo seu trabalho, mas seu semblante parecia... preocupado?
Eu não queria pensar muito em minha saída do IF - ficar longe do Lino - então voltei ao trabalho também, meu semblante refletia o dele agora.
Enquanto dávamos baixa e ordenávamos os livros no carrinho para serem levados ao acervo, um grupo de alunos entrou e Lino foi dar-lhes atenção. Eu e Zé ficamos organizando o restante.
Peguei a folha de estatísticas e fui contabilizar as somas anotadas por ele. Meus cabelos cairam em meus olhos quando me inclinei. Os joguei para trás. Notei que haviam mais números na planilha do que livros no carrinho e estranhei.
-- Zé? Você já havia guardado alguns livros dessa leva? -perguntei.
-- Não... estão todos ainda no carrinho... Por quê?
-- Estão faltando livros... - eu olhava a folha e recalculava. Não era um gênio da matemática, mas qualquer um notaria que a soma não batia...
Os cabelos me incomodaram de novo. Juntei tudo com as mãos, embolei e joguei para o lado esquerdo. Se continuassem atrapalhando meu raciocínio pegaria uma caneta e, à moda oriental, daria um nó naquela juba!
Nesse momento Lino voltou ao balcão.
-- Lino... - perguntei sem olhar pra ele - Você guardou algum livro antes de anotá-los aqui? - e quiquei a caneta no papel.
Estava distraída tentando ver a solução na planilha quando senti a respiração do lado exposto de meu pescoço. Gelei.
-- Você contou com aqueles que foram direto para a sala da Nini? - falou ele devagar. A voz rouca - Quando cheguei, a Nini me pediu para...
Eu já não estava ouvindo a explicação. Tinha me perdido.
Lino apoiara o braço esquerdo no encosto de minha cadeira num quase-abraço se inclinado para ver a folha por sobre meu ombro direito. Muuuito perto. Aquela voz de locutor de rádio fluindo ao pé do meu ouvido, seu calor irradiando em minha face... O que ele estava querendo? Me provocar!? ...Conseguiu!
Prendi a respiração, girei a cabeça devagar e olhei pra ele por baixo dos cílios. Ele ainda falava. Seu rosto estava a milímetros do meu. Se ele se virasse, me beijaria. Emudeci, absorta.
-- Êeeeh! Com um olhar desses eu entregava os pontos, mermão! - exclamou o usuário que se materializou ali na bancada para devolver um livro.
Eu praticamente pulei na cadeira! Meu rosto vermelho de imediato!
Nós nos ajeitamos. E apesar de eu achar que a vergonha era só minha, notei que ele também se sentiu flagrado. Seu rosto corou também. Disfarçávamos.
-- Qual é, cara!? Que isso!? Para de palhaçada!!! - eu exagerei gesticulando e rindo sem graça.
-- Imagina se... - disse Lino ao mesmo tempo em que eu falava.
Zé riu da nossa reação e levantou-se para atender ao usuário que sorria.
-- É... Esses dois aí não se decidem. Ficam nesse chove-não-molha. - comentou ele pegando os livros do moço.
Eu murmurei alguma coisa em minha defesa mas deve ter soado como a mentira que era. Constrangida. Eu queria que o Lino notasse que eu estava interessada nele, mas não assim... tão rápido... e não todo mundo!
Estava surpresa com o Zé também. "Esses dois", ele dissera. Será que ele sabia de alguma coisa que eu não sabia?
Era melhor eu sair dali... Eu era patética mesmo... Ridícula! Idiota!
Peguei a planílha e fui para a sala de Nini ver se os benditos livros estavam mesmo por lá.
Passei "batida" pelo acervo - seria assim até o fim do estágio - e entrei na sala de Nini. Ela me mostrou os livros e eu os contei. É. Completavam os cálculos. Ainda bem que hoje isso tudo é feito por computador...
Voltei para o balcão. Meu ânimo normal o suficiente para dar as caras. Pensei ter ouvido algum burburinho antes de entrar na recepção, mas os meninos estavam quietos quando cheguei... ou se calaram na minha presença. Desconfiei mas deixei essa passar.
O tempo passou normal - se é que éramos um trio normal... - e no final do dia o Zé me convidou para tomar um café, no que aceitei.
Entramos na copa. A porta entreaberta. Nos servimos e sentamos.
Depois dos comentários sobre os biscoitos moles e o café ralo, achei que o ambiente seria seguro o suficiente para sondar o Zé.
--Zé... - comecei casualmente.
--Hum... - sua boca mastigava uma bolacha.
-- Zé... Você acha que o Lino está sofrendo muito pela ex-namorada? - olhei para a xícara e para ele.
Ele me olhou, sorriu travando os lábios e respondeu no mesmo tom:
-- Pelo que ele me disse, ele está lidando bem com a situação... Eles brigavam muito... - e pegou outra bolacha.
Zé não era do tipo fofoqueiro. Eu mesma o teria classificado como "tímido" se não tivesse conhecido alguém mais quieto que ele.
Tomei um gole do meu café. Quando pousei a xícara continuei.
-- Você acha que ele quer voltar pra ela? - ainda casual.
-- Não sei. - pausou - Ele não me disse nada...
Ele bebeu mais um gole de seu café e sorriu:
-- Você gosta dele, não é!? - perguntou à queima-roupa.
Minha máscara caiu e acho que meu rosto ficou mais quente que o café.
Tirei as mãos da xícara e apoiei no colo. Ia esconder o quê? Suspirei.
-- É. Estou gostando dele. - respondi retorcendo os dedos. Eu tinha dificuldade de assumir sentimentos. Meu leitor já deve ter notado isso. Devo ser assim até hoje...
Ele riu baixo.
-- Eu já desconfiava. - apontou com o biscoito pra mim. Eu olhei. - Eu acho que ele gosta de você também.
-- Você acha? - eu fiquei feliz... mas pensei que ele tinha alguma certeza pra me dar...
-- Você sabe que ele não é de falar muito... - e mordeu o biscoito.
Rolei meus olhos. Isso, todo mundo já sabia...
Zé continuou:
-- ... Mas peguei ele olhando comprido pra você algumas vezes quando você estava distraída... e teve o dia em que você faltou e ele ficou resmungando toda hora em como o dia estava chato... e depois de hoje cedo... - sorriu com malícia - ...quando ele quase beijou seu pescoço... - e riu.
Eu ri também, meio envergonhada.
-- Quando você saiu da sala, - continuou - ele veio reclamar comigo de que você não ia gostar de piadinhas envolvendo vocês dois... Pra mim ele gosta de você mas tem medo de levar um fora. - apoiou os braços na mesa.
-- Levar um fora? - fiz uma pergunta afirmativa, não estava entendendo bem.
-- É, Alya. - ele gesticulou - Você tem esse jeito brincalhão... tá sempre zoando... - sorriu - E ele é caladão. Você sabe... Fica difícil saber quando a coisa é séria ou quando é brincadeira... por parte dos dois.
Eu não tinha pensado naquilo. Meu jeito de levar as coisas. Como eu me mostrava aos outros. Acho que tinha ido muito bem na intenção de disfarçar meus sentimentos, afinal... E eu achando que já dava muita bandeira sobre o que sentia. Ou eu era uma boa atriz... ou ele era muito lerdo... ou as duas coisas.
Bem... o Zé sabia tanto quanto eu... Nada muito novo...
Suspirei, balancei a cabeça e olhei de novo pra ele.
-- Zé... Eu gostaria que você não comentasse nada disso com ele... - como eu ia explicar minha confusão? - As coisas estão muito nebulosas... E eu queria que ele... quer dizer.... eu queria que eu...
-- Ei, ei... - me interrompeu - Tudo bem, tudo bem! - sua mão tocou meu braço e me acalmou - "Eu não sei de nada". Está bom assim?
