A emoção de ver meus pais ali, na entrada da cela olhando para cima, me vendo naquela situação, minou minhas forças...
Sorri-lhes... E em seguida apaguei.
Estava pairando junto ao teto de uma casa - não há outra explicação - quando recobrei o controle.
Era um quarto. Havia uma janela mais alta que larga onde a luz da manhã entrava filtrada por uma cortina fininha azul. Num dos cantos havia um pequeno altar com uma estátua sobre ele, ao estilo indiano. A seus pés haviam pratos com frutas, incenso, e velas.
Sinceramente, o quarto não me interessava muito... Eu queria saber o que ainda fazia ali. Quanto tempo havia se passado? Perdi tal noção - como se isso fosse possível num sonho...
Olhei para baixo e vi um corpo no que parecia ser uma cama.
A moça estava de bruços - seu rosto quase infantil apoiado de lado sobre algo fofo, os olhos fechados e os cabelos compridos espalhados como algas escorrendo pelo outro lado. Estava coberta até o pescoço por um lençol de cor laranja com estampas vermelhas... Rosas vermelhas? Era Gavāhī Dēnā, provavelmente em seu leito de morte, pensei.
Fiquei triste... Lembrei que Gavāhī havia prometido esperar por Prēmī. Já estaria ela morta?
Como se meu pensamento tivesse sido gritado, vi quando o olho que não estava sobre o travesseiro se abriu inicialmente sem foco, mas depois girou na órbita e olhou de soslaio pra mim.
Foi como um tiro!
Num átimo - sem nenhuma decisão consciente minha - estava eu voando para fora da casa!
Foi tudo muito rápido - como num passeio de fórmula 1 - vi algumas casas caiadas de branco, pessoas passando, animais num mercado... e o templo!
Avancei pelas colunas e num segundo minha visão percebeu o corredor seguido pelo quarto ricamente decorado. No segundo seguinte percebi o barulho da briga. Em algum lugar meu coração palpitou com a voz conhecida: era Prēmī discutindo com sua mãe dentro do quarto!
Eu cheguei já no meio da discussão. Seria eu o assunto? Angústia.
Ele estava de pé gesticulando muito, e parecia zangado. Ela, também de pé, bradava os braços no ar, nervosa, a fisionomia dura. Era óbvio que eles não me viam... o que me angustiava mais!
Eu estava confusa e não conseguia entender o que diziam... Eu não conseguia me concentrar... a atmosfera estava muito pesada. Lutei um pouco com meus ouvidos... Finalmente, como se alguém apertasse a tecla SAP, eu comecei a entender:
-- A senhora nunca se importou realmente com meus sentimentos, mãe! - falou ele transparecendo seu pesar.
-- Que sentimentos, Ātmaghātī!? Que sentimentos? Uh!? - exaltou-se ela - Isso que você tem por aquela mandira é simplesmente desejo! Desejo! - ela continuou numa torrente - Você inveja Krūra Ādamī! Roubou-lhe a noiva! - girou os olhos à hipérbole - Meus deuses! Você me envergonha! - a mão na testa. Dramática.
-- Não é verdade! - ele exaltou-se também - Não estou brincando com ela, mãe! Eu vou tomá-la por esposa! - deu um passo duro a frente, apontava - A senhora verá! Ficaremos juntos! - o tom agora era ameaçador.
-- Nunca! - o dedo em riste cortou o ar, e franzindo o cenho continuou - Não criei você sem seu pai para isto! Tenho coisa melhor para ti! - ela bufou.
--Humf! "Coisa melhor" pra mim? - perguntou Prēmī sarcasticamente - ... Ou melhor para sua linhagem real? - cruzou os braços zangado.
--Chega, Ātmaghātī! Você não fica com ela! - balançou a mão para ele e deu-lhe as costas.
Pausaram. Ambos ruminando as palavras ditas.
