Riyuniyana (Parte 3)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Controlei o nó na garganta e me apressei.
Corri para colocar as frutas aos pés da deusa, derramei mais óleo nas lâmpadas, recolhi as toalhas e fiz a reverência final.

Depois corri para o cubículo e troquei a roupa ritual pelas minhas. Tirei o ōpī, soltei o coque e deixei minhas longas tranças caírem pelas minhas costas. Lavei o rosto e segui para minha célula. Muita pressa, muita pressa... Teriam notado minha ausência?

O corredor dos quartos estava tremulante com a luz das tochas e por isso não reparei que também havia luz em meu quarto. Mal entrei e alguém segurou meus cabelos enroscando minha trança em seus dedos até minha nuca com muita força. Num mesmo movimento, puxaram minha cabeça para trás e para baixo, fazendo-me cair de joelhos. Doeu.

Soltei um grito curto e engasgado como uma exclamação. Minha reação instintiva foi a de tentar alcançar a mão que me segurava e ergui os braços. Me deram um solavanco e gemi alto. "Fique parada", entendi.

Comecei a arfar. Demorou um pouco para compor o cenário à minha volta. A adrenalina gelava meu sangue.

De repente meu ponto de vista girou e eu estava no canto oposto do quarto.
Gavāhī Dēnā estava prostrada na entrada do aposento sob o julgo de um homem alto e forte que inclinado atrás dela, a imobilizava pelos cabelos.

Porque não pude avisá-la do perigo? Eu tinha visto um movimento no salão... Droga!... Concluí tardiamente que a Alya que observava e a Gavāhī que vivia a situação não compartilhavam as visões...

Haviam mais dois homens de pé no quarto. Um ao lado esquerdo e outro de frente para ela, de costas pra mim.

Não era preciso muita imaginação para ver que aquele que segurava seus cabelos e o que estava ao lado esquerdo eram soldados/guerreiros. As mesmas calças bufantes...
Mas o homem que estava de pé, de costas para mim, era distinto. Era alto e musculoso como um halterofilista. Eu só via suas costas largas e nuas, com uma trança comprida ao longo das vértebras. Ele encarava Gavāhī. Estava tenso. Tinha seus punhos fechados, uma postura rija e imposta, avultando-se sobre ela.

No lado direito do quarto, no canto mais escuro, estava Garva Mām que, ao que parecia, estava sentada à beira da cama da moça.

Foi um momento muito confuso pra mim.
Meu ponto de vista se alternava entre os olhos que viam a cena e os olhos que sofriam o bote.
Olhei para a frente e vi os olhos apertados de Krūra Ādamī, sua testa franzida, seu queixo rijo. Ele era um homem másculo... quase bonito... Mas ali era o rosto de uma fera. Meu algoz...

Olhei como pude para o lado e vi a face insultada de Garva Mām... Toda a nossa amizade perdida...

-- Garva... - gemi, meus olhos se enchendo d'água - Eu posso explicar...

Pra quê tentar fugir ou dissimular o assunto? Eu já sabia o que eles tinham visto...

-- Cale-se! - ela gritou comigo e seu grito repercutiu no meu peito. Solucei ao calar - Quem você pensa que é!? - ela franziu a testa e a boca como se estivesse com nojo. Virou o rosto.
-- Garva... - tentei de novo.

Nem terminei. O tapa me calou dessa vez. Meu rosto queimou.

-- Falsa! - gritou Krūra Ādamī, sua mão ainda pairando no ar. - Como pôde me envergonhar desse jeito!? - havia dor nos olhos dele... e raiva, muita raiva.

Ele gritou uma rajada de palavras que sob qualquer língua que fosse aquela que eu estava ouvindo eram, com certeza, insultos e palavrões.

Ele era um homem a ser respeitado! Um guardião do templo! Um líder ! Um semideus! Como ela ousou pôr por terra a honra que ele a legara quando fez dela sua noiva? Mulher desprezível!

Ele continuou falando e falando... Me senti confusa... Não entendia tudo... Ele estava muito alterado. Gavāhī Dēnā ouvia a tudo entre lágrimas, fechando os olhos e mordendo os lábios. Perdida.

Após a explosão, Krūra silenciou, respirou fundo e se endireitou. Ele olhou para Garva Mām - talvez esperando uma outra manifestação dela. Ela estava impassível. Fria e distante. Provavelmente ruminando o fato. Havia um brilho vacilante em seus olhos. Chorava?

Krūra Ādamī não esperou mais nada. Ele franziu o cenho e seus olhos pareciam opacos. Estava pensando. Hum... Mau sinal.

Minha cabeça doía devido a posição.
De repente Krūra se abaixou e segurou meu maxilar com força fazendo-me olhar diretamente para seu rosto.... Eu vi a decisão em seus olhos... e era a morte!

-- Você será um exemplo para esta vila... - falou calmamente entre dentes... e lá estava minha sentença.