Sorri e assenti. Zé era um cara muito legal.
Quando voltamos para o balcão, Lino estava ocupado com um usuário. Pensei ter visto um olhar desconfiado pairando no rosto dele quando nos sentamos mas nessa hora entrou mais gente na biblioteca e nos distraiu.
Não encontrei Lili na saída daquele dia. Então minha viagem de volta pra casa foi um ruminar de pensamentos incessantes.
Puxa... Como tudo aquilo era estranho... Em outros tempos eu simplesmente namorava ou não com alguém.
Se o cara não desse sinais de interesse por mim, eu mudava de objetivo e pronto. Não me importava em não ser correspondida... Sem dor. Ficava chateada e tal, mas sem dor. Nenhuma. O mesmo ocorria ao contrário. Se um garoto gostasse de mim e eu não tinha interesse nele, problema do cara... Eu não estava nem aí!
Agora tudo parecia um drama. Um melodrama. Uma novela mexicana! Daquelas bem piegas...
À noite, os pensamentos ainda estavam borbulhando, mas meu coração estava mais alentado.
Eu sabia o que queria. Eu havia me decidido. Graças a ajuda de meus amigos. Meus redentores.
Balancei a cabeça e suspirei. O que fazer então...?
Tentei dormir. O sono chegando. Fechei os olhos e pedi a Deus para me ajudar a lidar com aqueles sentimentos.
... e meu Senhor respondeu.
Permitam-me contar...
(Continua)
Quarta-feira.
Quando acordei tive a impressão de que esse dia seria mais insuportável que o anterior.
Não estava errada.
Na faculdade fiquei sabendo que teria que voltar a Urca à tarde para uma reunião de última hora. Ótimo... estava crente que teria aquela semana para me acostumar a ser indiferente com o Lino...
Depois fiquei sabendo que as "Irmãs Tenebrosas" estavam fazendo estágio no campus do Fundão - elas tinham este apelido por serem conhecidas como as encrenqueiras (e fofoqueiras) da minha turma. Uma estava perto de Lili, no CCMN, e a outra perto de mim, na Química. Ótimo... Teria que tomar cuidado com a amizade delas...
Até as aulas, geralmente agradáveis, foram insuportáveis. Tínhamos um professor que nunca estava totalmente sóbrio quando dava aula... Ele vivia mascando balinhas de gengibre para disfarçar o bafo alcólico e naquele dia, eloquente que ele era, um fragmento da balinha voou e colou no meu braço, eca!... Ótimo! Todo mundo riu de mim.
Depois de viajar em pé, me despedir da Lili e comer num trailer barato, segui para o IF.
Quando cheguei no saguão senti um clima diferente no ar.
O Zé não estava presente e Lino, que tinha me dado um "boa tarde" sério e frio, rabiscava num bloquinho sobre a bancada.
Estranhei.
-- Cadê o Zé? - perguntei após ter guardado minha mochila e assinado meu ponto.
-- Ele não vem hoje. Tem seminário. - respondeu Lino ainda rabiscando cabisbaixo.
Menos mal. Zé estava bem.
Estávamos a sós no balcão, e normalmente aquilo me incomodaria. Mas Lino não parecia mesmo estar bem e aquilo me incomodava ainda mais.
Sentei em minha cadeira de sempre e inclinei buscando o rosto dele:
-- Que cara é essa, Lino? - perguntei tentando não parecer intrometida - Você está bem?
Ele continuou rabiscando.
-- Estou bem, Alya. - mentiu ele.
-- Não parece... - insisti mesmo com medo de levar um fora - Não quer falar...? - não consegui evitar pousar minha mão em seu braço. A recolhi.
Ele pensou. Finalmente olhou pra mim, suspirou e largou a caneta. Parecia constrangido, mas resolveu falar:
-- Minha namorada e eu tivemos uma briga... e ela foi embora... - falou hesitante.
Sabe quando você corta o dedo com papel? Algo tão fino que você fica imaginando como pode ser tão dolorido? Pois é... Foi como eu senti o que aquela frase fez com meu coração... um papercut.
Ele tinha namorada... e estava sofrendo por ela. E esse "foi embora"? Eles moravam juntos? Não tive coragem para perguntar...
Minha aura mudou de cor.
-- Ah... puxa.... Como você está? - perguntei controlando minha expressão.
Ele apertou os lábios e deu de ombros.
-- Não foi nossa primeira briga... Ela é muito possessiva. - balançou a cabeça - Nosso relacionamento já estava estremecido...
Apesar de estar enamorada dele, eu fiquei triste porque ele estava triste. Me lembrei das vezes em que tinha terminado com alguém e do clima ruim que era. Imagine se ele estivesse mesmo apaixonado pela moça? Não gostei de ver sua dor...
Eu queria confortá-lo... talvez abraçá-lo... Me contive:
-- Ela volta... - eu sorri complacente. Quem não voltaria pra ele? - Confie em você.
Ele riu sem graça.
Olhamos para a frente. Ficamos em silêncio. Eu não sabia o que dizer e ele ruminava seus pensamentos.
-- Sabia que uma vez eu e uma garota desmanchamos porque nós falávamos pouco? - ele disse sem mais nem menos. Eu olhei e ele sorriu tristemente - Ficávamos um olhando pro outro calados. Daí concluímos que era melhor acabar com o namoro. - e riu.
Eu ri com ele, mas era óbvio que ele estava mudando de assunto. Não queria me dar detalhes sobre o relacionamento dele ...
Eu respeitei sua privacidade e até gostei do tópico mais leve. Consolar ele por outra garota não era algo que eu conseguiria fazer sem parecer um pouco falsa...
Eu não podia negar que o fato de saber que ele estava só mexia comigo... As perguntas começavam a pipocar na minha cabeça: será que eles voltariam? Será que o coração dele estava muito machucado? Será que eu poderia ter alguma chance?
-- Você tem namorado, Alya?
Essa me pegou de surpresa.
-- Ãh? Eu?... Não...não. - respondi. Por que ele queria saber? Me compararia ao relacionamento sério dele? Me achava muito jovem? Inexperiente? - ... Eu fiquei com um garoto no Carnaval... - já arrependida - ...Mas foi só passatempo.
-- Ah... - e voltou a olhar para seus rabiscos.
Eu olhei pro nada... era melhor procurar o que fazer...
-- Você tem muitos "passatempos"? - ele perguntou isso sorrindo mas olhando para seu bloquinho.
Muitos. -- Ãh... Não. Não muitos. - estava meio sem jeito, mas aí veio uma pontinha de coragem - ... Eu ainda estou procurando um par... - ... de preferência japinha com furinho no queixo...
Ele me olhou: -- E Marconi?
Mais surpresa agora.
-- Que tem ele?
-- Vocês... - e balançou as sobrancelhas.
De onde ele tirou aquilo?
-- Não. - respondi - Nós somos apenas amigos.
-- Ah... - e fez uma expressão de "Não é o que dizem..."
-- Que foi? Acha que estou mentindo? - eu estava me zangando.
-- Não, não. - olhou pra frente - É que vocês são tão parecidos...
-- ???
Ele me encarou:
-- Vocês são tão ativos... eloquentes... líderes... Guerreiros, por assim dizer. - ele sorria com o canto da boca - Estão sempre juntos lá na faculdade...
Eu gostei do elogio. Mas isso não fazia de mim namorada automática do Marconi...
-- Ah... - desviei os olhos - É. Somos parecidos neste sentido. - sorri - Mas ele tem muitas namoradas... - rolei os olhos - E eu não quero ser mais uma na coleção dele...
Rimos juntos.
Esse era um dos motivos do porque Marconi não me interessava. As garotas viviam cercando ele... e ele pegava todas. Acho que tinha a ver com sua liderança no D.A. Ele era realmente muito carismático. Atraía todos a sua volta.