-- Além disso... - retomou ela, mas dessa vez cuidadosa - Além disso... - baixou o tom - ... Krūra está com ela...
Confusão no ar. Silêncio.
Ela soltou um longo suspiro, daqueles audíveis, e puxando um pouco a saia, virou-se e sentou na cama. Garva Mām notou que agora não poderia recuar, respirou fundo e não encarou seu filho ao continuar:
-- Ele exerceu o direito de castigá-la, Prēmī... Para limpar sua honra...
Ātmaghātī Prēmī congelou onde estava. Seu rosto tingido de surpresa e terror.
-- C-Como é? - perguntou num suspiro.
-- Ele... Ele a levou para a masmorra... - agora ela parecia arrependida.
Vendo que Prēmī a encarava acusadoramente ela continuou, defensiva:
-- Eu não pude fazer nada, Prēmī! Ela era a noiva dele! - gesticulou - Eu não sei o que ele fez com ela... Acho que corpo dela não está mais lá! ... Os pais a levaram...- ela falou de uma só vez como quem se desculpava.
Prēmī ainda estava de pé no centro do quarto. Sua respiração estava cortada.
Senti que a palavra "corpo" reverberou nele. Seus olhos pareciam alucinados. Acusação. Frustração. Dor. Raiva. Vi tudo passar por eles. Imaginei que Prēmī voaria no pescoço dela!
Mas, lentamente, vi sua luz se apagar. Os olhos desfocados.
Ele baixou a cabeça e vi duas pequenas estrelas d'água aparecerem no chão aos seus pés. Sei que sentia dor. Os punhos fechados agora estavam travados ao longo do corpo. Ele estava tentando se controlar... - Aquilo me dilacerava...Ver meu amado sofrendo...
Na cama, Garva estava tensa. Virou o rosto ocultando suas feições. Pensei ter notado algo em seu rosto antes dela se virar. Estava arrependida? Arrependida de quê? De não ter me ajudado? Ou de ter contado meu paradeiro ao filho?
Ela tornou a olhar e notei a humidade em seus olhos. Vendo que ele parecia estar em choque, ela continuou num tom maternal:
-- Prēmī... Por favor... Eu só quero seu bem... Você tem que esquecê-la...- ela esforçava-se para modular a voz que parecia querer embargar - Prēmī? - chamou ela.
Ele não reagiu. Ela forçou:
-- Prēmī... Eu não decidi nada! Krūra Ādamī...
-- Você me matou... - cortou Prēmī suavemente.
Surpresa, ela encarou o rosto dele. Incrédula. O cenho se franziu:
-- Como é que é?
Ele levantou a cabeça lentamente.
Não havia nada lá, nenhuma emoção. Nem tristeza, nem dor, nem raiva. Nada. Só os olhos vermelhos.
-- Você me matou... Vocês me mataram. - e aquela calma de sua voz trazia algo diferente. Decisão.
Vi a compreensão horrorizar o rosto de Garva Mām e me horrorizei também.
-- Ātmaghātī !!! EM QUE VOCÊ ESTÁ...
Ela estendeu os braços levantando-se para segurá-lo, mas já era tarde!
Ele já tinha se virado e saído do aposento a passos duros, rápidos e decididos, deixando-a no vazio.
Eu me desesperei!
"O que você disse a ele!? Que eu morri!?" - gritei sem voz. Meu peito me oprimia. O que ele irá fazer? - "Vá atrás dele, sua burra! Vai! Não deixa ele ir!!! Vai!!!" - bradei angustiada.
Ninguém me ouviu. Ela fitava o vazio.
Avancei sobre ela e gritei de novo: "Vá atrás dele!!! Agora!!!"
No momento seguinte ela ruiu sobre os próprios joelhos e caindo no chão começou a chorar alto e convulsivamente.
Desesperança.
Argh! Orgulhosa!
Não fiquei ali. Perdi a paciência! Ela que se entendesse com sua dor...