Garva Mām não disse nada. Fitava a moça com ar superior, querendo mostrar a ela de quem era o erro. Ela sentia-se enganada, iludida, desafiada e desonrada. Como pôde acolher uma cobra naja num templo sagrado? Ainda assim, não queria sujar suas mãos com aquela criança... O noivo que fizesse o que achasse ideal para limpar seus nomes. Ela mesma só iria ter uma conversa com Ātmaghātī Prēmī mais tarde, quando ele voltasse do campo. Certamente que ele seria repreendido. Ela deveria parecer severa. Onde já se viu? Alguém da estirpe dele portar-se como um ladrão de mulheres!?... E justo uma mandira noiva! Humpf!
Ela teria que casá-lo logo, o mais rápido possível, para que isso não ocorresse de novo...

Chega!
Forcei a acordar.
Não aguentaria mais daquela torrente de informações!
Já não me bastava estar na cabeça da moça e agora estava na cabeça da mãe também!?
Eu já tinha visto o suficiente! A moça morre e pronto! Já chega!!!

Rolei na cama e senti o travesseiro sob meu rosto... Mais um pouco... - Anda! Acorde!

Como se estivesse sendo abduzida pelo sono, meu corpo se entorpeceu novamente, sem sequer me deixar acordar de verdade. Meus olhos rolaram em suas órbitas e quando os abri eu estava num ambiente escuro.
Onde?

Olhei em volta e vi que estava encarcerada.
A luz tênue que vinha da fresta da porta fechada atrás de mim e o ar frio e parado só me deixavam perceber que eu estava num espaço amplo mas sem janelas. Haviam peças metálicas no chão e juro que na hora pensei que estivesse vendo peças de obra de arte... Que estivesse num depósito... Mas não. Era ferro retorcido... Grilhões?

Olhei para a parede mais próxima de mim e ela tinha... Espetos? Não. Garras?... Não... anzóis... É!Ganchos!... Isso! Anzóis de ferro. Toda a parede coberta de anzóis bem próximos uns dos outros... Mas pra quê?

Apertei mais meus "olhos" e foi quando percebi os filetes escuros, como códigos de barras sinistros, marcados na parede... Acompanhando o traçado, olhei para cima.

Eu quis gritar!!!

A moça, Gavāhī Dēnā, estava pendurada na parede! Como um espantalho... Um espantalho humano - os cotovelos erguidos, os braços pendendo, a cabeça inclinada...
Meu Deus!

Eu estava horrorizada! Ela estava içada pelos anzóis... Nas costas, nos braços... Estes estavam fincados em suas carnes como piercings do terror!
Não dava para ver os detalhes - estava escuro - mas dava para ver as peles repuxadas. Eu não tinha dúvidas... Os filetes só podiam ser sangue... sangue seco.

Meu Deus... Eu não tinha braços para levar as mãos aos olhos... Nem pernas para correr dali...
Que ignorância! Que atrocidade!
Além de horrível, a cena era triste.... Coitada! Tão jovem!
Meus olhos baixaram sem nada ver... Eu queria chorar...

Quando os ergui, dei conta de que ainda estava viva. Quanto tempo havia se passado? Um dia? Dois? Não importava... Minhas horas estavam contadas. Estava difícil respirar...

É certo que um dos ganchos - intencionalmente ou não - perfurara meu corpo mais fundo... Mais fundo que a pele... Tudo bem... Já não sentia dor, o que significava que estava mesmo morrendo... Seria breve então. Não tinha medo... nem raiva.

Sei que minha morte não limparia a honra de Krūra Ādamī. Talvez até fosse pior...
Vacta o repreenderia pelo que ele fizera comigo. Vacta não teria deixado isso acontecer... Ele não gosta destes costumes antigos que envolvem sacrifício humano. Mas Vacta estava no campo, preparando os rapazes para a cerimonia da passagem...
Tudo bem... Já não há nada a ser feito mesmo...

Na verdade, eu tenho minha parcela de culpa também... Destrocei a honra de dois Grandes de minha vila, fora a vergonha que meus pais deveriam estar sentindo agora... Ainda bem que não os veria mais... Seria difícil me desculpar...

Mas não sentia culpa por ter amado Prēmī. Não. Isso não. Eu teria feito tudo de novo e de novo, e morrido quantas vezes fosse necessário para estar com ele...

Minha maior tristeza nisso tudo era não poder cumprir minha promessa de esperá-lo. Está difícil ficar... Respirar.

Se a Deusa da Morte permitir, ficarei o quanto possível... Pobre Prēmī... Espero que Garva Mām lhe arranje uma noiva logo... assim ele não sofrerá por mim por muito tempo... Não quero que ele sofra... não quero...

Esse pensamento fez meus músculos tremerem. Estaria com febre?

Os pensamentos de Gavāhī Dēnā eram como um riacho sobre pedras: irregulares e sem contenção...

A luz cegou a nós duas quando vi a tocha que apareceu na entrada da cela. Um soldado a empunhava. Ele olhou friamente para a moça pendurada e virou-se de lado para dar passagem ao casal que o acompanhava.

--Gavāhī... Filha amada...

(Continua)

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