Eu até o admirava. Nosso relacionamento era muito bom. Mas não conseguia me imaginar namorando ele... Além disso ele não fazia meu tipo físico - loiro de olhos azuis. Naquele momento eu estava preferindo os niseis, sanseis...
Lino meneou a cabeça:
-- E eu sou um desastre com garotas... - sorria, mas parecia constrangido - Sempre acabo estragando tudo...
Olhou para longe. Algo passou pelos seus olhos, e seu sorriso sumiu.
-- Ei...! - chamei tocando seu braço novamente. Droga! Controle-se! Tirei a mão - Não fica assim, não... - sorri - Essas coisas passam... Você é um cara muito legal... - e involuntariamente procurei seus olhos - Se ela não voltar, vai estar cometendo um erro...
Ele me encarou num olhar indecifrável.
Eu fiquei sem jeito e tive que quebrar o clima estranho:
-- Além disso... - disse desdenhando - Quem mais poderia aturar esse seu jeito esquisito? Só ela mesmo... - e eu...
Nós rimos de novo.
Ele parecia mais animado. Ótimo... ter que consolar o cara que queria sobre outra garota que, na melhor das hipóteses, era minha rival...
Que dia!
Os usuários foram chegando e nos distraímos com o trabalho.
Éramos bons nisso. Trabalhávamos em equipe. Enquanto um dava baixa, o outro colocava no carrinho, enquanto um fazia a estatística o outro ordenava as fichas...
Houve um momento em que Lino resolveu arquivar as obras devolvidas. Eles, o Zé e ele, estavam evitando que eu fosse ao acervo, imaginei eu, por causa da minha... ãh... sensibilidade.
Um usuário devolveu um livro. Me levantei, o peguei e o pousei sobre a bancada perto das coisas do Lino. O usuário saiu me dizendo "até logo", mas eu mal ouvi. Meus olhos estavam sobre aquele bloquinho que o Lino estava rabiscando.
Tentei ler mas não entendi nada. Caligrafia feia e palavras desconhecidas.
Peguei o bloquinho e o aproximei do rosto. Não estava em português... apertei os olhos.
-- É um mantra. - disse Lino na minha nuca.
Abafei o grito com um arquejo. O bloquinho quase caiu.
-- Ai, Lino!!! Que susto! - exclamei virando-me para ele com a mão no peito. - Aparecer assim do nada, pô! - respirei. Ele estava tão próximo de mim! - Um mantra!? - perguntei para disfarçar.
Na época eu tinha uma vaga ideia do que seria um mantra.
-- É. É um fragmento de um mantra budista. - ele tinha um sorriso no canto da boca - Uma espécie de oração...
Eu me virei e sentei em minha cadeira.
-- Você é Budista? - perguntei.
Religião era um tópico que ainda não tínhamos conversado. O Budismo podia explicar muitas coisas nele... principalmente o silêncio. Mas naquela época eu não conhecia bem essa filosofia.
-- Eu costumo frequentar um templo... - disse sentando-se ao meu lado - Mas não sou exatamente um budista... - sorriu - Gosto de ir lá pois me sinto em paz por lá.
-- Ah... - fiquei imaginando que tipo de paz ele precisaria. Empurrei o bloquinho que ainda estava em minhas mãos pela bancada para ele.
Ele olhou para o bloco e olhou para mim.
-- Você segue alguma religião? - perguntou
-- Não. Quer dizer... Temos uma formação católica e tudo, mas não frequentamos nenhum templo ou igreja... - respondi incluindo minha casa - Minha família é muito eclética... - só Deus sabe o quanto...
-- Ah... - ergueu as sobrancelhas. Ele tornou a olhar o bloco. Depois arrancou a página e colocou a folha na bancada, na minha frente - Fique para você.
Fiquei surpresa.
-- Pra mim!? - sorri - Valeu... - peguei a folha - Vou colocar em minha agenda.
Tive que desviar os olhos. Eles deviam estar brilhando com aquela pequena demonstração de afeto dele.
Reli o fragmento, mas ele só veio a fazer sentido anos depois, com o advento da internet.
"Myoho renge kyo
Hoben-pon Dai ni
Niji seson
Ju sanmai
Anjo ni ki"
-- Tenho que voltar a Unirio hoje... Você vai? - perguntei enquanto guardava a folhinha na agenda.
-- Vou sim. - levantou-se - Me espere. Vou resolver algumas coisas com Nini e depois saímos, ok?
-- Ok.
O humor dele estava visivelmente melhor. Não posso negar que o meu também estava. Acho que havíamos ajudado um ao outro naquela tarde.
Ele foi a sala de Nini Brantes e voltou com vária folhas.
-- Vou colocar estas cartas nos escaninhos. - disse passando pelo hall - Quando voltar, saímos.
Eu assenti.
Comecei a guardar minhas coisas. Eu tinha que prestar atenção pois eu sempre esquecia alguma coisa no estágio. Canetas, casaco, até meus cadernos eu já tinha esquecido...
Notei uma presença atrás de mim. Era Nini. Ela sorria enquanto pegava as folhas de estatística:
-- Já deu sua hora, não? - comentou ela. Eu já deveria ter partido.
-- Ah, sim. Mas estou esperando o Lino. Nós vamos para a Unirio... - respondi fechando o zíper da mochila.
-- Ele fica bem mais falador com você por aqui... - sorriu - Mais animado... - ela queria parecer natural, folheando a estatística, mas tinha uma expressão bem estranha no rosto.
Eu fiquei sem graça. Ela estava insinuando alguma coisa? Resolvi fazer piada.
-- Também pudera... Comigo falando pelos cotovelos e enchendo os ouvidos dele, ele tem que, no mínimo, me acompanhar. - e ri.
Ela riu também.
Lino voltou e após as despedidas, saímos.
Logo estávamos andando pelo campus. Conversávamos como dois bons amigos. É claro que eu falava mais, mas isso já não me era estranho pois ele me ouvia sorrindo.
Como na primeira vez, ele foi atencioso, me ajudando a subir e a descer da condução.
Nos alojamentos, tornamos a sentar naqueles banquinhos do jardim enquanto aguardávamos o Urca chegar.
A sensação de déjà vu continuava lá, mas este era o menor dos meus problemas... Ficar perto de Lino, a sós, ainda mais quando ele se sentava assim tão ao meu lado, começava a parecer um desafio muito grande.
Retornamos ao assunto sobre Religião.
Ele falou dos mantras, dos discos budistas, das outras pessoas que frequentavam o local...
Não havia como falar de minhas crenças sem falar de minha linhagem confusa. Eu tinha antepassados maternos ciganos espanhóis com católicos portugueses, bisavô negro e seus cultos afros e bisavó índia com pajés, fora os italianos católicos romanos por parte de pai... Enfim, era assunto que não acabava mais.
O ônibus chegou e fomos para o fim da fila. Lotou rapidinho. Dessa vez ele teve que viajar em pé. Droga!
Mesmo assim, de tempos em tempos, ele se inclinava para fazer ou ouvir algum comentário meu.
Nenhum dos dois falou sobre namoros ou namorados. Acho que não queríamos falar sobre o assunto que chatearia aos dois...
Com aquela conversa fluída, chegamos à Unirio rapidinho.
Antes de subir para o DA, finalmente tive coragem para me despedir do Lino à moda carioca. Beijei-lhe o rosto rapidamente e murmurei um "tchau". Não tive coragem de olhar de novo - subi as escadas apressadamente. Eu já tinha passado dos meus limites...
Na sala, cumprimentei os amigos e abracei Marconi fraternalmente. Não nos víamos desde antes do Carnaval. Foi bom ver aquela alegria toda. Leandro também estava lá. Estava lindo, mas eu o tratei com a maior frieza que a educação permitia.
A reunião foi rápida. Em uma hora já estava saindo do campus. Não precisava de companhia. Estava segura sobre o trajeto tranquilo e o sol tinha acabado de se pôr.