Eu - literalmente - voei atrás de Prēmī. Minha cabeça a mil!
Eu já não sabia quem eu era. Se era eu, Alya, se era eu, Gavāhī. Pouco importava! Eu só sabia é que eu não queria que meu primeiro e único amor fizesse uma besteira por minha causa! E voei mais rápido.
Os corredores passavam por mim, o templo era grande. Não conseguia localizar-me. Droga!
Ele deve ter descido para o pátio interno, aonde os homens treinam - concluí... Ou me foi dito. - Sim, sim! - sem tempo para discussão mental agora. E voei apressada para lá.
A claridade me alcançou.
Havia uma roda de guerreiros atônitos. Ātmaghātī Prēmī estava no centro da roda frente a frente com Krūra Ādamī. Ambos em posição de luta. Eles pareciam discutir. Voei em direção à aglomeração com toda a velocidade. Como iria parar aquilo?... Meu Deus! Não!!!
A imagem virou um borrão.
-- Argh!!! - gritei contra minha vontade quando minha mãe passou o unguento em minhas costas. - Não!!! - minha mão segurou o punho dela com força, o movimento fez doer minhas costas, e ela deixou cair o vasilhame do remédio.
Droga! Estava no meu quarto na casa de meus pais! Há quanto tempo? Não podia perder um segundo!
-- Mãe... Mãe! Por favor, me escute! - arfei. Estava difícil falar. Não largava seu punho - Prēmī! ... No templo! Por favor! - estava desesperada. A voz pesava-me. Eu fazia um esforço sobre-humano - Por favor, Mãe... No templo! Por favor... - agonizava. - Temos que ir... !
Minha mãe se assustou, puxou a mão e levantou-se ressaltada. Gritou pelo meu pai.
Ele entrou correndo.
Minha voz era pouco mais que um sopro, mas eu continuei gritando. Tinha que fazê-los entender... As palavras embolavam em minha boca. Pesadas.
-- Pai...! - ar, ar - Prēmī! ... No templo! - inspirei. - Por favor!
Ainda estava de bruços o que dificultava a passagem do ar pela minha garganta. Tentei me virar.
Eles me seguraram.
-- É a febre! Ela está delirando! O que faremos!? - minha mãe parecia desesperada também.
Meu pai dobrou os joelhos ao lado da cama:
-- Minha filha... Calma! - havia embargo e nervosismo em sua voz - Calma!
Eu não tinha mais tempo! Apoiei o cotovelo esquerdo erguendo-me um pouco - doeu - com o braço livre agarrei a roupa dele na garganta. Puxei para perto os milímetros que pude:
-- Vão. Matar. Prēmī!!! - falei séria e olhei bem dentro dos olhos negros dele.
Eu não sei o que ele viu mas sua feição mudou.
Eu o soltei... e caí de novo sobre a cama. Exausta.
Sem me dizer nada, ele levantou-se, olhou para minha mãe:
-- Eu já volto. - e saiu apressado.
Minha mãe parecia triste enquanto se abaixava ao meu lado. Inclinou a cabeça e passou a mão em meus cabelos. Sei que ela era bonita... Toda mãe amorosa é.
Tomei um longo fôlego... Me acalmei, resignada. Tinha que esperar.
Tentei focar o rosto da mulher ao meu lado mas não conseguia. Eu queria confortá-la. Dizer que estava tudo bem comigo. Mas não encontrei minha voz... Na verdade, eu não encontrei meu corpo. Já não sentia mais nada. Meu corpo entorpecera. Era difícil manter-me acordada no sonho... - que loucura... Mas é a mais pura verdade... Eu queria ficar.
Depois de olhar meu corpo com um vinco na testa, minha mãe levantou-se e puxou o lençol que me cobria. Ela gemeu alto ao fitar as estampas vermelhas ... Ah! Entendi... Não eram rosas afinal... Ela chamou mais alguém, um criado, acho, que àquela altura eu já não sabia se era homem ou mulher. Eles, com muito jeito, me viraram de decúbito dorsal. Eu não senti nada.