Assim, imagine minha surpresa quando Leandro emparelhou comigo quando eu passava pelos portões da faculdade.
-- Oi.
-- Oi. - respondi sem diminuir o passo.
Notei que ele estava sem mochila ou cadernos, o que concluí que ele estava ali só para falar comigo.
-- Er... Você me desculpa pelo nosso último encontro? - perguntou com um sorrizinho cínico.
"Encontro"... Humf!
-- Tá desculpado. Mas não gosto que venham me agarrando.... - fui grossa. Continuei andando.
Ele riu para si mesmo. Era um tipo muito seguro de seus encantos.
-- Você é muito gata... Eu não resisti.
Mentiroso, ainda por cima!
-- Tá... Foi engraçado... Mas não faz mais isso, ok? - e continuei andando. Não olhava para o lado.
Ele tocou meu ombro e paramos. Tive que olhar. Ele fez uma cara querendo parecer sério.
-- Podemos ser amigos, hein?... Me desculpe. - e sorriu descarregando o poder de seus lindos olhos verdes...
Eu suspirei.
-- Tudo bem. - quem iria ser inimiga de um gatão daqueles? - Amigos. - sorri um pouquinho.
Ele sorriu satisfeito.
-- Tenho que voltar para a aula...
-- Tá. - já vai tarde...
Ele se aproximou, segurou-me pela nuca, beijou minhas faces e se foi.
Petulante...
Peguei meu ônibus.
Enquanto ele avançava pelo Aterro eu revisava meu dia.
Que dia!
Abri a agenda e reli o mantra que Lino me dera.
Se não fosse o fantasma da ex-namorada dele me assombrando, aquele presentinho teria muito mais significado...
(Próximo capítulo)
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Depois do almoço avancei apressada pela enorme escadaria do hall do CT e depois pelos corredores do Instituto de Física.
Quando entrei no saguão da biblioteca e vi o Zé e o Lino no balcão, senti alegria...e alívio. Tudo estava em seu lugar. Sorri.
-- E aí, rapazes! - saudei.
Eles me sorriram.
-- Puxa, você está preta, garota! Foi a praia!? - saudou-me Zé.
Eu ri. Avancei pelo bequinho do balcão e beijei as faces do Zé. Depois, com naturalidade, dei outro passo e beijei as faces do Lino. Era a primeira vez que beijava-o. Eu me sentia vermelha...
Como era de praxe, começamos a tagarelar... quer dizer, eu e o Zé começamos a tagarelar.
Lino prestava muita atenção mas falava pouco. Como fui gostar desse cara?
Falei da praia, do toboágua, do churrasco, do bloco, da caipifruta, da minha sandália que arrebentou, do primo que me derrubou suco, do confetti que caiu nos meus olhos, falei de tudo... menos de Rafael, claro.
Zé falou do retiro que fizera com sua igreja, do local, das caminhadas, dos amigos...
O Lino... bem, o Lino se limitou a dizer que tinha passado bem, que bebeu um pouco e que foi dormir tarde todos os dias.
Entre um tópico e outro fazíamos um atendimento.
Eu tentava ao máximo ignorar como eu me sentia em relação ao Lino agora. Acho que foi por isso que falava tanto... Me distraía.
Estava difícil controlar meus olhos para vê-lo com espontaneidade sabendo o que eu sabia. Que estava enamorada dele... Não conseguia encará-lo. Tinha medo que ele visse a verdade no meu olhar como Deguinha e Lili viram.
Mesmo meus olhares furtivos estavam diferentes. Me peguei reparando na forma como ele movia os lábios enquanto falava com o Zé. Sua boca, como a maioria dos orientais, era perfeitamente desenhada e os lábios eram cheios... pareciam macios...
É melhor eu sair daqui! - concluí.
Peguei alguns livros que estavam sobre o balcão e os empilhei.
-- Já fez a estatística destes aqui, Zé? - perguntei arrumando a pilha no carrinho que ficava encostado na parede.
-- Já sim, Alya. Vai arquivá-los? - respondeu girando na cadeira para me olhar.
-- Vou sim. É melhor não deixar acumular... - ...e é melhor eu sair daqui antes que o Lino perceba que estou caidinha por ele...
Empurrei o carrinho e segui para a porta dupla que separava o saguão e o acervo.
O acervo era um salão comprido. Devia caber quase umas duas quadras de volei dentro dele.
As estantes eram dispostas no sentido do comprimento formando uns seis corredores estreitos e perpendiculares ao corredor central em que eu estava.
Era um daqueles momentos em que o acervo ficava vazio. Naquele horário os alunos estavam em suas classes.
Mesmo naquela amplidão, eu ainda ouvia o burburinho dos rapazes conversando no balcão de atendimento, Nini Brantes falando ao telefone (o escritório dela ficava no fundo do salão) e de seu Manoel guilhotinando papéis (sua sala vivia fechada por causa do barulho, ficava do lado oposto do salão).
Eu empurrava o carrinho que fazia aquele barulhinho monótono de rodinhas sobre assoalho.
Olhei os livros que tinha que guardar e verifiquei os códigos em suas lombadas. Classe 539... Hum... Deve ser no corredor quatro, lado esquerdo... - pensei - e empurrei o carrinho para lá.
Passei pelo corredor um, passei pelo corredor dois...
Quando passei pelo corredor três, vi um senhor de pé de frente para as prateleiras. Estava a alguns metros de mim, mas dava para ver que podia ser um médico. Todo de branco: usava um jaleco de botões até o pescoço, calça e sapatos brancos. Folheava um livro tranquilamente.
Oh... O acervo não estava tão vazio, afinal.
Avançava para o corredor quatro, quando me lembrei de alertar àquele senhor para não repor a obra consultada na estante - tínhamos que contabilizar os assuntos...
Na mesma hora dei um passo para trás me esticando para olhar o corredor anterior de novo.
O homem sumira.
Franzi a testa. Como pôde? - pensei surpresa - Será que ele passou por mim? Teria ele dado a volta tão rápido sem que eu o visse ou o ouvisse naquela quietude? - eu sorri - Devo estar muito lerda mesmo...
Balancei a cabeça e voltei ao meu corredor de interesse...
E o homem estava lá.... no meio do corredor quatro!
Levei um segundo para realizar que só havia uma forma de ele ter chegado ali tão rápido sem que eu tenha visto... Atravessando as estantes!
Eu travei. Meus olhos se arregalam, meu coração bombou e os cabelos subiram!
Segurando o grito, simplesmente larguei tudo para trás e praticamente corri de volta ao balcão. Os meninos se assustaram com a maneira que eu empurrei as portas duplas e me joguei na cadeira entre eles.
-- Que foi, Alya!? Você está pálida! - perguntou o Zé sorrindo dubiamente.
Lino também se virou para mim. Inclinava-se para olhar meu rosto.
Eu apoiei os cotovelos na bancada e segurei minha cabeça com as duas mãos. Respirava apressada.
-- A-a-acho que vi um fantasma... - minha voz tremia - Um homem de branco... - respirei fundo - ...entre as estantes!
Eu achei que os dois iriam rir de mim, mas me surpreendi quando Lino, sem dizer nada, se levantou e foi para o acervo e o Zé, depois de balbuciar alguma coisa, foi a passos rápidos para a copa.
Não era a primeira vez que isso me acontecia.
Uma vez, eu tinha uns 14 anos, nós, minha família e parentes, voltávamos de Duas Barras, interior do Estado, quando minha mãe começou a sentir-se mal. Pressão alta.
Paramos num pronto-socorro para que ela tivesse atendimento. Eu fiquei no carro com minha prima, já adulta, e meus irmãos. Eles demoraram quase uma hora lá dentro.
Quando olhei para a escadaria do hospital e vi minha mãe e meu pai descendo por ela, notei que eles estavam acompanhados por um senhor de branco, médico com certeza.
Seria uma cena até natural - que alguém acompanhasse os forasteiros à saída - se não fosse o fato de o homem não ter imagem nenhuma dos joelhos para baixo... Transparente.
Eu olhei, pisquei e olhei de novo e conforme meus pais se aproximavam do carro a imagem do médico ia desaparecendo, até sumir por completo quando eles entraram no carro.
Eu estava cravando as unhas no braço de minha prima sem conseguir falar o que via e ela apertou a minha mão.
-- Eu estou vendo também... - falou ela calmamente quando viu o pânico em meus olhos. - Fique calma. - completou. Minha família é toda assim...
Essa era minha segunda vez. Houveram outras... talvez eu conte...
-- Não há ninguém no acervo... - comentou Lino quando voltou. A dúvida no rosto.
Eu, ainda sentada, bebia a água que o Zé me trouxera. Olhei atônita para a cara dos dois rapazes que me olhavam atônitos também.
Três medrosos.
De repente meu nervosismo explodiu em gargalhadas!
-- K-k-k-k-k! Eu vi um fantasma!!! - ria nervosa com a mão na boca.
Os dois não estavam preparados para minha reação. Entreolharam-se...
... e caíram na gargalhada também!
-- Ha-ha-ha! Você parecia uma vela!!! - ria Zé batendo em seus joelhos.
-- Só acontece com você mesmo, Alya! Ha-ha! - gargalhava Lino. Os olhos em riscos.
Rimos muito.
Ri de chorar. E se continuasse rindo perderia o controle e choraria de verdade...
Você deve estar achando isso muito estranho. Alguém rir de algo tão macabro. Mas eu já estava acostumada com essas estranhices e naquele momento, com meu enamorado ali e meu amigo, rir era a melhor maneira de extravasar a tensão... apesar de que acho que daquela vez eu consegui passar um atestado de 'maluca total'...
Depois que Nini saiu do telefone, ela veio ver o que nos arrebatara no balcão uma vez que o barulho estava impróprio para uma biblioteca. Contei o que vira.
Ela achou que eu estava brincando, mas nos contou que alguns alunos já tinham visto o fantasma do patrono da biblioteca por ali. O Plínio Sussekind. Nós rimos mais um pouco com essas estórias.
Foi bom ver o Lino rindo... Mesmo tendo eu levado um susto daqueles.
Ele tinha um sorriso encantador... dentes branquinhos... Ooops... Virei o rosto e parei de encarar.
Aproveitamos para falar de situações de medo... eu não contei nem 1% das minhas aventuras...
E passamos o resto da tarde assim.
Dei graças a Deus por, naquele dia, não ter tido reunião do DA na Urca.
Eu precisava de tempo para me acostumar à ideia de ter Lino por perto como a um amigo qualquer...
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No dia seguinte, depois de uma apresentação em uma matéria do curso, depois de ter contatado outras faculdades sobre a prévia do Encontro de Estudantes, depois de ter copiado matérias atrasadas e depois de ter narrado os insólitos acontecimentos do acervo e driblado Lili cordialmente sobre como estava suportando meu relacionamento amoroso unilateral-platônico, entrei na biblioteca do IF sorridente como sempre.
Estava todo mundo no balcão da recepção: Zé, Lino, Seu Manoel e Nini Brantes. Pareciam animados vendo algo espalhado sobre a bancada.
Perguntei qual era a novidade quando me acomodei na cadeira.
-- Chegaram os jalecos. - respondeu Nini Brantes - Fui informada também que nossa biblioteca passará por reformas. - comentou
-- Jalecos? - olhei as embalagens com as camisas azuis. Eu achava aquilo muito démodé, mas uma biblioteca não é o lugar mais salubre do mundo... -- Ah... Legal. Vou ter que usar também?
-- Não será preciso... só quando você for trabalhar no acervo. - respondeu ela - Aqui no balcão é limpinho.
Fiquei grata. Eu já me achava feia... imagine, feia, e de jaleco?
Nosso dia seguiu. Estava sendo movimentado. Uma palestra no IF havia impulsionado os alunos a procurar certos tópicos no acervo e a biblioteca estava no maior entra e sai.
Eu, Zé e Lino revezávamos no atendimento realizando os empréstimos, dando baixa nas devoluções e auxiliando na localização de títulos.
Lá pelas quatro da tarde, perto do meu horário de saída, bateu aquela fome. A biblioteca estava mais tranquila, então achei que uma paradinha não iria sobrecarregar ninguém.
-- Meninos, vou à copa comer uns biscoitos. - anunciei - Alguém quer me acompanhar? - completei torcendo para que Lino fosse.
-- Não, obrigada, Alya. - reponderam os dois.
Desapontada, mas ainda com fome, fui para nossa copa.
A copa era uma salinha no fundo do hall. Só cabiam um forninho elétrico e uma cafeteira sobre a pia; um armário de duas portas, um frigobar e uma mesinha de dois lugares com duas cadeiras.
Abri o armário e peguei alguns biscoitos de leite. Nós fazíamos uma vaquinha para comprar biscoitos todos os meses, de modo que sempre tinha alguma coisa comunitária lá para se comer. Bebi uma xícara de café requentado.
Quando saí de lá, encontrei o Zé todo atolado com uma pilha de livros. Não perguntei pelo Lino. Tinha que manter minha fachada de 'indiferente'.
-- Quer ajuda, Zé? - ofereci
Ele resmungou alguma coisa e continuou ocupado em anotar as devoluções.
Olhei a pilha e vi dois livros importantes os quais Nini estava aguardando a chegada.
-- Os livros do Feynman foram devolvidos! Vou levá-los para Nini...
O Zé estava tão concentrado na estatística que nem sei se me ouvira. Peguei os livros e fui para a sala de Nini Brantes.
Entrei no acervo, passei pelo corredor e avancei pelas estantes sem olhar para os lados. Ainda estava com medo de ver alguma coisa como no dia anterior.
Me dirigi para a sala de Nini. Essa ficava no fundo do acervo; era o que alguns chamam de "aquário" - uma divisória de vidro montada sobre estruturas de compensado.
Quando alcancei os vidros a claridade me iluminou e eu vi.
Que susto!!! Um homem sem camisa!!!
Soltei uma exclamação e do outro lado ele soltou uma também.
Levei um segundo para perceber que Lino estava provando os jalecos naquele espaço.
Baixei a cabeça no outro segundo, mas foi o suficiente para notar os braços fortes, o tórax coberto de pelos, e a pequena imagem escura tatuada no braço do rapaz.
-- Me desculpe!!! - exclamei. Estava mais vermelha que um pimentão.
Girei nos calcanhares - totalmente sem graça! - e cheguei ao balcão na metade do tempo que fizera pra ir. Me joguei na cadeira.
-- Que foi, Alya! Viu outro fantasma! - Zé estava alarmado.
-- Quase! - eu estava queimando - Me assustei com o Lino... - "assustada" não era bem a palavra...
Zé riu alto. Ele devia ter ideia do que me acontecera.
-- Seu bobo! - levantei da cadeira rindo totalmente ruborizada - Você podia ter me avisado!!! - eu ria de vergonha enquanto batia com os livros do Feynman no ombro dele. - Ai, meu Deus!!!
Ele começou a zoar da minha cara vermelha. Que ódio!!!
Depois de mais alguns tapas eu me acalmei.
A visão de Lino sem camisa só piorou minha situação. Eu já achava ele atraente... sem camisa... Irresistível.
A coisa ficou pior ainda quando Lino voltou ao balcão. Estava usando o bendito jaleco. Me olhava com um sorrisinho malicioso.
Eu já estava controlada, mas totalmente constrangida.