A outra pessoa se retirou e ela trouxe um lençol limpo e me cobriu.
Olhei para o teto. Para mim já não fazia diferença... Eu só precisava saber o que acontecera com Prēmī... Quanto tempo? Eu já não tinha mesmo tal noção...
O ar entrava e saia mecanicamente de meus pulmões. Meu corpo parecia tremer, mas eu não sentia nada.
Depois comecei a sentir como se meu corpo estivesse mergulhado em água. Era uma sensação boa, mas eu sabia que estava me perdendo...
Olhei para minha mãe que ainda estava sentada ao lado do meu leito. Eu queria dizer a ela que não conseguiria continuar ali - Eu tinha que ir... - mas me segurei porque neste momento meu pai entrou no quarto.
Olhei para ele com ansiedade. Ele parecia soturno e concluí que a notícia não era das melhores. Meus olhos se arregalaram e queria gritar para que ele falasse logo, mas não encontrei minha voz.
Minha mãe olhou com significado para meu pai e cedeu-lhe o lugar ao lado da cama. Ela soluçava, mas abafava o som com as mãos. Ele sentou-se, e pesaroso, pegou minha mão que jazia em algum lugar. Começou a acariciá-la. Eu não senti o toque.
--Filha... - começou ele hesitante - Ātmaghātī Prēmī... - levantou a cabeça e me olhou nos olhos - Prēmī está morto... - concluiu amargo.
Um nó se formou em minha garganta e começou a transbordar pelos olhos mas eu não disse nada. Ele continuou:
-- Ele... Ele encontrou Krūra Ādamī no pátio e o pediu que ele lhe desse o mesmo destino que foi dado a ti... - sua voz era grossa pelo embargo -... Ele pediu... E Krūra aceitou...! - balançou a cabeça - Eles o penduraram... - sua voz falhou na palavra - ... penduraram como o costume... Mas ele teve um sangramento muito forte... Não parou...
Hemorragia, eu pensei. Alya pensou. Meu pai continuou:
-- Ele pronunciou seu nome... - agora as lágrimas escorriam por sua face -... e fechou os olhos... Não abriu mais... - meu pai baixou a cabeça. - Tiraram-no de lá. Mas já era tarde...
Um choque anafilático, eu sabia. Alya sabia.
Ele concluiu:
-- Garva está inconsolável... Krūra foi repudiado por Vacta... - apertou minha mão - Eu sinto muito... Muito, minha filha!
Era informação demais... Eu encarava o teto agora.
Acho que entrei em choque porque meu corpo parou de tremer e minha respiração se acalmou. Só as lágrimas pareciam refletir meu estado de espírito.
Não gostei do que ele fez. Por que acabar com a vida por escolha própria? Eu não tive escolha. Ele tinha. Idiota! Eu não merecia tal sacrifício... Como ele pôde?... Como ele pôde?... Ele fez isso pra ficar comigo? Ah, meu amor! Eu teria te esperado... Esperado por toda a eternidade! Não precisava se apressar...
O pensamento de que ele - que estava atrasado - agora estava adiantado, me fez sorrir...
Ele já estava lá... - seja lá onde "lá" for - ... e me esperava!
Olhei para meus pais ainda sorrindo. Os dois ao meu lado.
-- Estou pronta. - disse suavemente.
Minha mãe não suportou mais. As lágrimas caíam. Meu pai se levantou e acolheu a face dela no ombro dele, confortando-a.
A sensação de água que sentia banhar meu corpo alcançou meu rosto... Eu estava imersa...
Não tive medo. Olhei para eles como quem se desculpa. Eles me olharam carinhosamente.
-- Não chorem...- usei o último ar que tinha - Eu...vou...ver... Prēmī...
E fechei os olhos.
(Continua)
quinta-feira, 13 de maio de 2010
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