-- Você me assustou. - falou ele com aquela calma insuportável - Pensei que fosse um dos seus fantasmas... - sorriu e se sentou.
Tornei a ficar vermelha. "Meus fantasmas..." - Humf! - Moderei minha voz.
-- Ah... me desculpe. Ninguém me avisou que você estava lá...
Atrás de mim, ouvi o Zé disfarçar o riso dele numa tossida.
-- Desculpe a mim. - respondeu Lino - Eu devia ter ido ao toalete ou ao vestiário - ambos ficavam no corredor, afastados da biblioteca.
-- Que isso... foi nada... bobagem.
Eu estava mesmo sem graça, mas discrição nunca foi meu forte. Ele viu quando eu olhei para o braço dele aonde a tatuagem devia estar ocultada pela manga da camisa.
-- Você viu? - apontou com os olhos. Sorria. Suas faces coraram também.
-- Er... vi. - não consegui me segurar - O que é? - perguntei curiosa.
Ele estendeu o braço e arregaçou a manga da camisa. A pequena tatuagem ficava na parte interna de seu braço, próximo à axila. Era pouco maior que um boton.
Um dragão sinuoso em negro, verde e vermelho com toques azuis, enroscado sobre si mesmo. Parecia uma medalha.
-- Fiz quando tinha uns quinze anos... Os garotos da turma estavam fazendo tatuagens... sabe como é... para se exibir... - e riu - Eu tinha pavor de agulhas mas não queria parecer um fraco e fiz esta pequena...
Nós rimos.
-- É interessante... - ...como tudo em você.
Alguém entrou no hall.
Nos ajeitamos nas cadeiras... nossas cabeças estavam quase se tocando.
Levantei e fui atender ao usuário.
Na saída, encontrei Lili e caminhamos conversando.
Não tive como deixar de comentar a ocorrência do dia.
Obviamente, ela também ficou me sacaneando. E foi ainda pior porque ela sabia o que eu sentia pelo Lino (ela brincou dizendo que mais um pouco e eu teria quebrado aquela vidraça e agarrado ele; entre outras coisas desse tipo...).
Quando me despedi dela, fiquei pensativa enquanto andava até em casa.
A situação toda seria cômica se não fosse trágica (ao menos para mim): um cara tímido, uma garota expansiva, uma paixão velada... e ocorrências estranhas para temperar... Putz!
À noite, deitada só em meu quarto, minha cabeça estava confusa. Não sabia se fomentava o que sentia e corria o risco de perder a amizade dele, ou se engavetava os sentimentos e tocava minha vida.
Eu piscava os olhos e a imagem de Lino sem camisa me assombrava... Mas era o fantasma mais doce que eu conhecia...
(Continua)
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Aquelas semanas de fevereiro passaram voando.
Como imaginara, minha vida ficou bem mais atribulada com as aulas, o D.A. e o estágio. Mas até que eu levava as coisas bem. Eu era muito agitada, e até hoje agendas cheias não me assustam.
O feriado de Carnaval havia finalmente chegado e aquele sábado seria o primeiro dia dos nove que estaria de folga. Minha turma, em acordo com os professores, conseguiu enforcar a quinta e a sexta pós-carnaval. Então, só estaria de volta às atividades na outra segunda.
Eu estava achando ótimo me desconectar de tudo, mas sentiria falta dos amigos.
Ainda bem que em minha rua eu tinha Deguinha, minha melhor amiga.
Ela era mais jovem que eu uns 3 anos, mas já era moça feita, muito bonita apesar de ter baixa estatura. Era uma pessoa superanimada, alto-astral e divertida. Mas não era só uma maluquinha qualquer, ela sabia também ser boa ouvinte e conselheira quando necessário.
Como não iríamos viajar naquele feriado - nossas famílias eram amigas e de vez em quando saíam juntas - resolvemos curtir o Carnaval nos blocos de rua no bairro vizinho ao nosso.
Eu não era lá o que se pode chamar de "foliã", ela tampouco.
Nós íamos mesmo só para tomar uma caipifruta, comer um churrasquinho, paquerar e ser paqueradas, e, quem sabe, "ficar" com alguém já que estávamos ambas sem namorado. Eu não estava muito animada para "caçar" naquele ano, mas Deguinha me convenceu de que eu tinha que esquecer Wendell... como se eu precisasse...
Depois de sair de casa - com a recomendação de nossos pais de não abusar de bebidas alcoólicas, evitar lugares ermos e não chegar muito tarde - chegamos na praça e demos uma volta para ter ideia do ambiente geral. Estava animado. Muitas pessoas pulavam com o barulhento bloco que tocava no fim da quadra. Como era um bairro residencial, famílias com suas crianças fantasiadas passeavam para lá e para cá.
Nos afastamos do centro da folia. Paramos num trailer e compramos caipifrutas. De copos na mão, escolhemos um cantinho onde poderíamos conversar e observar a movimentação da aglomeração, ver e sermos vistas.
-- E então, Lia? Já está tudo certo para vocês irem a BH? - perguntou Deguinha. Eu sempre comentava as novidades do D.A. para ela.
-- Ah, sim. Tivemos outra reunião chata na segunda passada e nossas passagens já estão agendadas. - respondi balançando o copo plástico.
-- Sendo assim, então você foi no ônibus de novo com o "Samurai"? - praticamente afirmou animada.
Eu tive que rir. Embora "Samurai" fosse um termo que até poderia descrever Lino fisicamente devido ao seu porte esguio, ele, definitivamente, estava longe de ser um guerreiro destemido...
-- Kamikaze, Deguinha, Kamikaze... - eu tinha mencionado essa estória pra ela quando falávamos sobre cinema. Foi só um comentário. Sem detalhes.
Ela riu alto de si mesma, empurrando meu ombro - ela era mais expansiva do que eu... do que qualquer um, na verdade: -- Ah, você entendeu! - e continuou rindo.
Ri com ela, mas não consegui entender o tom da pergunta. Qual a 'novidade' em eu ir a faculdade com um amigo? Preferi responder.
-- Não, Deguinha... - apoiei o cotovelo na mão - Na última segunda nem fui ao estágio. Tive uma reunião à tarde, na decania. Marconi teve que ir também... - beberiquei meu drinque - Eles só liberaram duas passagens para BH, então teremos que ir somente eu e Marconi... O povo ficou chateado, mas prometeram que para Aracaju poderemos ir em comitiva...
-- Você vai viajar sozinha com um cara? - ela arregalou os olhos.
Ela me conhecia bem e sabia que seria minha primeira viagem com alguém do sexo oposto sem a supervisão de um adulto.
-- O que é que tem? - dei de ombros - Eu já sou maior de idade e não é nada de mais... estamos indo a trabalho. Além disso, Marconi não me interessa. Nós somos só amigos. Já te disse.- completei antes que ela começasse de novo. Desde que contei que estava no D.A., Deguinha vinha insistindo que eu namorasse com Marconi.
Ela fez uma cara de desapontamento. Tomou um gole de sua caipifruta olhando a multidão. Depois olhou de novo pra mim.
-- Ele sentiu sua falta? - perguntou casualmente.
-- Ele quem? - eu estava boiando.
-- O Kamikaze. - ela sorriu - Ele sentiu sua falta quando você não foi ao estágio?
Me lembrei da terça anterior, quando cheguei ao estágio e o rapaz sorriu do balcão.
-- Você não veio ontem... - ele comentou com a mesma calma de sempre.
-- Tive uma reunião ontem à tarde. - respondi guardando minha mochila - Não ia dar tempo de vir pra cá, então liguei para Nini e avisei que não vinha... - sentei ao lado dele.
-- Isso aqui fica muito quieto sem você... - respondeu olhando de soslaio.
Eu sorri.
-- Mas à tarde você tem o Zé pra fazer companhia...
-- Não é a mesma coisa...
Eu ri vaidosa, e ri de novo voltando ao presente.
-- É. Acho que sim. - eu ainda estava vendo a cena - Ele é um cara legal. - e lembrei de outra cena - Não sei como alguém pode não gostar dele... - murmurei.
Minha visão voltou rapidamente para a segunda-feira em que faltei ao estágio.
Saí reclamando da reunião. Marconi andava ao meu lado enquanto nos dirigíamos à parada de ônibus.
-- Ah, justo hoje que Nini e seu Manoel não vão ao trabalho, eu não vou ao estágio... O povo do IF está em fase de renovação de matrículas... - reclamava e gesticulava - Lino e Zé vão ficar com a biblioteca nas costas!
-- Você fala daquele cara "japa" do primeiro período? - perguntou Marconi.
Marconi estava no terceiro período da noite. Devia ver o Lino vez por outra.
-- Lino? Sim, um altão, de cabelo espetado. - respondi confirmando sua hipótese.
Arqueou as sobrancelhas: -- Você trabalha com aquele cara? Ele parece meio babacão... - falou rindo.
Aquilo me chateou.
-- Ei! Olhe como fala dos meus amigos! - franzi o cenho - Ele não é nada babacão. - puxa, que falta de consideração do Marconi! Eu não deixaria alguém falar assim dele. Por que o deixaria falar assim do Lino?
-- Ah, não!? - debochou - O cara nem fala direito... - gesticulou - Ele ficou isolado num canto, só bebendo sua cerveja na festa que os calouros pagaram pra gente depois da aula...
Eu sabia que Lino, literalmente, pagaria para não "pagar o mico" no pátio... Marconi continuou:
-- O pessoal que puxou assunto com ele, me disse que ele só respondia "Sim", "Não" e "Talvez". - e fez uma cara de débil rindo em seguida.
Enfureci!
-- Isso não é verdade!! - minha mão cortou o ar - Ele é um cara caladão e tudo... Mas ele é um cara inteligente, tá! - respirei e moderei o tom - Ele só é na dele... quieto. - completei. Eu não sei o que me deu naquela hora para me alterar com o Marconi...
Marconi continuou rindo, mas parou de falar.
Seguimos nosso caminho.
Uma turma de super-heróis passou por nós tocando trombetas. Voltei ao presente.
-- Lino é muito gente fina... - lembrava do rosto dele sorrindo.
Dei conta de que Deguinha me encarava.
-- Nós formamos um trio e tanto! - completei rapidamente incluindo o Zé na equação.
-- Você quer dizer 'um casal', né? - provocou ela com uma sobrancelha erguida.
-- Não. Um trio... Tem o Zé também. - ela já sabia quem era o Zé - Nós três somos imbatíveis no balcão de atendimento. - e dei um gole na minha caipifruta de novo.
-- Mas você não está apaixonada pelo Zé... - sentenciou Deguinha.
Eu quase me engasguei.
-- Que isso, Deguinha! - disse tocando os dedos na boca pra ver se não tinha babado - Tá doida!? - respirei - Eu não te disse que estava até com medo do cara!?
-- Esse medo tem outro nome... - fez uma cara presunçosa - "Amor à primeira vista". - afirmou com teimosia, parecia uma garotinha.
Eu fiquei púrpura! "Amor a primeira vista"!?
Isso que dava eu ter uma confidente. Ainda bem que eu não falava de Agnostha. Se tivesse falado, ela iria achar que eu era uma E.T. Da onde ela tirou aquilo? Pra que é que eu fui fofocar sobre o IF com ela? Deguinha tinha uma imaginação muito fértil mesmo... Imagine só: o cara mais quieto da universidade namorando a garota mais agitada do curso!? Que mistura!...
Isso que dava ficar dois meses sem pegar ninguém... Era só aparecer algum comentário sobre meninos e já estavam me arranjando namorado... Ai, se o garoto fica sabendo disso! Que vergonha! - meus pensamentos viraram um turbilhão.
-- Que amor o quê, Deguinha!? Para de graça! - ordenei.
-- Você está gostando dele, sim! - insistiu, com a mão na cintura - Olha só como você fica alterada quando fala nele... - fez uma cara de sabichona.
Aquilo me irritou.
-- Alterada!? Quem está alterada aqui!? - bufei.
Cada uma olhou para um lado fazendo bico. Depois, ela cruzou os braços e olhou para o povo que passava.
-- Tá, Lia. Vamos fingir que eu não disse nada, está bem? - resignou-se.
Eu cruzei meus braços também e quase amassei meu copo plástico. Olhei para a multidão. Eu tinha que mostrar para ela que eu não estava interessada em ninguém. Nem no Marconi e muito menos no Lino. Chamei ela para darmos outra volta.
Deguinha conhecia milhões de pessoas. Não demorou muito até encontrarmos um colega dela, que por acaso, estava acompanhado de outro colega.
O outro rapaz, Rafael, devia ter minha idade. Um moreno lindinho: mais ou menos da minha altura, cabelos negros ondulados. Hum... Nada mal... - pensei.
Papo vai, papo vem... Você sabe como é... Depois de meia hora eu estava beijando um e Deguinha o outro. (Eu sou agnosta mas não sou santa! )
Ficamos namorando e papeando até meia-noite mais ou menos.
Os meninos foram bonzinhos e nos levaram em casa... Quer dizer, até nosso quarteirão. O pai da Deguinha não poderia saber que ela estava namorando - e que a amiga mais velha, e supostamente responsável, estava dando cobertura - e eu não queria que o rapazinho soubesse exatamente onde eu morava... Duas fugitivas...
Na despedida, combinamos de nos encontrar de novo no domingo de Carnaval.
Eu e Deguinha fomos caminhando e fazendo comentários acerca de nossa sorte.
Nenhuma das duas estava entusiasmada. Era só passatempo. Mas era Carnaval, era festa, éramos jovens e ter companhia era bom.
Eu não me sentia muito bem quando deitei em minha cama.
As palavras de Deguinha misturavam-se com flashes dos meus dias com Lino reprisando em minha memória.
As conversas no balcão sobre cinema e trabalho; na copa, sobre música (ele adorava os Scorpions e eu Roxette); no caminho, sobre família; o jeito que ele ficava quando eu e o Zé zoávamos ele; os risos quando ele tomava parte da zoação parecendo mais leve; os olhos orientais misteriosos quando o silêncio dele dava o tom do dia...
Ai, meu Deus... - eu me sentia confusa. Puxei o lençol.
Eu sabia que ele era meu amigo. Disso eu tinha certeza. E eu não queria estragar nossa amizade com aquelas especulações bobas.
Por que fui falar do Lino pra Deguinha?...Será que foi o meu tom de preocupação que a alertou erradamente quando fiz o comentário sobre o amigo que sonhava que era um kamikaze?
Aliás... quem está preocupada aqui? ...Por mim, ele pode ser o próprio Dom Quixote que eu não estou nem aí...
Ai, meu Deus! - me virei na cama.
Não! Nada de se interessar pelo Lino! Não mesmo!
Ele já deixou bem claro que ele tem problemas demais na vida dele... não iria precisar de uma namorada maluca...
Suspirei.
Ah, Puxa!!! - veio aquele desconforto - Será que ele já tinha namorada!? Eu o conhecia há dois meses e nem sabia se ele tinha namorada ou não... Nós nunca havíamos falado sobre essa parte antes... Não mesmo...
Virei de novo. E se tinha? Que isso me importava? - humf! - Será que ele tinha? - fechei os olhos - Esquece!!! Você não está apaixonada por ele! Para de fantasiar as coisas!
Pisei duro por entre a multidão. Sem fantasias! - coloquei as mãos na cintura, olhei para um lado e para o outro achando o que queria. Sorri.
Rafael! Sim!... Rafael beija bem. É um ótimo passatempo!!!
As pessoas sambavam e brincavam se movendo em câmera lenta. Luzes piscavam assíncronas e o samba retumbava também em slow motion.
Caminhei por entre os arlequins e as colombinas hipercoloridos ficando frente a frente com ele.
Rafael enlaçou minha cintura e me apertou contra seu peito. Fechei os olhos e me pendurei em seu pescoço beijando-o.
Meus dedos se entrelaçaram nos cabelos espetados em sua nuca... Era bom beijar alguém tão mais alto que eu... Meu beijo se tornou mais ávido.... Deslizei uma das mãos pelas costas dele... Eu não queria fugir dos seus braços... Ele me envolveu mais. Sorri. Deslizei meus lábios pelo rosto imberbe encontrando aquela marquinha no queixo e a beijei.
Os tambores repercutiam no rítimo do meu coração... O abracei forte. Pousei minha face em seu ombro e, apesar da festa continuar ruidosa a nossa volta, senti uma imensa paz.
"Tarde demais..." - murmurou ele enquanto passava os lábios em meu pescoço.
Reconheci a voz.
Consciência.
Ai, meu Deus!!!
Acordei ofegante. Meu coração martelava.
Sentei na cama e me recostei na guarda. Meu quarto em silêncio.
Respirei tentando entender. O Rafael de meu sonho... que beijara entre arlequins e colombinas... se tornara Lino e eu... eu... Eu gostei!
Abracei as pernas e apoiei o queixo nos joelhos. Suspirei confusa.
"Tarde demais", ele dissera... Tarde demais?
Minha cabeça dava voltas.
Não. É melhor esquecer isso.... Melhor esquecer...
Nem me lembro se dormi de novo naquela noite.
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O resto daquele feriado prolongado passou como uma tortura chinesa.
Eu e Deguinha saímos com os meninos à noite, brincamos, lanchamos e namoramos, mas minha cabeça estava no IF. Me distraí o máximo que pude, mas sempre que ficava um minuto em silêncio, lembrava do sonho...
Eu não queria sucumbir àquela hipótese e toda vez que Deguinha tocava no assunto eu saía com evasivas. Fugi do assunto durante todo o feriado.
Na quarta-feira de cinzas, quando o garoto, Rafael, disse que iria lá em casa para continuar me vendo eu o cortei.
Dei a desculpa de ter uma vida muito agitada e ocupada e que não queria me amarrar. Não era exatamente uma mentira.
Ele também não se fez de rogado. "Quem eu estava pensando que era?" - era a cara dele quando se despediu de mim. Eu nem liguei.
Na quinta fui à praia, na sexta a um churrasco e no sábado à casa de parentes.
Quando Deguinha foi me ver para papear no domingo, eu mantive o plano e fugi de qualquer assunto que me fizesse falar sobre o IF. Preferi ouví-la.
Ela não era tola e percebeu que eu estava me forçando a não falar... mas era uma boa amiga e me deu espaço.
Me dispus a esquecer aquela bobagem toda. Eu gostava do Lino sim, mas como amigo e pronto.
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Na segunda-feira fui para a faculdade feliz.
Encontrei as amigas e passamos a manhã toda, entre uma aula e outra, falando em como fora o feriadão.
Ri, brinquei, me gabei um pouco por ter ficado com alguém... foi legal. Mas me sentia diferente.
Quando eu e Lili conseguimos - por um milagre - ir sentadas no ônibus que ia para o Fundão, ela começou:
-- Então o Carnaval foi bom, hein? - comentou - Por que não ficou namorando o rapaz? Você está só, não está?
Dei a mesma desculpa que dera ao Rafael. E após ouvir, ela respondeu: "Sei." - e olhou pela janela.
Eu já estava com aqueles "Sei's" dela meio que atravessados na garganta, e naquele dia em particular, eu estava mais propensa a discutir:
-- Qual é, Lili? - incitei - Não estou entendendo esses "Sei" seus... - sorri sem graça - Está querendo insinuar alguma coisa?
Ela riu, segura de si.
-- Qual é você, Alya? Não vê que só existe um motivo pra você não querer se ocupar com outro alguém nesse momento?
Eu perguntei, imaginando a resposta.
-- Que motivo?
-- Lino.
Aquilo me doeu. Era o assunto que me incomodara todo o feriado. Parecia que estava escrito em minha testa. Eu tentara inutilmente disfarçar rindo e brincando com todos, mas as pessoas que me conheciam bem, como Deguinha e Lili, viam a confusão em mim.
Minha máscara de onipotente caiu. Um misto de vergonha, frustração e surpresa passaram por mim.
Juntei as mãos sobre a mochila pousada em meu colo e olhei pro corredor. O ônibus chacoalhava em seu caminho.
-- Já está tão na cara assim? - perguntei com uma pontada de tristeza.
O sorriso dela se ampliou, satisfeita por eu ter praticamente admitido.
-- Pô! É tarde demais, minha querida... Você já está apaixonada pelo cara... e não é de agora...
"Tarde demais".
Me senti como um cubo Rubik sendo finalizado. Todas as faces de uma só cor. Tudo se encaixava.
O misto de medo, ansiedade e desejo de ficar perto dele... com ele. O sonho, o beijo e a sensação boa que vinha junto... e o sentimento novo e desconhecido que se somava àquilo tudo.
Era fato. Eu devia mesmo estar gostando do cara. Não podia mais ignorar esse sentimento.
E agora?
Eu não sabia como lidar com aquilo. Quer dizer, eu nunca tinha gostado de alguém antes - claro que já tinha me apaixonado por cantores de rock e ídolos do cinema, mas aquilo era diferente...
Todas as vezes em que namorei, eu estava gostando do cara; mas não daquele jeito... Eu nunca havia passado por uma amizade que se transformasse em algo mais. Pra mim, amigo era amigo, e paquera era paquera. Coisas bem distintas. Tanto que eu não sentia nada semelhante em relação ao Marconi...
Passei a mão pelos cabelos lentamente, olhei pra ela e soltei o ar que não sabia que estava segurando.
-- Como deixei isso acontecer...? - balancei a cabeça - E agora? - perguntei impotente.
Ela sorriu torto.
-- E agora nada, amiga. Você vai lá e diz pra ele que esta gostando dele e pronto! - respondeu.
-- Nem pensar!!! - disse enfática - Ele não gosta de mim desse jeito e eu não quero acabar com nossa amizade! Além disso, acho ele não iria ficar com uma garota amalucada como eu... - suspirei - Ele deve preferir as mais quietinhas. - e ri sem graça.
Ela franziu a testa.
-- Que isso, Alya? - comentou - Você é animada, e não "amalucada". E você é quieta. Você é mais reservada do que aparenta.
Nossa... Lili era tão observadora. Tanto quanto Deguinha. Tão sensíveis.
Sem conhecer as motivações, elas conseguiram captar minhas máscaras e meus sentimentos em relação ao Lino, antes até do que eu mesma percebera... E eu me achando "A perceptiva", "A sonhadora"... Só tenho a agradecer aos céus por ter me dado amigas como elas...
-- Tá Lili. - concordei - Mas vamos deixar tudo como está, ok? - gesticulei. Me lembrei que eu os tinha apresentado - Nem uma palavra Lili... Por favor. - pedi.
Ela sorriu complacente.
-- Tá bom. Tá bom. Eu quase não vejo ele mesmo... Mas acho que você deveria falar dos seus sentimentos pra ele...
-- Vamos ver como as coisas ficam... - suspirei e sorri - Eu lido com o que vier... - estava tentando me convencer.
Lili me empurrou com seu ombro num gesto carinhoso.
-- Torço por você, amiga. - e me sorriu fraternalmente.
Eu retribui.
O ônibus seguia chacoalhando.
O meu coração era uma passarela pisoteada pelos sentimentos que desfilavam nele enquanto eu me aproximava do Fundão.
(Próximo Capítulo)